

Na atualização de hoje, o Blog da BVPS publica mais um trabalho da coluna minas mundo, um espaço dedicado à colaboração desse projeto com a Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS). Este texto foi originalmente apresentado como trabalho final da disciplina “Minas Mundo: o cosmopolitismo na cultura brasileira”, ministrada pelo professor André Botelho no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No texto, Mirela Luz, artista plástica e doutoranda em Linguagens Visuais pela UFRJ, apresenta aspectos gerais das trajetórias e das obras de Maria Martins e de Mary Vieira, duas artistas plásticas mineiras ainda pouco estudadas pela crítica especializada e pouco conhecidas pelo público mais amplo. A autora levanta algumas hipóteses que ajudam a explicar o lugar ainda marginal que as artistas mineiras ocupam na história da arte brasileira, a despeito do caráter original e cosmopolita de suas obras.
Convidamos os leitores e as leitoras para acessar outros trabalhos já publicados na coluna minas mundo. Para saber mais sobre a iniciativa, visite o site do projeto e leia o post de apresentação da parceria no blog.
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Boa leitura!
Mulheres, Artistas, Mineiras: Maria Martins e Mary Vieira
Por Mirela Luz [i]
Ai! Como tangem hoje os sinos de minha pequenina cidade submersa no fundo de meu coração.
Maria Martins, Correio da Manhã, 1968
O ressoar os sinos como experiência universal e ao mesmo tempo espacial, como ligação entre mundos distantes, mas que convergem, em um instante de duração, a uma presentificação do tempo [1]. A metáfora do sino pode ser o ponto de partida comum para analisarmos as trajetórias das artistas plásticas Maria Martins e Mary Vieira. Ambas nasceram no sul de Minas Gerais, onde o sino é, simbólica e espacialmente, central no imaginário religioso da região, e as duas deixaram suas cidades de origem abrindo caminhos para vivenciarem outras experiências. Oriundas de famílias bem aquilatadas, cuja tradição era educar as filhas para o matrimônio, Maria Martins e Mary Vieira subverteram os padrões vigentes da época, na medida em que se tornam artistas modernas frustrando os papéis tradicionalmente destinados a elas.
É num fluxo de deslocamentos, atravessamento de fronteiras e experiências múltiplas que reside a força do trabalho de Maria Martins e Mary Vieira que, mesmo desenvolvendo um conjunto de obras relevantes para o debate crítico da arte brasileira a partir dos anos de 1940, tiveram suas trajetórias esquecidas ou mesmo distorcidas por erros biográficos grosseiros e por generificações. Nossa aposta aqui é a de que as obras dessas duas mulheres ultrapassam regionalismos, estilos e modismos artísticos, alcançando uma expressão universal, seja pela tendência mais próxima ao surrealismo em Maria Martins ou ao construtivismo em Mary Vieira. Como veremos, cada uma a seu modo, afirmam diferenças a partir de vivências muito próprias, com produções que estão em um constante fluxo de trocas entre tradição e modernidade ou mesmo entre colônia e metrópole. Talvez o papel coadjuvante que essas artistas ocupam na história da arte brasileira se justifique, em parte, pela dificuldade da crítica especializada em delimitar um enquadramento de suas produções. Obviamente há muitas complexidades que vão além do âmbito puramente formal das obras, envolvendo aspectos sociais, econômicos, políticos, geográficos e, principalmente, os de gênero, que podem acionar outras camadas à construção de um discurso crítico sobre suas trajetórias e obras. E um dos pontos centrais de interesse deste ensaio está em refletir sobre o lugar relegado à Maria Martins e à Mary Vieira na arte brasileira.
Comecemos observando que Maria Martins nasceu em 1894 em Campanha, sul de Minas Gerais. Filha de importante político mineiro, teve sua formação escolar no colégio Sion de Petrópolis, e se casou com o historiador e crítico Otávio Tarquínio de Souza, separando-se nove anos depois. Em 1926 se casou novamente, desta vez com o diplomata gaúcho Carlos Martins, e passou a morar em várias cidades do mundo como Quito, Paris, Tóquio, Copenhague, Bruxelas e Washington. Começou sua formação artística na Bélgica com o escultor Oscar Jesper e continuou seus estudos nos Estados Unidos quando seu marido foi transferido de posto em 1939 como embaixador do Brasil em Washington. Em Nova Iorque, alugou um ateliê e teve aulas com o artista lituano Jacques Lipchitz. Em 1942, fez uma exposição na Valentine Gallery, em Nova Iorque, onde conheceu um dos idealizadores do surrealismo, o francês Andre Breton, que identificou características “surrealistas” em suas obras. Ele a apresentou a outros artistas ligados ao grupo dos surrealistas como Marcel Duchamp, Andre Masson, Yves Tanguy, Michel Tapié e Max Ernst. Por conta da Segunda Guerra Mundial, muitos artistas ligados aos movimentos de vanguarda artísticos europeus migraram para os EUA favorecendo um fértil ambiente intelectual e artístico. Maria Martins, ou simplesmente Maria, como ela assinava em suas esculturas, passou a fazer parte dessa cena cultural integrando exposições e coleções privadas de museus e colecionadores. Importa mencionar que havia uma multiplicidade de linguagens na Nova Iorque dos anos 1940, interagindo diferentes grupos e estéticas modernas.
Em 1943, Maria expôs novamente na Valentine Gallery, desta vez um conjunto de oito esculturas em bronze da série Amazônia, baseada nos mitos de origem brasileiros. A organicidade escultórica de suas obras dividiu espaço com a objetividade construtiva das pinturas do artista holandês Piet Mondrian que, segundo consta, não vendeu sequer uma obra, enquanto a brasileira vendeu toda a sua série. A poética de Maria se desenvolveu nesse ambiente internacional de efervescência cultural, cuja leitura do surrealismo foi inteligentemente incorporada ao seu trabalho, explorando o fascínio das vanguardas do Norte pelo suposto exotismo dos povos do Sul. Se as exposições anteriores de que participou nos EUA abordavam temas do imaginário popular e religioso – como verificamos nas obras Salomé, Cristo, Eva e Samba, produzidas entre os anos 1939 e 1940 –, no caso da exposição Amazônia, por intermédio de Jorge Zarur, geógrafo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Maria teve acesso às lendas e aos mitos dos povos originários da bacia do rio Amazonas (COUTO; DINIZ, 2020: 52), criando oito peças: Amazônia (1942), Boiuna (1942), Yara (1941), Yemanjá (1943), Aioká (1942), Iaci (1943), Cobra grande (1943) e Boto (1942). Tais peças foram acompanhadas de um catálogo numerado com poemas em prosa escritos pela artista referentes a cada um dos personagens representados.
A exposição Amazônia marca um momento de transição no trabalho de Maria, cujas características mais naturalistas do período anterior vão se metamorfoseando em híbridos humanos, vegetais e animais. A madeira e o gesso dos antigos trabalhos cedem espaço ao bronze rugoso e oxidado, cuja materialidade se traduz em formas sedutoras e violentas. A artista conhecia a região da bacia amazônica somente por um sobrevoo de viagem, de modo que a referência aos mitos amazônicos poderia corroborar a visão estrangeira do exótico sobre a América Latina ou, por outro lado, evocar o mito antropófago de Oswald de Andrade de devoração e absorção do estrangeiro e recuperação de uma força primordial latente, como símbolo de resistência e avesso ao sistema colonial. Todavia, o trabalho de Maria não é síntese que se completa na figura do antropófago. Ao contrário, ele se abre ao outro sem completude e seus personagens vão se metamorfoseando ao longo de sua produção. Deixando qualquer impulso ingenuamente nacionalista de lado, como nos diz Stigger (2013: 20), a Amazônia como espaço de metamorfose já havia sido referência em obras literárias brasileiras, como, por exemplo, Cobra Norato (1931), de Raul Bopp, e Macunaíma (1928), de Mário de Andrade. E é no sentido de apropriação desse lugar enquanto potencializador de transformações que a escultura de Maria se abre a um campo fértil de possibilidades plásticas, formais e conceituais.
Ao longo da década de 1940, seu trabalho vai ganhando outros corpos na medida em que se distancia da representação dos mitos originários e religiosos sobrepondo um impulso mais visceral e menos literal com membros de corpos se convertendo em galhos e lianas formando intrincados emaranhados. As personagens femininas não se submetem ao desejo masculino, e talvez pela primeira vez uma artista brasileira representa a inversão do desejo, porque as figuras femininas nas esculturas de Maria são ativas, desejam antes de serem desejadas, encarnam erotismo, exuberância, crueldade, docilidade e, sobretudo, liberdade.
Depois de nove anos vivendo nos EUA e mais um ano em Paris acompanhando seu marido, em 1949 Maria retornou ao Brasil. Apesar de sua ativa presença e atuação entre os artistas surrealistas nos EUA, seu trabalho não foi bem recebido pela crítica brasileira, que o considerou demasiado narrativo e literário. Fez algumas exposições individuais no Brasil nos anos 50, com destaque para as exposições no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, na Associação Brasileira de Imprensa no Rio de Janeiro e no MAM do Rio de Janeiro. Vale destacar a influência da artista com sua rede de contatos no exterior junto à Yolanda Penteado na criação da I Bienal de São Paulo e, talvez por sua contribuição, tenha sido a única artista mulher convidada a expor. Participou também da II Bienal, em 1953, com cinco obras ganhando o prêmio de aquisição com mais três artistas: Mary Vieira, Elisa Martins da Silveira e Hilde Weber. Na Bienal de 1955, ganhou o primeiro prêmio de melhor escultora com a obra A soma dos nossos dias (1954/55).
Embora Maria tenha tido grande participação nesses eventos tanto como artista quanto como agente nos bastidores, seu lugar na história da arte brasileira ainda é negligenciado. Talvez o fato de ser a mulher do embaixador Carlos Martins tenha deslocado o interesse de sua obra para esse lugar e, somado a isso, lembremos que o contexto artístico dos anos 1950 era de caráter construtivo e de transformação social, indo em uma direção oposta à poética surrealista proposta por ela.
O debate no Brasil no final dos anos 1940 era sobre abstração x figuração, de certa forma tardio em relação à Europa, que debatia a abstração desde 1910. Havia uma tendência de caráter social na arte brasileira desses anos, que se distanciava do projeto modernista da Semana de 1922. Além disso, artistas “oficiais” como Di Cavalcanti e Portinari eram veementemente críticos da abstração no Brasil como sendo “coisa do passado”. A introdução de uma vertente geométrica construtiva no final dos anos 1940 era uma forma de reação a esse caráter mais ideológico da arte, configurando as bases de um projeto de modernização brasileira fortemente propagado pelo crítico Mario Pedrosa, como “(…) defesa de uma linguagem universal da arte, não regionalista ou subordinada às tradições nacionais, comprometida, contudo, com a construção do país (…)” (FERREIRA, 2013: 70).
Se o contexto da arte brasileira nos anos 1940 foi marcado por àqueles que defendiam uma representação do imaginário social brasileiro ou uma abstração informal via Escola de Paris, ou mesmo na década de 1950 pela nova geração de tendência construtivista, algo comum que praticamente os unia era uma ideologia política de esquerda. Isso pode elucidar, até certo ponto, alguns dos motivos que relegaram a obra de Maria ao ostracismo por tanto tempo, já que ela era a mulher do embaixador brasileiro nos EUA em plena ditadura do Estado Novo, o que representava uma relação incompatível ideologicamente com grande parte do campo cultural naquele contexto. Se por um lado havia a ideologia política, por outro, temos o choque provocado pelas esculturas da artista que, de maneira explícita, transgrediam a narrativa da escultura moderna brasileira, expondo o desejo, o erotismo e o sexo na figura da mulher, o que talvez tenha sido uma afronta em um ambiente muito conservador, ainda mais por se tratar da mulher de um representante do Itamaraty. A produção de suas esculturas diminuiu consideravelmente a partir dos anos 1950, e ela passou a se dedicar mais à escrita, mantendo uma coluna no jornal Correio da Manhã, entre 1967 e 1968, e publicando livros como Ásia Maior: O Planeta China (1958), Ásia Maior: Brama, Gandhi e Nehru (1961) e Nietzsche (1965). Maria morreu em 1973 no Rio de Janeiro.

Maria Martins. Não te Esqueças Nunca que Eu Venho dos Trópicos (1942)

Se o trabalho de Maria Martins foi relegado a certo ostracismo na história da arte brasileira e somente há pouco tempo vem sendo revisitado pela crítica, o que dizer de Mary Vieira, que é praticamente desconhecida de um grande público e ignorada pela crítica brasileira mais especializada, que a qualifica a um papel secundário no movimento concreto paulista? A pouca importância conferida à artista se revela, por exemplo, na falta de cuidado com seus dados biográficos. Alguns dados disponíveis sobre ela apontam que Mary Vieira é natural de São Paulo e nasceu em 1925 ou 1927. Mas, como atestam Pedro Vieira e Malou von Muralt, ela nasceu em 1922 na cidade de Poços de Caldas, Minas Gerais (SANTOS, 2017).
Filha de uma abastada família mineira de proprietários rurais, Mary foi para Belo Horizonte em 1944 e ingressou na primeira turma da Escola de Belas Artes, dirigida por Alberto da Veiga Guignard. Foi nesse período de formação inicial nos anos 1940 que ela desenvolveu suas primeiras obras cinéticas, os multivolumes, e logo depois os polivolumes, obras estas que vão associá-la aos concretistas de São Paulo da década de 1950. Sem negar essa relação e, sobretudo, a influência do suíço Max Bill, com quem Mary teve aulas quando deixou o Brasil em 1951, é a arquitetura o principal norte do seu trabalho. Sobretudo a arquitetura moderna recém-inaugurada no programa de urbanização da Pampulha em Belo Horizonte, a partir de projetos de Oscar Niemeyer, Roberto Burle Marx e Paulo Werneck, pelo então governador Juscelino Kubitschek [2].
Muitas obras que Mary desenvolveu nos anos 1940 já apontavam uma relação entre espaço público, escala urbana, paisagismo e arquitetura, como é o caso de Formas espirálicas, eletrorrotativas de perfuração virtual (1948), medindo 6m e acionada por um motor elétrico, encomendada para a Exposição de Classes Produtoras Brasileiras em Araxá/MG; ou o projeto que reuniu arquitetura e design da Boate Azul (1947), hoje destruída, no Palace Cassino de Poços de Caldas/MG. A relação que a artista estabelece com a escala e os materiais empregados nas obras transbordam os limites da escultura tradicional, mesmo àquela de caráter mais modernista desenvolvida no Brasil naquele momento via Victor Brecheret ou Bruno Giorgi. São obras que criam uma dimensão que substitui a modelagem do barro e o bronze tradicional pelo aço cromado, aço inoxidável, alumínio anodizado e mármore e madeira em função desses metais. Mary explorou o movimento de formas abstratas, a sinuosidade, o equilíbrio e a precisão da tecnologia adotando um procedimento mais técnico e científico envolvendo outros profissionais na elaboração da obra. A artista montou um ateliê entre 1945 e 1947 em uma antiga igreja desativada em Sabará/MG, para a criação desses trabalhos em grande escala contando com o apoio técnico e material da Companhia Siderúrgica Belgo Mineira. Desenvolveu também outras obras nesse período como o Polivolume: côncavo e convexo (1948), em alumínio anodizado, 200x35cm, para a cidade de Lambari/MG, além de trabalhos de programação visual para a mesma cidade.
O projeto de ambientação da Boate Azul aliou a arquitetura a uma estética modernista remodelando todo o espaço destinado ao projeto com referências às composições amebóides da Pampulha. Na década de 1990, a Boate Azul sofreu intervenções modificando o projeto inicial e tais ações não foram sequer documentadas, o que não deixa de ser um indício da desvalorização do trabalho da artista que a projetou. Em 2011, foi demolida com a justificativa local de restaurar o projeto original de arquitetura eclética do Palace Cassino de 1930.
Além da Boate Azul, Mary Vieira desenvolveu, na mesma época, trabalhos como a expografia para a Exposição de Projetos e Planos de Poços de Caldas; também com influência da arquitetura modernista, um projeto de polivolume para as Termas da cidade, além dos primeiros desenhos da série litográfica Tempos de um Movimento, que foi completada e editada em 1953, quando a artista estava morando na Suíça. Vale ressaltar a importância desses projetos e obras desenvolvidos na década de 1940, antes mesmo de sua ida para a Europa. É sabido que muitas das maquetes que Mary desenvolveu ainda na Escola de Belas Artes foram levadas consigo e materializadas em obras de grandes dimensões nas décadas seguintes à sua partida.
Mary elaborou projetos e obras públicas para cidades na Europa e nos EUA, além dos projetos para o Brasil em cidades como Belo Horizonte, São Paulo e Brasília, alguns deles não materializados. Além do pioneirismo de obras cinéticas, Mary propôs a participação do espectador/observador substituindo o movimento mecânico das obras pelo tátil. Muitos desses trabalhos deixam o espaço imaculado do museu/galeria e vão ocupar o espaço público da cidade, provocando uma intervenção na paisagem e acionando o espectador/observador pela manipulação objetiva e ordenada das formas. A obra Polivolume: conexão livre – Homenagem a Pedro de Toledo (1979), instalada em um espaço público na cidade de São Paulo, eleva-se como um totem em forma de cilindro branco que é interceptado ao longo desse corpo por placas de metal manipuláveis. A ausência da base provoca uma indistinção entre o objeto/cilindro e o entorno que é circundado por bancos de concreto integrando todo o conjunto. Assim como Liberdade em equilíbrio (1980), instalado na Praça Rio Branco em Belo Horizonte, cujo projeto envolve não somente a escultura em si, mas todo o projeto arquitetônico e urbanístico da praça. Infelizmente alguns desses trabalhos foram modificados, seja pelo entorno da paisagem, por vandalismo ou mesmo pela desinformação da esfera pública competente no quesito conservação e restauro de obras artísticas.


O fato de Mary Vieira ter sua formação artística em Belo Horizonte, fora do eixo Rio-São Paulo, a coloca num lugar bastante precursor, sobretudo se levarmos em consideração que a exposição mais influente naquele momento foi a individual de Max Bill no MASP, em 1951, e na I Bienal de São Paulo no mesmo ano. Estar em Belo Horizonte não a afastou do debate que vinha sendo instaurado naquele tempo, pois ela tinha contato com os artistas do Rio e de São Paulo e sabe-se que visitou a exposição de Max Bill em companhia de Mario Pedrosa e Almir Mavignier. Neste mesmo ano de 1951, ela se mudou para a Suíça, a fim de tomar aulas com Max Bill, com quem vinha se correspondendo por cartas.
Sua produção foi impulsionada pela relação entre arte, design, arquitetura, urbanismo e tecnologia, o que se pode verificar, ainda na década de 1950, nos dois importantes projetos em que a artista é convidada a desenvolver na Europa: Brasilien Baut (1954) e Brasilien Baut Brasilia (1957), sobre a arquitetura moderna brasileira, na qual criou todas as peças gráficas, o projeto do espaço expositivo, além da exposição de suas próprias esculturas. A partir de 1966, ela se tornou professora da Escola Superior de Arte, Técnicas de Planejamento Gráfico e Desenho Industrial, da Universidade da Basiléia, na Suíça. Mesmo morando fora do Brasil, Mary manteve contato com os artistas brasileiros, mandando resenhas e textos de trabalhos que vinha desenvolvendo. Ela morreu na Basileia em 2001.
Uma trajetória tão sofisticada em termos de atuação e produção artística não justificaria um olhar um pouco mais atento a sua obra? Talvez por viver fora do Brasil e não ter participado diretamente da implantação do concretismo em São Paulo ela se tornou uma mera coadjuvante do movimento paulista. A questão é que a obra de Mary Vieira vai muito além do concretismo ou de qualquer outra corrente artística. Não há como enquadrar o seu trabalho e, talvez por isso mesmo, sua obra esteja relegada a estudos superficiais e restrita a pouca atenção acadêmica.
Como vimos, além de artistas, mulheres e mineiras do Sul, talvez o maior ponto de convergência entre Maria Martins e Mary Vieira seja a impossibilidade em delimitar um lugar que abrigue o conjunto de suas obras a partir de correntes artísticas consolidadas pela historiografia. Maria Martins teve toda a sua formação artística fora do Brasil, mas isso não a impediu de formular um repertório formal e conceitual livre de regionalismos ou submissão colonial. Ao contrário, a força de sua obra está em uma rede de experiências pessoais e universais que ela teceu. Quase ao mesmo tempo em que Maria regressa ao Brasil, Mary o deixa depois de uma formação inicial na capital de Minas, que lançará as bases de todo o seu vocabulário formal. Embora tenha morado na Europa até a sua morte, Mary nunca deixou de lado a sua conexão com o Brasil – seja pelos projetos desenvolvidos e participação em exposições, seja em entrevistas e trocas de correspondências com artistas, além de expressar sua preocupação social através da arte. Como afirma em entrevista a Roberto Pontual a partir da obra desenvolvida para o Itamaraty, em 1977, “usar a cidade também como espaço para a arte, espaço de arte” (SANTOS, 2020: 409).
É curioso notar que Maria retornou ao país em um momento no qual sua linguagem artística não correspondia mais à nova estética desenvolvida nos anos subsequentes, o que pode justificar, de certa forma, seu isolamento na arte brasileira. Mas tal conjectura é tensionada na medida em que Mary também está na margem da arte brasileira e, no entanto, já antecipava uma série de questões que passam a compor o debate crítico dos anos 1950. Tal afirmação se justificaria somente pelo fato de Mary ter partido do Brasil e não ter colaborado presencialmente com seus pares brasileiros? Como se trata de uma discussão complexa, é imprescindível aprofundar uma revisão crítica da obra dessas duas artistas, de modo a tirá-las de um lugar contaminado de generificações e especulações. É preciso falar de Maria Martins sem ter como principal referência Marcel Duchamp ou a sua posição como embaixatriz. São informações relevantes de sua biografia, mas é preciso ir além delas, deslocando-a do papel da amante ou da esposa. Também é preciso investigar a obra de Mary Vieira e o seu percurso no Brasil ainda nos anos 1940, a partir de um importante movimento de interiorização mineiro como, por exemplo, Lambari e Araxá já exibirem polivolumes cinéticos em grande escala antes mesmo de qualquer outro centro de caráter moderno e construtivo no Brasil.
Este ensaio procurou questionar alguns motivos que relegaram as artistas Maria Martins e Mary Vieira a ocuparem um lugar marginal na arte brasileira, principalmente se levarmos em consideração o caráter cosmopolita de suas obras. Questionar tais motivos passa por observarmos que o meio de arte brasileiro ainda é constituído majoritariamente por agentes homens. Salvo algumas exceções, ao longo da história da arte brasileira a presença de artistas mulheres e suas contribuições para o debate crítico da arte são muito incipientes, sendo necessária uma revisão crítica a fim de que mais Marias e Marys emerjam do limbo em que se encontram, favorecendo um meio de arte mais horizontalizado e com maior abertura para a participação de diferentes artistas.
Notas:
[i] Mirela Luz é artista plástica e doutoranda em Linguagens Visuais pelo PPGAV/UFRJ.
[1] Essa reflexão foi influenciada pela conversa musical entre Pedro Meira Monteiro e José Miguel Wisnik a respeito da presença do sino na obra de Carlos Drummond de Andrade. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oFscYwvDV78&t=1161s. Acesso em 03 de abril de 2021.
[2] Belo Horizonte já nasceu com um impulso moderno, por ser a primeira cidade brasileira projetada no ano de 1897. Segundo Helena Bomeny (1994), a decisão por construir uma cidade moderna do zero era uma forma de síntese política e cultural com o fim do ciclo do ouro e aumento do café em disputa com São Paulo.
Bibliografia
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FERREIRA, Glória (curadoria e texto). Brasil: Figuração x Abstração no final dos anos 40. São Paulo: Instituto de Arte Contemporânea, IAC, 2013.
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