Hospedeiros, por Fernando Gerheim

poema boca final

Na atualização de hoje da série Pandemia, Cultura e Sociedade, o professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ Fernando Gerheim escreve sobre o confinamento e a desaceleração da produção a partir da relação entre linguagem e técnica em Walter Benjamin.

Pandemia, Cultura e Sociedade é uma parceria do Blog da BVPS com a revista Sociologia & Antropologia (PPGSA/UFRJ). Assine o blog para receber as atualizações e curta nossa página no Facebook.

Boa leitura!

 

 

Hospedeiros

por Fernando Gerheim [i]

 

à minha vizinha que toca Bella Ciao na janela

 

Busco no Google o significado da palavra confinamento: “ação de prender, de cercar ou isolar: confinamento de gado”. A referência a bois traduz bem como estamos todos entregues a uma dimensão animal. É o nosso devir Covid-19. Quanto mais tentarmos manter nosso frenético sistema produtivo inalterado, mais o vírus se reproduzirá. Somos seu hospedeiro. Nossa existência está em função dele, que quer instalar-se em nós tal qual um turista numa estalagem, pensão ou hotel. Estamos confinados para impedi-lo de se reproduzir.

Como se sabe, o Google não realiza a busca a partir de uma frase gramatical, mas a partir de cada palavra isolada. A palavra é extraída do seu contexto nesse esfacelamento gramatical. A verdade para o Google é o conjunto de contextos em que aquela palavra isolada, extraída do seu contexto, aparece. O filósofo e teórico da arte Boris Groys diz que o Google põe em prática, em outro contexto, as palavras em liberdade futuristas. A igualdade radical das palavras – liberadas das estruturas hierárquicas ditadas pela gramática – projeta a linguagem como uma sorte de perfeita democracia verbal, diz Groys no capítulo Google: uma linguagem mais além da gramática, do livro Volverse público – las transformaciones del arte en el ágora contemporánea. O autor continua: “Pode-se dizer que a poesia de vanguarda e a arte do século XX criaram uma visão de um Google utópico, o da livre circulação, no espaço social, das palavras emancipadas. O Google realmente existente é, obviamente, uma realização técnico-política, mas também uma traição a este sonho utópico da liberação das palavras.” Poderia ser feita uma correspondência entre essa atomização verbal e o nosso isolamento, cada qual em seu átomo domiciliar.

Já se disse que a pandemia de SARS-Covid-19 conseguiu o que parecia impossível: senão parar, desacelerar o sistema produtivo. E essa, pelo menos idealmente, é uma oportunidade, embora indesejada, para repensá-lo e transformá-lo. Uma projeção num prédio de uma metrópole brasileira viralizou nas redes, ou ao menos na minha bolha. Ela dizia, com outras palavras, que não há volta ao normal porque a normalidade de antes era o problema. Daquele que desfruta do mundo infinitamente disponível, o indivíduo passou a um hospedeiro potencial. A microbiologia, com sua força invisível, invasora e até o momento sem antídotos, alterou a macroeconomia. Daquele horizonte ilimitado passamos a um contato presencial com o mundo que se reduz à nova rotina de nossas casas e eventuais idas ao supermercado ou à farmácia. Compromissos sociais e profissionais, só à distância. Todo dia parece o mesmo, como naquele filme em que o personagem ficava preso num dia que se repetia indefinidamente (Feitiço do Tempo, direção de Harold Ramis, roteiro de Danny Rubin). Do mundo engarrafado assim na terra como no céu passamos a um cotidiano estranhado, entre o quarto, a sala, o banheiro e a cozinha.

Essa desaceleração forçada coloca a questão, como fez o filósofo Bruno Latour, de como será a volta àquela suposta normalidade que, na verdade, era o problema. A necessidade de mudanças urgentes se tornaram visíveis agora que não somos mais que uma potencial estalagem de coronavírus à beira da estrada. Estamos também, em nossa dimensão atomizada, em nossas rotinas de vida alteradas, tendo a oportunidade de repensar como rejuntar as palavras soltas em uma gramática diferente.

Desse ínterim virótico não retornaremos para um mundo igual, mas melhor ou pior. O mundo pós-pandemia será o da expansão dos mercados sem seus últimos entraves, através do cibercontrole e do poder de deixar morrer, ou o de um avanço na conquista de direitos humanos, sociais e ambientais como renda mínima universal e respeito à biodiversidade. Gostaria de apontar para um aspecto dessa nova volta ao mundo imposta. Estamos em função do Covid-19, que quer fazer de nós hospedeiros para se reproduzir; a inércia do movimento frenético que alimentamos foi, parcialmente, senão interrompida, desacelerada; se tínhamos a ilusão de que podíamos tirar de nossa estalagem – não transitória, mas permanente – o máximo proveito, como de um hotel cinco estrelas natural, agora o Covid-19 é que faz de nós seus hospedeiros. Isso pode ser o início de dois movimentos opostos: a reconfiguração da máquina ou o seu funcionamento de modo mais perverso. O aspecto que eu gostaria de ressaltar é que certa relação que opõe a cultura e por consequência a técnica à natureza pressupõe uma certa relação entre a linguagem e a natureza.

Autor que vê a linguagem sob esta perspectiva de uma correspondência com a natureza, Walter Benjamin distingue, na segunda versão alemã do texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, publicada pela primeira vez em 1989, entre o que ele chama de primeira e segunda técnica. “O de-uma-vez-por-todas vale para a primeira técnica (ali se trata da falta, que nunca poderá ser reparada, ou da morte sacrificial, enquanto substituição eterna). O uma-vez-é-vez-nenhuma vale para a segunda técnica (esta tem a ver com o experimento e sua incansável variação da ordenação experimental.” Na arte, ambas as técnicas se manifestam de modo entrelaçado e em graus diversos. Benjamin continua: “Aliás, deve-se notar aqui que ‘dominação da natureza’ designa o objetivo da segunda técnica de modo altamente contestável; ela o designa assim do ponto de vista da primeira técnica. Esta tem realmente em mira a dominação da natureza; a segunda, muito mais um jogo conjunto entre natureza e humanidade.”

Estávamos esperando o aquecimento global, a elevação do nível do mar, mas, antes disso veio o Covid-19, e quando agíamos como senhores arrogantes sendo servidos pela natureza, ele mostra sua cepa voraz. Estamos, infelizmente apenas idealmente, confinados em função da ocupação desse corpo estranho, que escancara nossa fragilidade. O vírus torna urgentes agendas que há muito tentam ganhar espaço e evidencia que o paradigma da exploração da natureza de modo predatório e extrativista é insustentável. Somos nós que estamos em função de um fenômeno natural, de um invasor que serve-se de nosso organismo. Torna-se evidente que em seu atual estágio, a técnica é muito mais um jogo com a natureza, lançando luz sobre um modo possível de rejuntar os átomos em que nos tornamos. Essa compreensão poderia apontar uma saída que não fosse uma volta à “normalidade” problemática, mas a chegada a um ponto em alguma medida diferente e melhor? Enfim, poderia nos levar a sair melhor do que entramos?

Esse jogo da técnica com a natureza supõe, em primeiro lugar, uma concepção de linguagem não como um instrumento capaz de objetificar o mundo para dele se apossar. Essa situação antinatural em que a linguagem tem sua gramática esfacelada, que identificamos como a segunda técnica, pode se rejuntar de várias maneiras, nos mostrando também sua potência. As guerras e a destruição dos recursos naturais, como se o planeta fosse um mero hospedeiro, demonstrou Benjamin, são o preço que a técnica cobra por sua potência traída, quando questões vitais permanecem não resolvidas. O modo de rejuntar os elementos isolados que nós, como as palavras para o Google, nos tornamos, e que ao mesmo tempo não seja a imposição de uma gramática rígida com suas velhas hierarquias, seria um modo que desfaz as totalizações que a linguagem sempre pressupõe, ao esquecer que não está separada, que não é um instrumento para objetificar a natureza e a nós mesmos. “A linguagem está sempre no meio”, diz Paulo Rudi Schneider em A contradição da Linguagem em Walter Benjamin.

Nós, átomos domiciliares da coletividade, participamos das totalidades pressupostas que são inerentes à linguagem não como hóspedes, servindo-nos dela como o corona faz conosco. Essa linguagem inseparável daquilo que se diz, participa ou comunica é também a poesia, não no sentido de uma determinada forma literária, mas da linguagem poética. Tal dimensão da linguagem deve, em sentido diverso da estetização espetacular, se espraiar para além da arte e da cultura como campos separados da vida, e alcançar o estatuto de uma forma de poder. Isto é o que nos diz, neste momento político em disputa, este nosso devir Covid-19. Aí então, quem sabe, as palavras em liberdade poderiam se rejuntar não no fascismo, mas no reencontro dos átomos isolados em que nos tornamos a partir da inexistência mesma de um fundamento do qual estariam separadas.
[i] Professor da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

A imagem que ilustra o post é:

poema visual, 2020

Fernando Gerheim
* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da BVPS.

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