O populismo reacionário e o golpe de 1964: a força ideológica da disputa pela memória, por Christian Edward Cyril Lynch e Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

No Especial BVPS sobre os 60 anos do Golpe de 1964, publicamos ensaio de Christian Edward Cyril Lynch (IESP-UERJ) e Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro (IESP-UERJ) sobre o populismo reacionário e as disputas pela memória em torno da ditadura militar.

Boa leitura!


O populismo reacionário e o golpe de 1964: a força ideológica da disputa pela memória

Por Christian Edward Cyril Lynch (IESP-UERJ) &

Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro (IESP-UERJ)

Durante as investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), um obscuro deputado do Rio de Janeiro começaria a ganhar destaque na imprensa, agindo publicamente para tentar barrar as visitas em instalações das Forças Armadas suspeitas de sediar torturas e execuções durante a ditadura militar (Almada, 2021). Conhecido até então apenas pela audiência de programas sensacionalistas de televisão, por atacar temas como a união entre pessoas do mesmo sexo e o comportamento público de artistas e celebridades, e pelo eleitorado movido por pautas corporativas de defesa dos interesses de militares e policiais, o deputado Jair Bolsonaro, em seu combate contra a CNV, exporia ao público, em estilo truculento e “politicamente incorreto”, alguns dos topoi que tornar-se-iam familiares ao discurso de extrema direita no Brasil pelos próximos anos: a denúncia do “projeto hegemônico” do PT, a conspiração comunista para violar a verdadeira história das Forças Armadas brasileiras, a recusa da interpretação da memória de 1964 na chave da violação e sua reafirmação em uma chave salvacionista.

A imagem dos militares no discurso bolsonarista foi construída a partir da mítica do Regime Militar como modelo de bom governo. A utopia reacionária de restauração de uma ditadura militar republicana, contudo, deve pouco a trabalhos históricos elaborados por intelectuais conservadores, em matéria de processo político, econômico ou social, que geralmente enalteceram a capacidade do regime de gerar crescimento econômico sem prejuízo da ordem pública. Pode-se dizer também que ela corresponde pouco à autoimagem que os próprios generais-presidentes faziam do regime militar, sobretudo durante a transição (D’Araujo & Castro, 2021). A imagem positiva que a extrema direita alimenta do período militar foi aquela desenvolvida quando foram expostas às acusações de violações reiteradas de direitos humanos, na primeira década da Nova República. Seus responsáveis foram radicais do Exército, interessados em defender a imagem da corporação contra as numerosas acusações de violação de direitos humanos formuladas em obras como Brasil Nunca Mais (1985), de autoria de líderes civis e religiosos favoráveis à redemocratização.

Duas são as principais fontes dessa boa imagem do Regime Militar, reduzido a um período de heroica resistência do povo brasileiro contra o comunismo. A primeira é o manuscrito conhecido como Orvil: tentativa de tomada do poder, obra de autoria não identificada, destinada a justificar os atos praticados pelos militares no período[1]. Em Orvil, as Forças Armadas são apresentadas como protetoras patrióticas do Brasil e de sua democracia de raízes culturais cristãs contra a vasta conspiração comunista que ameaça a nação desde a década de 1920. O campo inimigo é formado por subversivos profissionais, políticos oportunistas e corruptos; jornalistas e professores marxistas e estudantes manipulados pelo imperialismo soviético e cubano, sempre conspirando às escuras para tomar o poder. Nesse quadro de guerra permanente, o golpe de 1964 e o regime autoritário que lhe seguiu surgem como uma solução de autossacrifício que os militares teriam sido obrigados a tomar para salvar a democracia da ameaça comunista.

Ao longo dessa guerra justa travada contra a subversão, em legítima defesa da Pátria atacada, as violações aos direitos humanos são sempre atribuídas a acidentes, negadas como não tendo ocorrido ou como instrumentos retóricos na tentativa comunista de reescrever a história. Elas seriam produto de uma bem-sucedida campanha difamatória movida pelos subversivos, na forma de uma “guerra psicológica” que lograra transformar os mocinhos (os militares) em bandidos e vice-versa aos olhos da sociedade (Teixeira, 2013).

A segunda fonte do Regime Militar como modelo de bom governo, momento salvífico de combate ao comunismo, é A Verdade Sufocada (2006), livro de memórias do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi o primeiro militar condenado pela prática de tortura no período autoritário. Tendo como pano de fundo a narrativa do Orvil, que oferece uma imagem do Regime Militar como a época gloriosa da defesa da democracia brasileira contra a ameaça comunista, Ustra apresenta-se em suas memórias como o herói-mártir, aquele que insiste em dizer a verdade quando boa parte dos próprios membros do regime já cederam à pressão do establishment revisionista de esquerda. Ustra nos é apresentado como o arquétipo do soldado exemplar, patriota e pai de família, cristão e varonil, que dedicou a vida a defender o povo contra o terrorismo, a vagabundagem, o ateísmo, a dominação estrangeira e a perversão de costumes. Depois de uma vida de sacrifícios, ao invés do justo reconhecimento, o coronel reformado teria sido vítima de uma campanha de difamação dos “comunistas” revanchistas, sob a justificativa da defesa dos direitos humanos e da reparação. Em verdade, o ativismo pelos direitos humanos seria a nova forma adquirida pelo comunismo; e a Nova República, o regime no qual os antigos comunistas, agora no poder, se desforrariam dos militares. Em suma, o coronel se coloca como uma vítima da ingratidão e da injustiça, perseguido injustamente pelos criminosos que combateu ao longo de sua vida em defesa da pátria e abandonado pelos antigos defensores da causa a que permanece fiel.

O destino de Ustra representaria de modo excepcional a estratégia de relegar os militares ao opróbrio durante o novo regime democrático pós-1985. Desvalorizada e humilhada, convertida em inimiga da nação por seus antigos inimigos, as Forças Armadas manifestaram, tímida mas persistentemente, sua insatisfação com o processo de reconstrução da memória pós-64. E, em suas versões mais radicalizadas, como as inspiradas em Ustra, os heroicos militares – alguns dos quais mártires da liberdade, tombados em luta contra os “terroristas comunistas” – foram convertidos em cruéis e sádicos algozes pelo revisionismo da CNV, conduzido pelos militantes da revolução comunista interrompida em 1964, cujo maior exemplo seria a presidente da República, Dilma Rousseff, ela mesma “terrorista” na juventude.

Essa imagem das forças armadas e da polícia como vítimas de uma campanha de difamação promovida por criminosos fantasiados de defensores dos direitos humanos permaneceu resistente, mesmo que muitas vezes menosprezada no debate público da Nova República. Uma síntese dessa conversão da disputa pela memória em ideologia pode ser testemunhada no discurso de um dos heróis intelectuais do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, cuja “crítica cultural” da sociedade brasileira insistiu, desde os anos 1990, em acusar a Nova República de subverter as responsabilidades políticas dos verdadeiros inimigos da democracia.

Vivemos numa ditadura muito pior que a dos militares. Os militares colocavam, no máximo, um agente em cada redação. Hoje os agentes do petismo são dezenas, centenas em cada organização de mídia, espionando, fiscalizando, censurando, delatando. Não há comparação possível. Chega de fingir que existe democracia no Brasil. Eleições e partidos de oposição (repletos de comunistas) existiam também na ditadura militar (Carvalho, apud Lynch & Cassimiro, 2022: 92).

Interromper o processo de decadência – tema clássico do pensamento reacionário –, impedindo o apagamento da adequada memória de 1964 que estava sendo operado por seus algozes, era justamente o papel que o Bolsonaro precisaria assumir. Toda disputa pela memória do golpe e suas consequências passa necessariamente por reatribuir à história a função salvacionista dos militares contra a ameaça comunista de seus opositores. A natureza excepcional das circunstâncias é o último refúgio para justificar as arbitrariedades, violações e assassinatos cometidos pelo regime de 1964. É justamente a força dessa função ideológica da memória que Bolsonaro e seus adeptos compreenderam, e que jogou um papel fundamental em sua vitória eleitoral em 2018.


Nota

[1] Conferir Maciel e Nascimento (2012). Para uma análise do texto, ver a primeira parte de Rocha (2021).

Referências

ALMADA, Pablo Emanuel Romero. (2021). O negacionismo na oposição de Jair Bolsonaro à Comissão Nacional da Verdade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 36, n. 106.

Brasil Nunca Mais. Um Relato para a história. (2014). Prefácio de D. Paulo Evaristo Arns. Rio de Janeiro: Vozes.

D’ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso. (orgs). (2021). Ernesto Geisel.  Rio de Janeiro: FGV Editora.

MACIEL, Lício & NASCIMENTO, José Conegundes do (Coord.). (2012). Orvil: tentativas de tomada de poder. Brasília: Schoba.

ROCHA, João César de. (2021). Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Gioânia: Caminhos.

TEIXEIRA, Mauro Eustáquio Costa. (2013). A democracia fardada: imaginário político e negação do consenso durante a transição brasileira (1979-1988). Aedos, n. 13, v. 5.

USTRA, Carlos Alberto Brilhante. (2006). A Verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça. Brasília: ser.


A foto que abre o post é da posse de Humberto Alencar Castello Branco (ao centro, acenando) na Presidência da República, em Brasília/DF. A imagem faz parte do ensaio visual de Lilia Moritz Schwarcz que pode ser conferido aqui.

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