Resenha | Minas é o mundo: a viagem e o glossário, por Gabriel Martins da Silva

Publicamos hoje resenha de Gabriel Martins da Silva do Glossário MinasMundo (Relicário Edições, 2024), organizado por André Botelho, Mariana Chaguri, Maurício Hoelz, Pedro Meira Monteiro e Wander Melo Miranda. O Glossário resulta de 4 anos de trabalho de pesquisadoras e pesquisadores do projeto MinasMundo: o cosmopolitismo na cultura brasileira.

O lançamento do Glossário ocorrerá no seminário MinasMundo, Ouro Preto (2024-1924), no dia 26 de março, terça-feira, às 18 horas, no Auditório do Museu da Inconfidência de Ouro Preto.

Boa leitura!


Minas é o mundo: a viagem e o glossário

Por Gabriel Martins da Silva (PPGLCC/PUC-Rio)         

O retornar para estes gerais de Minas Gerais. Para trás deixamos várzeas, cafundão, deixamos fechadas matas.

(João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas).

Em maio de 1952, João Guimarães Rosa realizou uma das travessias mais importantes de sua vida como escritor. Ao longo de dez dias, num trajeto de aproximadamente 240 quilômetros, entre Três Marias e Araçaí, guiado pelo vaqueiro Manuelzão, o diplomata atravessou o sertão mineiro, com sua caderneta em mãos, anotando as falas, as paisagens e os animais, tudo isso no ritmo da boiada que o acompanhava.

Essa não seria a primeira viagem “de campo” de Rosa, já tendo visitado o Pantanal, em 1947 – que produziu textos como “Entremeio: com o vaqueiro Mariano”, “Meu tio Iauaretê” e “Uns índios – sua fala” –, e o sertão mineiro, especificamente a região de Paraopeba, numa primeira viagem em dezembro de 1945, nomeada pelo próprio autor como “Grande excursão a Minas”. Porém, a viagem decisiva para a obra de Rosa foi a da boiada, cujas cadernetas, hoje depositadas no IEB-USP, serviram de base para a escrita dos monumentais Grande sertão: veredas e Corpo de baile, ambos publicados em 1956.

É sabido que o gesto de Rosa não é novo na história da literatura brasileira, isto é, o deslocamento do escritor, sua visita in loco, no convívio com outros seres, lugares e povos. Temos o caso emblemático das viagens de Mário de Andrade, em 1927, tanto para a região amazônica quanto para o Nordeste do Brasil, experiência amplamente registrada em sua correspondência com Manuel Bandeira e na edição póstuma de O turista aprendiz. Sabemos da relevância dessa viagem, em termos pessoais e literários, para a formulação, elaboração e escrita de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter e Ensaio sobre a música brasileira, ambos de 1928, momento decisivo para o movimento antropofágico.

Na esteira da descrição que fizemos de Rosa, uma outra viagem, também mineira, ergue-se como marco cultural. Em 1924, a comitiva modernista, junto ao poeta franco-suíço Blaise Cendrars, viajou às cidades históricas de Minas Gerais, numa incursão que ficou conhecida como “Viagem de descoberta do Brasil”, nome dado por Oswald de Andrade. Os modernistas, que, nesse caso, vão desde Tarsila do Amaral a René Thiollier, defensores das vanguardas e da superação do passado, são afetados pela arte colonial, por uma outra estética não mais ligada ao primitivismo das vanguardas europeias, mas aos fenômenos culturais produzidos em território brasileiro, no contato entre colonizadores e colonizados, nisso que formava o passado brasileiro. Assim, com o embaralhamento das coordenadas que norteiam o modernismo em sua feição paulista, quer dizer, o tema do nacional, da vanguarda, contra o passadismo, a viagem a Minas, a descoberta do período colonial, da arte barroca e do encontro com o Brasil profundo, marcou, de vez, a geopolítica cultural brasileira, colocando Minas não apenas no centro do debate, como também em diálogo com o mundo.

É nesse espírito, ao mesmo tempo cosmopolita e mineiro, que a publicação do Glossário MinasMundo (Relicário Edições, 2024) vem à tona. Em comemoração ao centenário da viagem dos modernistas às cidades históricas, o Glossário também pretende coroar o projeto MinasMundo: o cosmopolitismo na cultura brasileira, iniciado em 2020, cuja agenda cultural marcou os últimos anos do cenário intelectual nacional e mundo afora. O projeto é coordenado pelos pesquisadores André Botelho, Mariana Chaguri, Maurício Hoelz, Pedro Meira Monteiro e Wander Melo Miranda, formado ainda por uma cooperação de mais de setenta pesquisadoras e pesquisadores, de diferentes instituições, áreas do conhecimento e atuação acadêmica, nucleada em cinco universidades: a UFRJ, a UFMG, a Universidade Princeton, a Unicamp e a UFRRJ. O lançamento do Glossário ocorrerá no seminário MinasMundo, Ouro Preto (2024-1924), numa parceria com a Prefeitura de Ouro Preto, no dia 26 de março, terça-feira, às 18 horas, no Auditório do Museu da Inconfidência.

O Glossário MinasMundo é formado por mais de setenta verbetes, assinados por especialistas brasileiros e estrangeiros em temas caros ao projeto, com uma série de textos introdutórios, como a abertura, o manifesto MinasMundo e um balanço da experiência, além de um posfácio generoso escrito a quatro mãos por Maurício Hoelz e André Botelho. Quem assina sua organização são os mesmos coordenadores do projeto MinasMundo, que culminou numa impressionante edição de 550 páginas, monumento à altura do legado do projeto para o meio acadêmico e para fora dele.

Assim, o livro atravessa dimensões incontornáveis da cultura brasileira, da vida intelectual, das artes plásticas, da literatura, da moda, do cinema, das ciências sociais e da história, todas ligadas às Minas Gerais, mas não se esgotando nelas, indo além e relacionando-se com o debate cosmopolita. Atesta-se isso na própria fatura do texto, num diálogo instigante entre autores brasileiros e as discussões de ponta feitas fora do Brasil, colocando-se em pé de igualdade com as últimas novidades teóricas, num gesto de cosmopolitismo típico das experiências intelectuais brasileiras.

Um antecedente do Glossário no Brasil também é de filiação mineira: trata-se de Silviano Santiago, figura essencial para a formulação do MinasMundo. Na condição de professor da PUC-Rio no começo da década de 1970, Silviano oferece um curso de introdução a diversos autores franceses, todos identificados com o que ficou conhecido como pós-estruturalismo francês. Ao fim, o curso termina por se tornar uma espécie de introdução à obra de Derrida, filósofo que Silviano conhecera em Baltimore, ainda na década de 1960, período em que fora professor nos Estados Unidos. O curso, tornado uma espécie de grupo de estudos, teve como resultado, no fim do semestre, a partir de uma proposta visionária do próprio Silviano, um glossário “conceitual” do pensamento de Derrida – obviamente, no que diz respeito à obra do filósofo publicada até meados de 1975. No ano seguinte, Glossário de Derrida (1976) é publicado pela editora Francisco Alves, um dos marcos dos estudos sobre Derrida fora da França. Este glossário era uma tentativa de sistematização (mesmo que impossível) de alguns quase-conceitos da obra de Derrida, esforço teórico de importância enorme na introdução do pensador no contexto latino-americano.

Na experiência do mineiro Silviano de 1976, o glossário tentou a sistematização impossível de um autor fragmentado e assistemático como Derrida; no Glossário MinasMundo, a tarefa é similar. A pergunta que temos diante do projeto é, justamente, como reunir, numa forma consagrada como a do glossário, um aprendizado tão díspar como foram os últimos anos do MinasMundo? Quer dizer, como reunir essa infinidade de temas, agenciando cada tópico ao seu modo, tentando, ao fim e ao cabo, garantir alguma totalidade, mesmo que virtual, entre todos os verbetes que o compõem?

Não apenas nesse aspecto, mas, assim como o glossário de Silviano em 1976, o Glossário de 2024 é também fruto do trabalho coletivo de diversos pesquisadores, que, num projeto de colaboração, produziram algo que, mais do que traçar pontes, formou um arquivo sólido de uma experiência intelectual. Nesse sentido, solidificaram-se vínculos institucionais e garantiu-se a sobrevida das melhores práticas da universidade financiada com dinheiro público, com acesso livre do material produzido, democratizando o conhecimento, ocupando espaços e tornando acessíveis uma série de debates.

Retornemos rapidamente a Guimarães Rosa para finalizar nossa pequena viagem da viagem do MinasMundo. Assim como os modernistas em 1924, Rosa se aproximou do centro do Brasil, num deslocamento que acreditou alimentar seu espírito e sua literatura, na união entre erudito e popular, quando na fala do sertanejo se fazia ouvir Homero ou Goethe. Esse cruzamento, perigoso e brilhante, deu-se, em grande medida, graças à experiência real junto àquela paisagem, junto aos bois, aos vaqueiros, aos buritis, numa convocação de elementos heterogêneos em constante negociação. Como a boiada de Rosa, na viagem de 1952, o Glossário MinasMundo chega às mãos do leitor com uma tarefa tão complexa quanto. A reunião dos temas mais diversos, da música à literatura e às artes plásticas, numa combinação transtemporal e acronológica de autores, formas e intensidades, cuja negociação nos coloca numa posição análoga a de Rosa: a de lidar com os materiais os mais distintos, com a capacidade potente de nos fazer repensar o Brasil e a nós mesmos. É preciso força para adentrar o dentro do dentro do dentro!

O vídeo é de autoria de Rennan Pimentel

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