
O Blog da BVPS publica hoje o texto “Brasil em contradição: os remediados de Memórias de um sargento de milícias“, de Gabriel Martins da Silva (Puc-Rio), que se hospeda no ensaio “Imagens do remediado”, de Silviano Santiago.
O post dá continuidade à Hospedagem Vale quanto pesa, um experimento intelectual e estético inspirado na categoria de “hospedagem” de Silviano Santiago, voltado para as comemorações do seu segundo livro de ensaios, Vale quanto pesa, de 1982. Propomos um exercício de comentário, repetição, suplementação, hospedagem dos 18 textos nele reunidos. Autores e autoras de 40 anos ou menos comentam Vale quanto pesa em seus 40 anos ou mais.
É uma alegria proporcionar esse encontro, ainda mais porque, como espaço de formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes, o Blog da BVPS aposta sempre na conversa entre diferentes gerações.
Acompanhe as postagens da Hospedagem, sempre às segundas e quartas-feiras. Para saber mais sobre a iniciativa, clique aqui.
Boa leitura!
Brasil em contradição: os remediados de Memórias de um sargento de milícias
Por Gabriel Martins da Silva (Puc-Rio)
Que vale o lustre da pele escanhoada de rapaz frente aos fios longos e bem aparados da barba senhorial?
Silviano Santiago em entrevista sobre Antonio Candido, 2009.
1.
O ensaio de Silviano “Imagens do remediado”, sobre Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, apesar de reunido em Vale quanto pesa, de 1982, foi publicado em, pelo menos, outras duas ocasiões. Primeiro, em abril de 1982, no dossiê intitulado “Literatura e pobreza”, da segunda edição da revista Novos Estudos CEBRAP, Roberto Schwarz compila textos de importantes intelectuais e críticos brasileiros, escritos a seu convite para compor o número especial e temático do periódico recém-criado à época. E depois, no ano seguinte, em 1983, Schwarz continua o projeto e amplia os colaboradores da empreitada, reunindo novos nomes e publicando-os sob o título de Os pobres na literatura brasileira, livro editado pela Brasiliense. Parto dessa pequena história do próprio ensaio para imaginar quais relações saltam aos olhos entre críticos tão diferentes. Quais associações – sem nos esquecermos das fricções geradas por elas – são possíveis na investigação de um pequeno texto de Silviano? Gostaria de apontar, primeiramente, alguns elementos textuais adicionados à publicação em Vale quanto pesa em comparação ao dossiê de 1982 e ao livro organizado por Schwarz em 1983. Elas são duas: a dedicatória e a epígrafe. Como foi dito, são elementos que não constam na publicação original do texto, mas que, por algum motivo – o qual podemos apenas sugerir aqui –, são adicionados na versão coligida.
Antes disso, gostaria de mencionar o provável primeiro encontro entre Silviano e Schwarz, anterior ao convite para integrar a coletânea do começo da década de 1980. No obituário de Hélio Oiticica, escrito no dia de sua morte e publicado no dia seguinte n’O Estado de Minas, Silviano recupera os primeiros encontros de uma longa amizade que mantiveram. O texto, intitulado “Hélio Oiticica em Manhattan”, propõe percorrer o inverno de 1969-1970, período em que Oiticica e Silviano estavam em Nova Iorque, este último como professor de literatura francesa em Buffalo, na State University of New York. O que nos salta aos olhos no texto-homenagem é justamente a descrição de um encontro no loft do artista plástico Rubens Gerchman em Manhattan (Santiago, 2019). Na companhia de Anna Maria Maiolino e Hélio Oiticica, Silviano menciona a presença inusitada de Roberto Schwarz. Naquele período, no começo da década de 1970, Schwarz estava há pouco tempo na Europa, após largar a sala de aula da Universidade de São Paulo para se exilar em Paris, à vista de presos e torturados próximos (Schwarz, 2021), onde cursou seu doutorado sobre os primeiros romances de Machado de Assis, que logo foi publicado em português como Ao vencedor as batatas (1977), um ano depois de defendida.
Assim, a dedicatória, onde se lê “Para Roberto Schwarz, pela sugestão”, parece suplementar o primeiro encontro dos dois críticos. Se em Manhattan os autores tiveram um primeiro contato em meio a amigos, num clima ao mesmo tempo descontraído e tenso – já que viviam em exílio –, este segundo é marcado por uma associação de trabalho, quando ambos já tinham voltado definitivamente ao Brasil. O motivo da dedicatória, podemos imaginar, deveu-se ao convite para participar da coletânea, cujo tema escolhido talvez tenha vindo de uma conversa entre Silviano e o organizador, daí a “sugestão” de Schwarz indicada por Silviano.
Liguemos os pontos. Schwarz é uma espécie de continuador do trabalho de Antonio Candido – digo isso não para diminuir sua originalidade, mas para apresentar filiações e preferências de abordagem do objeto literário e sua relação com a sociedade –, autor conhecido pela sua análise célebre do romance de Manuel Antônio de Almeida, “Dialética da malandragem” (1970), além de ser, ele próprio, Schwarz, um especialista em literatura brasileira do século XIX. Por sua vez, Silviano havia se dedicado, ao longo dos anos 1960, também ao romance do século XIX (Santiago, 2018), publicando ensaios sobre Machado, José de Alencar e Raul Pompeia – para ficarmos entre os mais conhecidos. Assim, um eventual convite enviesado de Schwarz pode ter despertado o olhar aguçado de crítico de Silviano para esse objeto ainda não explorado em seus estudos, por mais que já tivesse conhecimento da importância do ensaio de Candido. Aponto a dedicatória do texto não para sobrecodificar o ensaio de Silviano à fortuna de Schwarz, mas, na verdade, para apontar como as afinidades de pesquisa de ambos os críticos produziram um texto que é, a um só tempo, tributário da tradição crítica e original em sua embocadura. Assim, podemos, a partir do episódio de Manhattan, imaginar os outros encontros entre esses intelectuais que produziram resultados potentes, como se vê no próprio ensaio em que me hospedo.
Sabemos também que, em 1974, Silviano Santiago retornou ao Brasil após longo período no estrangeiro. De modo a se familiarizar com o debate da crítica literária brasileira, da qual havia se afastado há, pelo menos, uma década, Silviano se inteira do debate nacional a partir da leitura de autores-chave daquele período, tais como Antonio Candido, Walnice Nogueira Galvão e Roberto Schwarz. Essas leituras foram minuciosamente anotadas em pequenos cadernos – todos devidamente arquivados pelo próprio autor –, que guardam, escondidos, os expedientes de leitura de Silviano das obras de grandes nomes da crítica.[1] A segunda metade dos anos 1970, podemos especular, foi para Silviano um acerto de contas com a crítica literária brasileira, período em que pôde, junto aos itinerários corriqueiros de sala de aula no Rio de Janeiro, acompanhar de perto as novidades do cenário literário brasileiro. Essas leituras feitas na minúcia aparecem de sobressalto nos ensaios escritos na década de 1970 – a maior parte coligida no livro de 1982 –, deixam à mostra o diálogo aberto entre Silviano e seus contemporâneos, ensaiando conexões possíveis e proliferando o debate franco entre pares.[2] O que nos leva, rapidamente, ao segundo elemento textual.
Este segundo índice é a epígrafe acrescida à versão em livro. Trata-se de uma passagem de Caio Prado Júnior retirada de Formação do Brasil Contemporâneo (1942): “…indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma”. A citação parece responder em grande medida ao ajustamento escolhido por Silviano para ler Memórias de um sargento de milícias, isto é, privilegiar a figura do remediado, aquele que está entre a extrema riqueza e a extrema pobreza (senhores e escravos) e que ocupa as margens da sociedade oitocentista.
Esse enquadramento historiográfico, a desorganização como elemento de caracterização desse segmento social, a constatação da posição singular do Brasil no arranjo de classe e a inadequação entre liberalismo e escravidão encontram, em Caio Prado, um dos seus mais importantes sistematizadores. Figuras importantes que precisaram se haver com o tema dos homens livres na ordem escravocrata como Maria Isaura Pereira de Queiroz, Maria Sylvia Carvalho Franco e Laura de Mello e Souza (Ricupero, 2011) têm, em Caio Prado, o marco da historiografia brasileira que deu conta desse debate a partir de uma ótica marxista “[…] desdogmatizada e produtiva […], de uma qualidade e propriedade que esta orientação não havia conhecido antes no Brasil”, como escreve o próprio Schwarz (1987: 130), este último, um dos intelectuais que se vale do quadro elaborado por Caio Prado ao investigar a formação colonial brasileira.
A escolha da epígrafe ganha mais uma camada de densidade quando descobrimos que o comentário de Schwarz acerca da obra de Caio Prado se dá justamente num ensaio sobre “Dialética da malandragem” de Candido – este que tem também como um dos seus pressupostos sociológico as hipóteses de Caio Prado –, de modo a produzir, mesmo que apenas num primeiro momento, um tipo de filiação desses três autores (Silviano, Schwarz e Candido) a uma mesma tradição historiográfica brasileira que tem na figura de Caio Prado o seu iniciador.
Esses aspectos contextuais não estão ausentes na maneira como Silviano compõe o quadro de análise de “Imagens do remediado”. Pelo contrário. Não gostaria de prosseguir com uma leitura de fonte e influência, mas o esforço é não ignorar as diversas linhas de força que atravessam o crítico no momento mesmo da escrita de seus ensaios, além da forma como os encontros, as leituras e as trocas formaram um pensamento em constante negociação com o mundo. Assim, a referência explícita a Candido no texto de Silviano sobre o romance de Almeida nos alerta apenas para o começo de uma conversa intensa com a crítica dialética e materialista brasileira. Partindo do próprio texto de Silviano e indo além dele, podemos ver, na própria leitura cruzada dos ensaios, a maneira como Schwarz absorve algo do debate sobre original e cópia a partir de autores ligados à chamada desconstrução e às críticas aos procedimentos de leitura de fonte e influência (Ricupero, 2013).
Apesar da aproximação evidente – para não falarmos em inspiração –, as obras de Schwarz e Candido guardam uma certa distância em termos teóricos. Candido foi professor de Schwarz, um dos responsáveis por sua formação como crítico, porém, o primeiro, de formação política socialista, não tinha no marxismo sua inspiração mais explícita,[3] apesar de reconhecer que o elemento de classe é decisivo nas análises literárias. Já o segundo, com uma leitura aguçada tanto da obra de Marx quanto das de Lukács e Adorno, tinha no marxismo – crítico e não dogmático – o enquadro fundamental de suas análises. As divergências foram apresentadas ao longo de seus ensaios sobre as contribuições de Candido, como podemos verificar em “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’”, na crítica que Schwarz fará à leitura de Candido sobre Aluísio Azevedo, com a sobredeterminação do romance de Émile Zola e a constatação de influência do segundo pelo primeiro, além, é claro, das diferentes maneiras como interpretam a obra e a figura de Oswald de Andrade.[4]
2.
A epígrafe deste ensaio se refere à entrevista concedida por Silviano Santiago sobre a obra de Antonio Candido, publicada na revista Literatura e sociedade. De tom um tanto quanto esquivo, Silviano responde algumas questões gerais sobre a fortuna crítica de Candido, lido como uma espécie de professor às avessas, já que Silviano absorve uma série de ensinamentos do mestre ao mesmo tempo em que tece críticas agudas ao seu método e à sua propensão dialética e materialista.[5] Por mais que a obra de Candido – e também, de uma certa maneira, a de Roberto Schwarz, um de seus “herdeiros” mais expressivos –, seja lida como oposta às posições de Silviano, numa leitura cerrada dos textos dos autores algumas aproximações podem ser vislumbradas. O ganho de Candido, em termos críticos, é a junção entre a forma social e a forma literária, realizada de maneira mais bem acabada em “De cortiço a cortiço” (1973) e em “Dialética da malandragem” (1970), ambos publicados em O discurso e a cidade (1993).
Silviano, na mesma entrevista, propõe a seguinte leitura: “A imagem que encontro para explicar o jogo entre a saliência persuasiva do detalhe e a totalidade encantadora da organicidade é a do caleidoscópio”. A partir do brinquedo óptico que usa espelhos e objetos coloridos para criar padrões e imagens, Silviano joga com a ideia de micro e macro na leitura de Candido, que tenta ver nas formações pitorescas dos romances do século XIX os entraves da sociedade brasileira no momento-chave de entrada no concerto das nações, na importação de ideias estrangeiras para a periferia do mundo, mostrando seus paradoxos e revelando o funcionamento das formas sociais peculiares do Brasil. E continua: “Os conceitos marcantes – pequenos pedaços coloridos de vidro – são refletidos por espelhos dispostos ao longo da extensa obra, de modo que, quando o leitor a ativa pela leitura sensível e inteligente, enxerga imagens múltiplas em arranjos simétricos” (Santiago, 2009: 52). Assim, a forma social e a forma literária aparecem como faces de um mesmo fenômeno (ou, pelo menos, “simétricos”), no qual um informa o outro, apresentando-se em uma fractalidade, cujas partes revelam o todo e o todo revela as partes. A façanha de Candido é a união entre a abordagem formalista e as voltadas a elementos extraliterários. A mistura das duas abordagens está no centro do programa dialético de Candido, que tenta conciliar tanto uma análise da produção literária quanto uma crítica da sociedade que informa o texto.
Como estou tentando defender, o ensaio em que essas aproximações ficam mais patentes é justamente “Imagens do remediado”, no qual Silviano Santiago atravessa os personagens de Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida, a partir da figura do homem livre e pobre na ordem escravocrata. Silviano percorre sujeitos enquadrados na noção de remediado, quer dizer, aqueles que estariam entre a escravidão e o trabalho livre, como foi apresentado na leitura de Caio Prado Junior, que vai do malandro ao preguiçoso, passando pelo imigrante pobre, pelo ex-escravizado alforriado, pelo “mestiço ocioso”, pelo cigano etc. Passam por aí personagens como o compadre barbeiro, o Caboclo velho, Chico-Juca e Leonardo Pataca, todos eles, ao seu modo, remediados de uma sociedade escravocrata, equilibrando-se nos limites da ideologia burguesa e experimentando os entraves e paradoxos do escravismo, essa espécie de totalidade social que orientou nossa formação nacional.
O livro de Almeida, lido durante muito tempo como o romance de costumes mais importante sobre o período joanino,[6] tenta dar conta dos cacoetes-símbolos da sociedade brasileira. Localizado temporalmente e espacialmente (começo do século XIX no Rio de Janeiro) num dos períodos mais brutais da escravidão transatlântica (Alencastro, 2019), o romance tem como sujeito primordial não o escravizado espoliado e alienado de seu trabalho, muito menos o aristocrata que nega o mundo do trabalho, numa espécie de ética antiburguesa, mas justamente a figura do remediado, aquele que, à margem do mundo do trabalho, quer dizer, numa sociedade, apesar de ter ingressado na partilha ideológica do trabalho livre e do regime assalariado, embebida nas teses iluministas, guarda no seu centro produtivo a escravidão como motor de desenvolvimento. Assim, o progresso econômico e o acotovelamento do Brasil junto às nações da primeira fileira do Esclarecimento, aparecem, no âmago da trama, balizados pela escravidão, de modo a destacar o paradoxo brasileiro por excelência. Em seu ensaio, Silviano, em tom poético e ensaístico, privilegiou também essa dimensão em princípio irrisória, mas que revela a força interpretativa das Memórias de um sargento de milícias, na esteira do que observou Antonio Candido em “Dialética da malandragem”, tomando-o como ponto de partida e saltando em frente.
No início do texto de Silviano, vemos logo a maneira pela qual ricos e pobres são aproximados e distanciados em suas diferentes representações, numa caracterização do discurso romântico, sobretudo no Brasil. Assim, ricos e pobres são comumente avizinhados em narrativas amparadas pela ironia e pela blague, formando imagens que remetem ao “brejeiro” e a sua realização ideológica liberal: a “carnavalização”, nas palavras de Silviano. A felicidade do pobre é contraposta em tom pitoresco à infelicidade dos ricos, recobrindo a distância entre eles a partir de uma aproximação pela via da rusticidade, aglutinando o movimento geral de pobres e ricos, o primeiro em busca do dinheiro (que não traz felicidade) e o segundo em busca da felicidade (que não traz dinheiro).
Saindo de um comentário geral sobre o discurso romântico, que, por sua vez, nos remete aos clássicos romances do século XIX até Charles Chaplin em Luzes da cidade (1931), como alerta o autor, chegamos ao objeto do ensaio de Silviano, o romance de Almeida. Nele, temos um “trapaceamento” da oposição entre ricos e pobres, colocada como pano de fundo para o romance, no qual a alegria dos pobres e a tristeza dos ricos figuram como palco para o desenrolar das peripécias do jovem Leonardo e os percalços de seu pai. A trapaça é a tematização do segmento social que sobressai aos extremos do quadro de classe brasileiro, cujo centro são os remediados, localizados, por sua vez, entre a pobreza e a riqueza extremas. Dessa forma, o ócio, a festa, a fofoca, o dinheiro e as aventuras moralmente duvidosas são postas à frente do leitor para se desenhar a história de formação de um menino em pleno período joanino do Rio de Janeiro, crescendo entre homens livres (e pobres) que esbanjam essas mesmas distâncias e aproximações de classe. Esse é o parti pris de Silviano para descrever, em tom poético, algumas das figuras-chave desse romance, que aparecem enumeradas no seu pequeno ensaio, de modo a apresentar a maneira como diversos personagens se adéquam ao esquema social brasileiro.
Inicialmente, o livro de Almeida foi publicado de forma anônima em capítulos no jornal Correio Mercantil do Rio de Janeiro, durante o período de 1852 a 1853. Posteriormente, em 1854, o livro foi lançado com autoria enigmática: assinava “um brasileiro”. O autor “genérico” do romance já apresenta os índices que serão importantes para as leituras que o aproximam de uma espécie de retrato do Rio de Janeiro, além de lido como uma apresentação da particularidade civilizacional brasileira, sua característica indiciária, na qual a figura de Leonardo, um malandro, figura como metonímia do povo brasileiro. A escrita da narrativa incorpora a linguagem utilizada pelas camadas populares, tanto da classe média quanto da baixa, em contraposição ao padrão romântico da época, que geralmente retratava os ambientes aristocráticos. O enredo gira em torno da vida de Leonardo, conhecido desde criança por suas traquinagens e eventualmente se tornou um sargento de milícias, posição de relativo prestígio no período colonial. Pai e filho, ambos Leonardo, têm suas vidas atravessadas pela malandragem, pelo roubo miúdo e pelas situações-limite que revelam uma espécie de má-fé e mal-estar na conformação brasileira pré-Abolição, além do espírito rixoso generalizado numa dimensão interpessoal, no qual as personagens são marcadas por “rixas, rivalidades, vinganças” (Otsuka, 2016: 13).
Vamos aos personagens. A primeira figura descrita por Silviano é o Caboclo velho, cujo passado é escondido do leitor. Apesar de não sabermos sua história, presumimos ser um negro alforriado, cuja ocupação, às margens do trabalho formal, aproxima-se da de mandingueiro que traz fortuna aos outros. Seu público recobre o espectro social de pobres a figuras endinheiradas, todos atrás de prosperidade afetiva ou financeira. Silviano recorda o comentário de Almeida sobre sua casa imunda e desorganizada, característica espelhada no corpo do próprio Caboclo: casa e rosto esfarrapados. Assim, o velho é uma dessas personagens que transitam pelas classes, sobretudo a partir de sua ocupação peculiar, que surge na trama com a visita de Leonardo Pataca em meio aos seus desamores. É nessa cena, inclusive, que somos apresentados à figura do chefe de polícia Vidigal, que logo irá flagrá-lo em meio à feitiçaria – essa espécie de mercadoria ilícita e perigosa – vista com maus olhos pelo poder público, evento que acabará com a prisão de Leonardo e a sua consequente soltura graças aos limites escorregadios entre público e privado.
Outra figura importante trazida à baila é o compadre, apregoado no início do romance após o sumiço da esposa de Leonardo Pataca, que foge a Portugal e abandona o filho. O compadre, barbeiro de profissão, é quem se responsabiliza pela criação do filho de Leonardo, garantindo educação moral e tentando, a todo momento, contornar os problemas criados na vizinhança pelas traquinagens do menino maroto. Porém, o que salta aos olhos é o passado duvidoso do compadre, o período em que adquirira uma herança financeira pouco usual para os remediados. Ao aprender o ofício de barbeiro quando jovem, o compadre viajou em navios negreiros com o objetivo de sangrar os escravizados, garantindo os cuidados ínfimos para a sobrevivência do maior número de pessoas no difícil trânsito transatlântico. Numa das viagens, um marujo à beira da morte lhe confia sua herança pedindo-lhe que a entregue à sua filha. Na leitura do capítulo dedicado à história do compadre, descobrimos que a promessa é quebrada e o barbeiro rouba a herança do pobre esfarrapado do navio. Assim é revelada a história infame do “herdeiro de araque”, como escreve Silviano na caracterização do personagem. É essa herança, fruto da expropriação alheia – como era parte das riquezas produzidas no Brasil – que Leonardo adquire no dia de seu casamento com Luisinha, afilhada de Dona Maria.
A última figura importante descrita por Silviano é Chico-Juca, uma espécie de valentão que vive de brigas e confusões. A pedido de Leonardo Pataca, durante uma celebração, Chico-Juca inicia uma briga com um violeiro na presença de Vidigal, que logo mandou revistar os quartos e descobre o mestre-de-cerimônias de ceroulas e solidéu na companhia de sua amiga cigana, por quem Leonardo estava apaixonado. É para o ato de vingança do nosso personagem que os serviços de Chico-Juca são solicitados.
As três figuras, como aponta Silviano, além de remediados que vivem entre o ócio e a venda de serviços ímpios, transformam suas ocupações pouco usuais em mercadorias também pouco usuais. Assim, a forma da mercadoria, que ocupa o centro das sociedades “civilizadas”, ganha, no Brasil, uma enquadratura singular, no qual a feitiçaria, o roubo e a briga – tomemos os exemplos que Silviano ressalta do romance de Almeida – são transformados em trabalho vendável por aqueles que estão às margens do mercado assalariado.
3.
Tentei demonstrar algumas peculiaridades de “Imagens do remediado” mais como uma tentativa de aproximar as obras de Candido e Schwarz – ou, digamos, ao debate tributário da historiografia de Caio Prado Júnior – das análises de Silviano, ou ainda de apresentar o esforço deste último em se enfronhar nas leituras de Schwarz e Candido do que defender uma simples cadeia de influência. Como mencionei na argumentação, a sinalização a posteriori da presença de Caio Prado no corpo da própria argumentação sociológica de Silviano, materializada na inserção de uma epígrafe, me parece uma forma de contemplar os termos de seus interlocutores, quer dizer, a historiografia marxista partilhada por Candido e Schwarz que Silviano tão bem conhecia já à época. Ou ainda na dedicatória do texto, quando menciona a “sugestão” de Schwarz, uma espécie de ponto zero da ideia do ensaio, na qual, podemos supor, ocorreu após uma troca entre os críticos, além, é claro, da menção explícita ao artigo incontornável de Candido sobre as Memórias de Almeida.
Por mais que as diferenças entre esses intelectuais seja patente em diversas ocasiões – lembremos de “Apesar de dependente, universal” e “Atração do mundo (Política de globalização e de identidade na moderna cultura brasileira)”, ambos de Silviano Santiago –, o objetivo desta hospedagem foi justamente pensar as pontes possíveis entre diferentes campos da crítica. Não devemos, por isso, esquecer as distâncias entre a análise “funcional-dialética” de Candido, a “dialética negativa” de Schwarz e a vertente do “entre-lugar” de Silviano – quadro morfológico apresentado por André Botelho e Maurício Hoelz (2020) em ensaio publicado no Suplemento Pernambuco –, onde cada uma, ao seu modo, discute o problema da originalidade e da dependência no Brasil, tendo como pano de fundo as relações assimétricas entre as nações. Assim, usando a obra de Silviano como pedra de toque, a dinâmica literária dos países dependentes não se dá nem pela “dupla consciência” (provinciana e cosmopolita), nem necessariamente pelo sentimento de inadequação em relação aos países europeus, mas justamente na repetição em diferença dos trópicos, na qual a posição da cópia e do original são abaladas – para não dizer invertidas.[7]
O ponto é que, em alguns momentos, os intelectuais deliberadamente se aproximam, num gesto tanto de honestidade intelectual quanto de hospitalidade teórica, quer dizer, num movimento de reconhecimento do ponto de vista alheio e de uma generosidade na conexão entre perspectivas heterogêneas. Tentei brevemente apresentar como, num pequeno ensaio, “Imagens do remediado”, Silviano sinaliza sua afinidade – digamos, eletiva? – com as teses do grupo que poderíamos chamar genericamente de “tradição crítica brasileira”, numa espécie de aceno ao outro lado do flanco do debate cultural, mas que, na década de 1980, constituiu um espaço de fluxo e trocas – obviamente, com embates e conflitos – entre diferentes grupos teóricos. Portanto, é na elaboração de um ensaio sobre o romance de Manuel Antonio de Almeida do século XIX, na meditação sobre os paradoxos do Brasil entre escravidão e liberalismo, que Silviano esbarrou com as discussões de Schwarz e Candido, reencontrando caminhos para se pensar a contradição por excelência no Brasil, a ferida da escravidão e a importação de certas ideias aos trópicos, que perturbou e perturba nosso pensamento social, ontem e hoje.
Notas
[1] Intuição que me foi confirmada em entrevista concedida pelo próprio autor, Silviano, no dia 2 de fevereiro de 2023.
[2] Como é o caso, por exemplo, de “O teorema de Walnice e sua recíproca”, outro ensaio de Vale quanto pesa, que discute a crítica de Walnice Nogueira Galvão ao romance Tereza Batista cansada de guerra (1972), de Jorge Amado. Sobre o tema, ver Tresoldi (2023).
[3] Para uma discussão sobre a maneira específica como Antonio Candido se insere na tradição do marxismo ocidental, ver Musse (1995).
[4] Conferir Torre (2019).
[5] Para uma discussão em torno da noção de “formação” na obra de Candido e as observações de Silviano, ver Santiago (2020).
[6] Na abertura do ensaio “Dialética da malandragem”, Candido (2010: 17-18) aponta para a leitura de José Veríssimo, cuja análise enquadra o romance de Almeida. Logo depois, pensa na leitura de Mário de Andrade, que, por sua vez, chama a categoria de romance picaresco para pensar o livro.
[7] A síntese de ideias apresentadas nestes parágrafos foi retirada do esquema de Hoelz e Botelho (2020).
Referências
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BOTELHO, André & HOELZ, Maurício. (2020). Brazil trezentos, trezentos e cinquenta. Suplemento Pernambuco, novembro de 2020. Disponível em: https://suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/77-capa/2581-brazil-trezentos,-trezentos-e-cinquenta.html
CANDIDO, Antonio. (2010). Dialética da malandragem. In: O discurso e a cidade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, pp. 17-47.
MUSSE, Ricardo. (1995). Duas ou três coisas sobre Antonio Candido. Trans/Form/Ação, n. 18, pp. 43-50.
OTSUKA, Edu Teruki. (2016). Era no Tempo do Rei: Atualidade das Memórias de um Sargento de Milícias. Cotia, SP: Ateliê Editorial.
RICUPERO, Bernardo. (2011). Posfácio: História e política em Formação do Brasil contemporâneo. In: PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Letras.
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SANTIAGO, Silviano. (2018). Ruptura e tradição: Uma literatura nos trópicos 40 anos. Entrevista concedida a Andre Bittencourt e Maurício Hoelz. Blog BVPS, [S. l.], 09 set. 2018. Disponível em: https://blogbvps.wordpress.com/2018/09/09/ruptura-e-tradicao-uma-literatura-nos-tropicos-40-anos-entrevista-com-silviano-santiago/
SANTIAGO, Silviano. (2009). Silviano Santiago. Literatura e Sociedade, [S. l.], v. 14, n. 11, pp. 52-53.
SANTIAGO, Silviano. (1982). Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
SANTIAGO, Silviano. (2020). A literatura brasileira da perspectiva pós-colonial – Um depoimento In: NOLASCO, Edgar Cézar; MEDEIROS, Pedro Henrique Alves de. Um livro para Silviano Santiago: entre-lugares críticos e literários. Campinas, SP: Pontes Editores, pp. 31-51.
SANTIAGO, Silviano. (2019). Hélio Oiticica em Manhattan. In: 35 ensaios de Silviano Santiago: seleção e introdução Italo Moriconi. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 444-452.
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SCHWARZ, Roberto. (1987). Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’. In: Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 129-155.
TORRE, Bruna Della. (2019). Modelos críticos: Antonio Candido e Roberto Schwarz leem Oswald de Andrade. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 74, pp. 178-196.
TRESOLDI, Caroline. (2023). Compromisso com o público: por onde ir? Blog da BVPS, post de 10/05/2023. Disponível em: https://blogbvps.com/2023/05/10/hospedagem-vale-quanto-pesa-compromisso-com-o-publico-por-onde-ir-por-caroline-tresoldi/
A imagem que abre o post é de autoria de Lena Bergstein, Série Galáxias, 2018. Fotografia e superposições