
No décimo primeiro post da Série Nordeste BVPS, compartilhamos o texto “O insolúvel dilema”, de Rodrigo Jorge Ribeiro Neves, que analisa alguns aspectos do romance S. Bernardo, de Graciliano Ramos, como a relação de Paulo Honório com o outro e os modos como essa relação estruturam a narrativa, em especial com Madalena, personagem-chave que mobiliza uma profunda guinada na história do protagonista. A utilização de estratégias narrativas influenciadas pela estética expressionista contribui para ressaltar a dramatização de Paulo Honório em seu processo de revisão de si mesmo e a constatar seu inevitável fracasso.
A Série Nordeste BVPS é uma iniciativa que une a vocação do Blog da BVPS – formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes – aos propósitos pedagógicos da disciplina Sociologia Política do Nordeste, que está sendo ministrada na Graduação em Ciências Sociais do IFCS/UFRJ neste primeiro semestre de 2023.
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Boa leitura!
O insolúvel dilema
Por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves (UFRJ)
A cena final do filme de Leon Hirszman, de 1972, sobre o objeto desta aula me instiga desde a primeira vez que a vi. A interpretação brechtiana de Othon Bastos, que parece ter nascido para vestir Paulo Honório, impressiona. A fotografia confere uma dramaticidade intensa e intimista, revelando o desamparo do protagonista diante da devastação que promoveu na vida de todos para que pudesse se tornar o proprietário da fazenda de S. Bernardo. O olhar para a câmera, a voz em off, parece se dirigir a um espelho, para onde ele lança sua última fala: “E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos” (Ramos, 2009: 199). O mesmo texto do romance de Graciliano Ramos é dito pelo ator ao interpretar o personagem na película. Depois disso, o personagem recosta a cabeça e as luzes vão se apagando lentamente. Paulo Honório admite o esgotamento físico, mas a máquina implacável que ele faz funcionar não aceita suspensões. O descanso é de “uns minutos”. Nada mais.
Em texto incontornável publicado no Blog da BVPS, Silviano Santiago (2023) aponta para duas características do que há de melhor na literatura brasileira, desde o século XIX, que são sintomáticas das condições socioeconômicas em que este país se desenvolveu, e a distingue dos nossos vizinhos latino-americanos: a parcimônia do seco e o fascínio do sólido. No caso de Graciliano Ramos, essas concepções de escrita se manifestam de forma diferente em cada livro, como já havia notado o historiador e crítico literário Otto Maria Carpeaux, no entanto, “os une uma visão comum do homem e do seu universo, dada por uma postura linguística, que termina por traduzir a formação filosófica do artista” (Santiago, 2023). Em Graciliano Ramos, a dimensão estética e a dimensão ética se imbricam de tal maneira que a sua literatura dramatiza, em termos linguísticos e narrativos, os problemas sociais e humanos por ele enunciados em seus textos. A forma literária, portanto, encena os conflitos e as fissuras dos indivíduos em sua relação com o outro e com o mundo ao seu redor.
O romance S. Bernardo, publicado em 1934 pela editora Ariel, está entre as obras do autor alagoano em que essas tensões se expressam de modo, literariamente, mais sofisticado, em que cada capítulo e expressão parecem ter sido pinçados com a precisão de um relojoeiro na manipulação da engrenagem medidora do mover do tempo. Aliás, o tempo é um dos elementos de uma estrutura narrativa mais significativos. Aquele que domina o tempo, leva a história para onde desejar. Não por acaso, Antonio Candido recordara certa vez que “o tempo é o tecido da nossa vida”. E narrar, afinal de contas, é não apenas uma maneira de tentar demonstrar um domínio sobre o tempo, mas é também uma forma de sobreviver. Scheherezade, no Livro das mil e uma noites, por meio de suas “narrativas-molduras”, consegue impedir as mortes provocadas pelo rei Shahryar e também demonstrar a capacidade que a arte de contar histórias tem de dominar quem quer que seja, definindo, até mesmo, quem vive e quem morre. Paulo Honório toma as rédeas de sua própria história, como quem reconhece a importância do controle da narrativa para manter ainda tudo sob seu domínio.
Antes de discutirmos um pouco melhor o enredo do romance e alguns aspectos de sua narrativa, talvez valha a pena comentar sobre o percurso criativo de Graciliano Ramos até chegar no livro. Assim como em outras obras, Graciliano parte de um conto para escrever S. Bernardo. Desde as suas primeiras incursões literárias, o autor alagoano sempre nutriu interesse nos marginalizados e flagelados sociais, em desvendar-lhes as condições em que foram gestados e os caminhos tortuosos de sua natureza humana. Em carta ao amigo J. Pinto da Mota Lima Filho, de 1º de janeiro de 1929, Graciliano relata ter encontrado em sua estante “um par de tamancos imprestáveis, uma coleção de selos e algumas resmas de manuscritos” (Ramos, 2013: 87). Dentre os manuscritos, estavam dois contos inacabados, “A carta”, escrito em 1924, e “Entre grades”, em 1925. O intuito era “fabricar dois tipos de criminosos”. O primeiro deu origem a S. Bernardo, o segundo, Angústia.
Em entrevista a Paulo Medeiros e Albuquerque, para A Gazeta Magazine, em 1941, Graciliano Ramos discorre um pouco mais sobre o primeiro conto, elencando algumas características mais formais: “‘A carta’, do ponto de vista acadêmico, era um conto perfeito. Só faltava uma coisa: ser um conto mais ou menos aproveitável. Tudo, tudo perfeitinho… […].” (apud Lebensztayn & Salla, 2014: 102-103). Quando indagado pelo entrevistador sobre os romances, em torno do percurso que o levou até o seu segundo livro, o autor explica: “S. Bernardo veio mais tarde, ali por volta de 1932. Peguei o primeiro conto que havia escrito, aquele ‘A carta’, do qual já lhe falei. Mas só aproveitei o personagem central, Paulo Honório, e o assunto” (apud Lebensztayn & Salla, 2014: 104-105). Embora não tenhamos acesso ao referido manuscrito e não possamos constatar em que medida o conto corresponde ao romance, por meio das cartas e entrevistas é possível mapear as ressonâncias da história na concepção de S. Bernardo e acompanhar a configuração de seu projeto literário.
O enredo do romance se desenvolve em torno de Paulo Honório e de suas ações para se tornar o dono da fazenda de S. Bernardo. De origem humilde e sofrida, ele não mede esforços nem escrúpulos para conseguir aquilo que almeja. Ele é um rolo compressor. Arruina o Padilha, herdeiro da fazenda, manda matar o Mendonça, desafeto que ameaça a demarcação de seu território, e humilha de todas as formas aqueles que o cercam. Sua sanha autoritária e destrutiva se impõe diante de tudo o que se coloca em seu caminho para fazer de S. Bernardo uma fazenda próspera e moderna, de acordo com as mudanças sociais, políticas e econômicas de seu tempo. O capítulo VII, neste sentido, é bastante representativo do esforço do escritor em expor essa transformação da paisagem nordestina, apresentando índices desse processo de modernização: “Mudou tudo. Gente nasceu, gente morreu, os afilhados do major cresceram e foram para o serviço militar, em estrada de ferro./ O povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em cidade, com chefe político, juiz de direito, promotor e delegado de polícia” (Ramos, 2009: 34).
Apesar de agora contarem com a presença do médico, no lugar dos santos e do advogado, no lugar do major, o vigário ainda possuía seu quinhão de influência, fechando uma capela, mas erguendo uma igreja. Seu Ribeiro, o major, já não exercia o mesmo poder de outrora, tornando-se mero contador do latifundiário. As moças e os rapazes não dançavam mais, de braço dado, ao redor das fogueiras juninas. Não era apenas uma alteração de hábitos e personagens, mas de toda uma configuração social que alimentava as ambições de Paulo Honório e também era alimentada por estas: “Efetivamente a cidade teve um progresso rápido. Muitos homens adotaram gravatas e profissões desconhecidas. Os carros de bois deixaram de chiar nos caminhos estreitos. O automóvel, a gasolina, a eletricidade e o cinema. E impostos” (Ramos, 2009: 40).
Na literatura de Graciliano Ramos, a alteridade exerce uma função mobilizadora das ações das personagens e dos seus percursos na narrativa. Enquanto em Caetés, o conflito se dá na relação “acima do outro” e em Angústia, “diante do outro”, em S. Bernardo temos a “erupção do outro” (Bueno, 2006). Quem é o outro neste caso? Madalena, a professora. É por meio dela que Paulo Honório se vê em face dos seus limites e é forçado a admitir o próprio fracasso. Afinal, não estava interessado no casamento por qualquer razão afetiva. Convenceu-se do benefício da instituição para transmitir o seu legado à posteridade. Contudo, o fazendeiro não contava com o fato de Madalena ser a única que não se objetifica e, portanto, não se submete à sua vontade.
O suicídio da professora expressa, por um lado, a prevalência da opressão e da violência sobre qualquer força que se coloque diante do irrefreável desejo de expansão e dominação capitalistas, mas, por outro, também desnuda a natureza autofágica desse sistema. E é sintomático perceber que Paulo Honório constata o seu fracasso justamente quando é confrontado com sua própria brutalidade ao reexaminar sua história e a de sua conquista. A esse respeito, Antonio Candido ressalta um aspecto fundamental para a compreensão da estrutura do romance de Graciliano Ramos:
Dois movimentos o integram: um, a violência do protagonista contra homens e coisas; outro, a violência contra ele próprio. Da primeira, resulta São Bernardo-fazenda, que se incorpora ao seu próprio ser, como atributo penosamente elaborado; da segunda, resulta São Bernardo-livro-de-recordações, que assinala a desintegração da sua pujança. De ambos, nasce a derrota, o traçado da incapacidade afetiva (Candido, 2006: 41).
A fazenda. A memória. A articulação desses dois movimentos apontados pelo crítico dá os contornos em que se estrutura o romance e suas personagens. Começamos esta aula pelo final, a partir de uma cena cinematográfica, em que Paulo Honório, mirando-se e mirando-nos, não vê mais saída diante de sua derrota. Todos estão dormindo, menos ele. “Patifes!”. A secura, a solidez e a sobriedade da narrativa são predicados comumente atribuídos a esse romance, que se acentuam em sua última incursão no gênero, Vidas secas (1938). A frase límpida e cortante, que não brilha como “ouro falso”, preenche as páginas de S. Bernardo com a mesma obsessão de seu protagonista com o alargamento de suas fronteiras. Entretanto, é preciso também ressaltar a estética do excesso, da abundância e da repetição, característica presente em S. Bernardo, que o Velho Graça esgarça ainda mais em outras de suas narrativas.
Como sabemos, S. Bernardo é um livro sobre a fazenda e sobre as memórias do protagonista. São 36 capítulos, em que, a partir do XIX, ou seja, precisamente da segunda metade do livro, ele encara a perturbação da ordem linear com a qual sua história estava sendo contada. Assim, Paulo Honório é deslocado, de modo brutal (tal como sua natureza), do embate objetivo com a realidade (sobre a qual ele mantinha controle desde o primeiro capítulo) para o confronto subjetivo com o outro e consigo mesmo: “Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.” (Ramos, 2009: 107). A partir de então os contornos que citei anteriormente vão se tornando mais nebulosos e esfumaçados. No entanto, a dimensão humana acentuada por esse sfumatto se dissolve e se contorce à medida que a história avança na pesquisa do sujeito sobre si e seus atos:
Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte! A desconfiança é também consequência da profissão. Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes (Ramos, 2009: 202).
Incapaz de admitir responsabilidade sobre os insucessos, Paulo Honório tenta transferir para fatores externos a ele, como sua “profissão”, a culpa por todas essas “qualidades tão ruins”. Não estamos diante apenas da representação de uma zona indistinta que intenta traduzir a impossibilidade de apreender os matizes da natureza humana, mas, principalmente, da expressão de um sujeito cindido e deformado, características reforçadas pelas imagens de exagero.
Na época em que escrevia os primeiros capítulos de S. Bernardo, Graciliano Ramos estava internado em um hospital, de onde guardara impressões que elaborou em duas narrativas curtas, “O relógio do hospital” e “Paulo”, reunidas em seus livros de contos Dois dedos (1945) e Insônia (1947). Os delírios de enfermo no hospital tornaram-se literatura em seus contos e romances. É mais comum pensarmos nessa suspensão lírica da realidade em Angústia ou Infância, devido ao grau de distensão simbólica e expressiva dessas narrativas. Se nestas é possível apontar elementos da estética expressionista, em S. Bernardo também, embora com alguma contenção em relação às duas últimas. Além do seco e do sólido, o fluido e o abundante se manifestam na literatura de Graciliano como forma expressiva da dramatização de seus conflitos. Diferentemente da impressão, a expressão é “um movimento […] do interior para o exterior: é o sujeito que por si imprime o objeto” (Argan, 1992: 227).
Dessa maneira, a desumanização do corpo de Paulo Honório passa não por uma despersonalização ou animalização, como ele realizava nas pessoas, e sim por uma progressiva racionalização que os devaneios o levam a enfrentar. Depois de passar longos capítulos eliminando e objetificando todo vestígio de humanidade que se impusesse no projeto de desenvolvimento de sua propriedade, o fazendeiro de S. Bernardo se enxerga no espelho e imprime nele aquilo que sempre esteve ali. E o insolúvel dilema, por meio da literatura, se impõe: afinal é humana a face perversa e desumana do capitalismo.
Referências
ARGAN, Giulio Carlo. (1992) Arte moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras.
LEBENSZTAYN, Ieda & SALLA, Thiago Mio (org.). (2014). Conversas. Record: Rio de Janeiro.
RAMOS, Graciliano. (2013). Cartas. Rio de Janeiro: Record.
RAMOS, Graciliano. (2009). S. Bernardo. Rio de Janeiro: Record.
SANTIAGO, Silviano. (2023). A parcimônia do seco, o fascínio do sólido. Blog da BVPS. Post do dia 16 maio 2023. Disponível em: <https://blogbvps.com/2023/05/16/serie-nordeste-a-parcimonia-do-seco-o-fascinio-do-solido-por-silviano-santiago/>.
Imagem: Joana Lavôr, colagem da série Dei Normani, Sicília. Para a disciplina/série Blog da BVPS Nordeste Autopoiesis.