
O Blog da BVPS publica hoje o quarto post do simpósio internacional Mundo Social e Pandemia, uma parceria com a revista Sociologia & Antropologia e a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). A organização é de Andre Bittencourt (UFRJ e editor do Blog da BVPS) e Maurício Hoelz (UFRRJ e editor de S&A).
No simpósio, sociólogas e sociólogos do Brasil e do exterior responderam a um questionário com 4 perguntas, elaborado com a expectativa de indagar as diferentes dimensões sociais da pandemia e os desafios que ela representa para a sociologia. Mundo Social e Pandemia sai às terças e quintas no Blog da BVPS, sempre com as respostas de 5 colegas. Para ver os outros posts da série, basta clicar aqui. As versões originais das contribuições enviadas em inglês e francês são disponibilizadas nesta página, que será sempre atualizado. Para acompanhar as atualizações do Blog, siga nossa página no Facebook.
Hoje teremos como convidados/as:
Peter Wagner, professor do Departamento de Teoria Sociológica, Filosofia do Direito e Metodologia das Ciências Sociais na Universidade de Barcelona e pesquisador do Instituto Catalão para Pesquisa e Estudos Avançados (ICREA), Espanha. É autor, dentre outros, de Progress: A Reconstruction e Modernity as Experience and Interpretation.
José Maurício Domingues, professor Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, dentre outros, de Critical Theory and Political Modernity e Emancipação e história. O retorno da teoria social.
Maria Arminda do Nascimento Arruda, professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Autora, dentre outros, de Metrópole e cultura em São Paulo no século XX e A embalagem do sistema. A publicidade no capitalismo brasileiro.
Renan Springer de Freitas, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É autor, dentre outros, de Ciladas no caminho do conhecimento sociológico e Judaísmo, racionalismo e teologia cristã da superação: um diálogo com Max Weber.
Mariana Chaguri, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autora, dentre outros, de Rumos do Sul: periferia e pensamento social (organizadora) e O romancista e o engenho: José Lins do Rego e o regionalismo nordestino dos anos de 1920 e 1930.
Boa leitura!
1. Sociólogos/as e cientistas sociais, em geral, estão se mostrando mobilizados/as para produzir e compartilhar interpretações sobre os efeitos sociais e políticos da pandemia. A teoria sociológica está equipada para enfrentar o desafio de compreender/explicar o fenômeno?
Peter Wagner: A reação inicial dos cientistas sociais de modo geral foi partir do instrumental utilizado por cada um e aplicá-lo à situação em tela, sem muita reflexão sobre se tais ferramentas são de fato adequadas para o propósito. Essa reação é bem compreensível ao considerarmos uma combinação de três fatores: uma situação sociopolítica altamente nova, mas sobre a qual se pensa estar em condições de dizer algo; a falta de uma competência específica para tratar da matéria, afora uma pequena área de especialização que, além do mais, é marginal nos debates sociológicos (sociologia médica e o componente ciência-social da pesquisa em saúde pública); e um anseio de estar presente no debate público. Não obstante, não é justificável agir desse modo, que poupa o cientista social de fazer aquilo que ele deve fazer em primeiro lugar, a saber, examinar mais de perto o fenômeno que se quer entender.
Com o tempo, as intervenções se tornaram mais nuançadas e sutis. Agora é mais amplamente reconhecido que estamos lidando com um fenômeno que para a sociologia, mesmo que não para a epidemiologia, ocorreu de modo totalmente inesperado. Temos, portanto, uma profunda falta de conhecimento tanto das causas quanto das consequências, ainda que ambas sejam significativamente “sociais”, não do vírus em si mesmo, mas relacionadas ao modo como ele se alastra entre seres humanos e consequentemente dos modos de prevenção de que isso ocorra. Com relação às consequências, há, além disso, um alto grau de incerteza, espelhando de certa forma a incerteza também presente na epidemiologia e na virologia – conforme por exemplo ela se exprime em figuras amplamente divergentes da modelagem matemática, mas aplicada ao escopo expandido das relações sociais em suas variações de intensidade e extensão.
No que diz respeito à teoria sociológica propriamente dita, duas observações devem ser feitas. Primeiro, ao atingir o âmago da socialidade – ou seja, o contato humano –, o fenômeno revela uma teoria sociológica despreparada para chegar a esse âmago, tendo preferido teorizações mais gerais sobre formas de laços sociais e questões de coerência ou contradição na estrutura das relações sociais. Segundo, os debates do final do século XX sobre agência e estrutura levaram a um reconhecimento mais amplo da agência e criatividade humanas, bem como, consequentemente, da contingência das resultantes sociais, em contraposição ao determinismo e funcionalismo vigentes nas vertentes teóricas anteriores. Mas diante de um acontecimento altamente contingente – uma pandemia possível, mas não necessária – parece haver, ao menos até o momento, pouco que possa ser extraído desses insights teóricos.
José Maurício Domingues: Sim, a teoria sociológica está equipada para responder ao fenômeno, incluindo sua parceria com vários campos da sociologia. Afora vagas reflexões mais gerais sobre o papel da agência, das instituições, da justiça etc., que podem ser levantadas, três áreas devem ter destaque. Primeiro, a discussão sobre riscos e ameaças, que se encontra na um tanto o quanto difusa conceituação de Ulrich Beck, que não deixa de ser por isso altamente sugestiva. Seu cruzamento com a sociologia da saúde (e da doença), assim como sua historiografia, pode render bastante. Além disso, o papel em especial do Estado neste momento e a situação que o capitalismo vive implicam uma mobilização da sociologia política e da sociologia econômica/economia política, na medida em que o primeiro é o principal responsável pelo enfrentamento da crise e o segundo certamente evoluirá a partir dela. Outras áreas, como aquelas que dizem respeito às desigualdades sociais ou às relações internacionais, são igualmente importantes.
Maria Arminda do Nascimento Arruda: A primeira pergunta remete a duas ordens de consideração: a mobilização dos cientistas sociais – e dos sociólogos em particular – para oferecer respostas aos problemas produzidos pela pandemia; e a capacidade da teoria sociológica, isto é, a existência de uma acumulação analítica na teoria social que a habilite a construir referências capazes de dar conta de fenômenos provocados pela pandemia. Deriva da formulação, embora não esteja explicitamente indicado, a pergunta sobre o caráter da participação dos cientistas sociais na agenda pública, quando a ela se segue a indagação sobre a existência de um instrumental teórico capaz de fundamentar a compreensão dos efeitos adversos da pandemia na vida social. Portanto, subjaz à primeira pergunta a alusão ao modo como os cientistas sociais estão atuando na esfera pública. Primeiramente, cabe considerar que os objetos de pesquisa dos cientistas sociais já os predispõem ao debate público, o que, em larga medida, explica a participação social dos seus praticantes. No presente momento, outros profissionais habilitados, a exemplo daqueles das áreas da saúde, passaram a intervir diretamente no debate público de modo qualificado.
A teoria social oferece instrumental em condições de respaldar a intervenção pública dos cientistas sociais. Refiro-me, por exemplo, ao instrumental durkheimiano sobre a anomia e a solidariedade social. A pandemia rompe com todas as certezas, produz isolamento e tem instituído formas novas de solidariedade social, inclusive recriando modos de convivência típicos das comunidades. Retomo a tradição weberiana a respeito das modalidades de reconhecimento e legitimação do saber de grupos profissionais e do aparato burocrático do Estado. Finalmente, a questão dos efeitos diferenciados socialmente do vírus em contextos de extrema desigualdade social, que está no centro da tradição marxiana.
Renan Springer de Freitas: Essa pergunta traz consigo um pressuposto cuja validade me parece duvidosa: o de que o conhecimento produzido pela teoria sociológica é indispensável, ou, na pior das hipóteses, muito importante, para a produção de conhecimento sobre fenômenos sociais específicos. Se jogamos uma moedinha para cima, ela cai. Por quê? A resposta, como sabemos, está em um conceito nos legado pela física, o de “força gravitacional”. Da mesma forma que sem a ajuda desse conceito não podemos compreender o referido fenômeno, sem a ajuda de conceitos nos legados por outras disciplinas científicas não podemos compreender fenômenos como a respiração, a transpiração, a especiação, a inflação e os “buracos negros”. Existe algum fenômeno cujo nosso conhecimento a respeito é nulo, ou, na melhor das hipóteses, “meramente intuitivo”, sem a ajuda de algum conceito produzido sob a rubrica “teoria sociológica”? Se existe, certamente não é a desigualdade social, a mobilidade social, a criminalidade, a expansão do ensino superior, a própria produção de conhecimento e mais uma dúzia de fenômenos sociais que poderiam ser enumerados sem grande esforço. Se o conhecimento que se produz a respeito de qualquer um desses fenômenos prescinde do conhecimento produzido pela teoria sociológica, por que seria diferente quando o fenômeno a ser estudado é a epidemia em curso? Penso que a teoria sociológica é uma área de estudos com sua própria agenda de indagações, e não uma espécie de “farol” para a produção de conhecimento sobre os mais diferentes fenômenos sociais – a propósito, defendi essa tese no livro Ciladas no caminho do conhecimento sociológico, que acabo de publicar. Conforme pretendo deixar claro ao responder as questões 2 e 4, penso que a sociologia tem muito a contribuir nesse momento, mas sua contribuição não depende de algum “equipamento” conceitual ou analítico que a teoria sociológica porventura possa ter a oferecer.
Mariana Chaguri: Procurando uma resposta direta: sim. Alongando o argumento, podemos começar pensando que, entre as questões centrais a organizar a teoria sociológica, está o tema da mudança social. O fenômeno da pandemia tem promovido um conjunto de transformações cujos sentidos estão em aberto, tanto no que se refere à dinâmica do processo social quanto à capacidade dos diferentes agentes sociais de encaminhar suas demandas, o que, sem dúvida, abrirá um campo variado de interpretações e disputas teóricas.
As controvérsias teóricas geradas a partir do esforço de interpretação desse fenômeno serão (e já são) muitas, e, em minha visão, têm potencial para promover alargamentos dos conceitos e das categorias da teoria sociológica, aumentando nossa capacidade de falar sobre o mundo social. Para seguir com a resposta, então, gostaria de pontuar que estou tomando a teoria sociológica como imaginação a qual, numa chave ampliada, não é apenas invenção (o que é importante), mas é especialmente a atribuição de inteligibilidade ou a construção de novos sentidos para a experiência social, isto é, para as experiências de estar no mundo.
A epidemia impactou enormemente tais experiências, articulando marcadores sociais da diferença tais como gênero, raça e classe em sentidos ora esperados da reprodução de desigualdades, mas também em novas direções que nos desafiam a pensar a dimensão processual implicada na disputa e reconstrução dos pactos sociais entre indivíduos e sociedade. Instâncias socializadoras e produtoras de solidariedade, tais como o mercado e a família, também nos desafiam a pensar o que mais poderíamos estar perguntando e de que modo poderíamos fazê-lo para avançar em nossa capacidade de explicar esse fenômeno.
2. Como a sua área de pesquisa especializada pode contribuir para a reflexão sobre diferentes dimensões desse fenômeno?
Peter Wagner: Dada a novidade da situação, impõem-se especialmente duas formas de questionamento: reflexões sobre conhecimento e a busca por comparações úteis. A primeira invoca a sociologia do conhecimento e das ciências. Uma corrente endereçaria o conhecimento do vírus. A questão é que tipo de conhecimento virológico e epidemiológico está disponível e como ele pode ser ampliado, e quais técnicas, tais como a modelagem matemática, podem ser proveitosamente aplicadas. Há uma tensão significativa entre, de um lado, o conhecimento que está geralmente disponível sobre os vírus e como eles se propagam e, de outro lado, a necessidade de conhecer esse vírus em particular, que difere de outros vírus em muitos aspectos relevantes. Ademais, em contraste ao que nós cientistas sociais costumamos pensar sobre o conhecimento da natureza, é importante notar que o vírus também muda, e que, portanto, o conhecimento atual não pode prever inteiramente o futuro.
Uma outra corrente buscaria entender os modos pelos quais esse conhecimento entra na sociedade e na política. Nesse caso o foco incidiria na formação de comunidades epistêmicas, na pluralidade das formas de conhecimento e na disputa entre elas e a possibilidade de hegemonia ou dominação epistêmica.
A busca por comparações invoca a sociologia histórico-comparativa, dado que estamos diante de um fenômeno que costumava ser chamado de “macrossociológico”: ou seja, de larga escala, com potencial de alcançar muito rapidamente a extensão global e de gerar grande transformação social. Faz algum tempo que a sociologia histórico-comparativa está fora de moda, mas dada a desorientação geral face ao fenômeno, ela pode ser útil ao fornecer uma abordagem e uma reserva de conhecimento que pode ser mobilizada para entender o presente.
José Maurício Domingues: Em minha área específica é essa a abordagem que estou buscando desenvolver: em face aos riscos globais em termos de saúde, como enfrentar essas questões, agora além do mais transformadas em ameaça concreta pelo coronavírus e a Covid-19? Quais são as capacidades do Estado para tratar disso, comparadas por exemplo com o mercado e as redes de solidariedade? Quais os discursos que se desdobram neste momento – segurança, risco, direitos? Tudo isso se põe, ademais, nos quadros da governança global da saúde e das possibilidades de seu fortalecimento – ou não –, frente a tendências nacionalistas.
Maria Arminda do Nascimento Arruda: A área de pesquisa a qual eu me dedico – a sociologia da cultura – possui um quadro de referências em condições de oferecer instrumentos à reflexão. Refiro-me, de modo geral, à mudança nos padrões culturais. Especificamente, permite desnaturalizar e dessubstantivar as manifestações aparentemente neutras e técnicas, sejam as oficiais, sejam as especializadas. O campo da sociologia da religião oferece importantes contribuições ao entendimento das crenças em tempos de crise e medo social.
Renan Springer de Freitas: Pode contribuir oferecendo respostas para perguntas ainda não feitas. As já feitas são bem conhecidas: como o vírus se propaga? com que velocidade? há medicamentos nos quais vale a pena investir? há alguma perspectiva de vacina? como conter a propagação do vírus? como minimizar os custos sociais da pandemia? Minha ex-área de pesquisa especializada, a sociologia do conhecimento, pode se atribuir a tarefa de responder perguntas como as seguintes: como a comunidade científica pôde chegar a alguma conclusão a respeito de como o vírus se propaga, da velocidade com que se propaga, de como conter a propagação, de que medicamentos testar e prescrever, e das perspectivas de produzir uma vacina? Como se chegou a alguma conclusão sobre como minimizar os custos sociais da pandemia? A conclusão foi consensual? Se sim, como o consenso foi alcançado? Se não, que diferença isso fez (se é que fez alguma)? Há modos “culturais” distintos de lidar com as cinco primeiras perguntas citadas – um modo que possa ser identificado segundo regiões geográficas ou o que for? Os modos de conceber o que é uma “evidência empírica”, um “fato científico”, um “experimento bem sucedido”, “custo social”, ou mesmo o próprio conhecimento científico e o que se pode esperar dele variam de acordo com países ou regiões? De que maneira? Existem tensões entre diferentes especialidades médicas (infectologistas e pneumologistas, por exemplo) a respeito de como conter a propagação do vírus ou de como avaliar a eficácia de algum medicamento? Em caso afirmativo, quais são suas implicações e como são resolvidas (se é que o são)? Há formas diferentes pelas quais o conhecimento dito “científico” é mobilizado na discussão a respeito dos “custos sociais” do isolamento social? Penso que a sociologia do conhecimento pode se dar por satisfeita se conseguir oferecer respostas razoáveis para perguntas como essas.
Mariana Chaguri: Minha trajetória de pesquisa está ligada ao pensamento social, com diálogos com os estudos rurais, de gênero e pós-coloniais. Vou me ater à dimensão propriamente teórico-metodológica do pensamento social, explorando algumas inflexões a partir dos demais diálogos. Metodologicamente, a área de pensamento social sempre nos desafiou a pensar as articulações reflexivas entre a empiria dos processos sociais e a dinâmica da produção das ideias. Compreender e explicar sociologicamente um fenômeno como a pandemia implica, me parece, investigar as mudanças sociais promovidas em seu bojo, o que, entre outras coisas, significa também observar o regime de ideias e os imaginários políticos, sociais e culturais que lhe dão significado e ajudam a organizar o próprio sentido da mudança.
Articulando teoria e metodologia, o pensamento social nos ajuda a perceber que ideias ou imaginários acionados para narrar e disputar os sentidos das mudanças provocadas pela pandemia ou em seu bojo não possuem significado crescente, cumulativo e estável, ao contrário, tais significados dependem das controvérsias e de experiências – individuais e coletivas – que as constituem. Como exemplo, e observando o caso brasileiro, a área de pensamento social auxilia a perceber quais são os circuitos de produção, circulação e de polarizações políticas e culturais em torno de questões como o isolamento social, por exemplo.
Tematicamente, ainda importa destacar que algumas das questões que organizam parte substantiva dos temas e problemas analisados no interior dessa área de pesquisa emergiram com força acentuada neste contexto, tais como, por exemplo, questões em torno da domesticidade e do lugar da família, ou os arranjos e impasses entre público e privado na sustentação de pactos mais ou menos abrangentes de solidariedade e proteção social.
3. A pandemia estaria provocando mudanças sociais, políticas e/ou culturais profundas? Ou acelerando tendências já em curso? Se sim, é possível vislumbrar os contornos das sociedades pós-Pandemia?
Peter Wagner: Isso é o que todos gostariam de saber e sobre o que muitos estão especulando. Se no debate público e político podemos observar a intenção quase obsessiva – e compreensível – de voltar ao “normal”, nas ciências sociais e na filosofia grandes visões proliferam, seja na forma de utopias quanto de distopias. Mas a médio prazo é mais provável que venhamos a perder a noção do que é ou foi “normal” e que passemos a nos referir ao passado meramente para designar o modo como as coisas foram “um dia”. Eu proponho três fragmentos para futura discussão.
Primeiro, podemos comparar as mudanças por vir, uma vez que é provável que elas incluam monitoramento e vigilância, com as políticas de “securização” em vigência há décadas. Há muito tempo um amigo e colega me disse que durante anos ele esperou que Israel se tornasse mais parecido como resto do mundo, quando na verdade era o resto do mundo que cada vez se assemelhava mais a Israel em termos de medidas de segurança. Tornamo-nos habituados a muitas práticas que eram consideradas inconcebíveis até um pouco antes de serem introduzidas. Não as consideramos parte de uma transformação social maior pela qual nossas sociedades passaram recentemente (mesmo que talvez devêssemos fazê-lo).
Segundo, podemos também comparar a Covid-19 com o HIV/AIDS, tratando-se de uma pandemia que surgiu de maneira súbita e chocante e que levou a reflexões sobre a importante mudança social que poderia desencadear. Mais concretamente, esperou-se essa mudança sobre o comportamento sexual, mas também havia uma impressão difundida de que se experimentava o “fim de uma era”. A mudança certamente ocorreu, mas em escala muito menor do que amplamente se esperava; o mundo “seguiu seu fluxo”. Retrospectivamente, sabemos que o principal componente da resposta veio da ciência médica por meio de melhorias no tratamento. Agora, novamente, as expectativas se concentram em uma solução médico-científica, que também mobiliza uma visão de volta ao “normal”. Se devemos de fato esperar que tal solução se apresente o mais breve possível, não devemos negligenciar a tendência de nossas sociedades de trabalhar em prol de um “conserto” científico para evitar que tenhamos de contemplar grandes mudançasem nossas práticas. A mudança climática fornece o exemplo mais preocupante tendo em vista essa atitude.
Terceiro, observou-se que a pandemia de 1918-1920 (à qual Max Weber sucumbiu) foi sucedida de importantes mudanças nas instituições sociopolíticas, sobretudo de uma abrupta reviravolta nas tendências anteriores de “globalização”. Podemos deixar em aberto a questão de pesar se não foi a Primeira Guerra Mundial, mais do que a pandemia, o fator decisivo para essa reorientação. De um modo ou de outro, temos aqui um exemplo relativamente recente de uma transformação social importante condicionada por uma experiência amplamente compartilhada de que algo inaceitável havia acontecido e que medidas deveriam ser tomadas para evitar a recorrência de qualquer coisa semelhante no futuro. Esses eventos permitem, assim, uma comparação útil com nossa atual situação. Eles devem ser cuidadosamente reexaminados em toda sua nuance visando distinguir entre resultantes desejáveis e indesejáveis.
José Maurício Domingues: É preciso cuidado para não exagerar os efeitos da pandemia – outras não provocaram mudanças tão significativas. Mas creio que, apesar de conflitos nacionalistas visíveis, haverá uma tendência a maior cooperação global na área da saúde, assim como se põe a questão do público, da saúde, da proteção aos sem trabalho, do papel do Estado na economia. Se a primeira questão implica em aprofundamento, apesar de tudo, de uma tendência em curso, a segunda faz uma inflexão no desenvolvimento do Estado – de qualquer maneira sempre forte e senhor de muitas capacidades – e das políticas sociais, e no modo como funciona o capitalismo. Este, além do mais, aprofundará os processos de oligopolização e automação, com uma possível deslocalização parcial da indústria da China em direção aos países centrais do capitalismo (o papel dos centros decisórios no capitalismo era, aliás, crucial para a teoria da dependência).
Maria Arminda do Nascimento Arruda: Certamente, após a pandemia, o mundo será outro. Os consensos sobre os quais a globalização se assentava– trânsito intenso, flexibilização de direitos, consumo, domínio das regras do mercado, financeirização, entre outros – estão em xeque. O isolamento, o retorno às políticas sociais, a presença do Estado são expressões das mudanças. Tende a se acentuar a cultura eletrônica e o ativismo digital com todos os seus efeitos positivos e negativos deverá se desenvolver ainda mais. No conjunto, pode-se reconhecer uma transformação no cânone da cultura. O futuro não está posto e dependerá dos rumos para os quais as decisões, lutas e embates se encaminharão.
Renan Springer de Freitas: Inicio pela última pergunta. Sim, é possível vislumbrar os contornos das “sociedades pós-pandemia” porque é sempre possível especular sobre o que está por vir quando se vive em uma sociedade cuja estabilidade econômica foi subitamente posta em xeque e cujas normas de convívio foram subitamente subvertidas, quer o fator diretamente responsável pela instabilidade e pela subversão tenha sido uma pandemia ou qualquer outro. Fiz uma rápida pesquisa na internet sobre o assunto e, sem qualquer surpresa, descobri que são incontáveis as especulações a respeito do mundo que nos aguarda, muitas das quais assinadas por figuras públicas respeitáveis. Não me vejo capaz de acrescentar qualquer contribuição digna de nota a esse formidável corpo de conhecimento. Quanto às outras perguntas, não sei se posso respondê-las. Em primeiro lugar, porque penso que seria necessário esperar o fim da pandemia para podermos saber se passamos mesmo a viver um “novo tempo” e, em caso afirmativo, que características peculiares a esse “novo tempo” podem ser atribuídas à nossa inédita experiência de isolamento social. Em segundo, porque não sei que tipo de mudança social, política, ou cultural pode ser, em princípio, atribuída à ocorrência de alguma pandemia. Entendo que pandemias causam mudanças econômicas e demográficas. Eventualmente podem causar mudanças geopolíticas. Mas não entendo que possam causar, por si mesmas, mudanças sociais, políticas e culturais. Procurei, sem êxito, o registro da ocorrência de mudanças de tal natureza na literatura sobre a pandemia da gripe espanhola. Como não obtive êxito, sinto-me incapaz de antever o surgimento de alguma mudança – excetuado, evidentemente, o estrago inevitável que já está sendo provocado na economia. Claro que mudanças sociais, políticas e culturais podem vir a acontecer, mas como um resultado (na verdade, um subproduto) da catástrofe econômica e não da experiência, em si, de “viver” uma pandemia.
Mariana Chaguri: Como tentei indicar nas respostas anteriores, o fenômeno da pandemia tem promovido um conjunto de transformações cujos sentidos estão em aberto. Questões sobre as bases sociais, políticas e culturais do neoliberalismo têm se colocado na ordem dia, com os consequentes embates acerca do papel do Estado e da amplitude de redes públicas de proteção social. Do mesmo modo, a pandemia impactou a geopolítica da solidariedade internacional, com medidas tais como fechamento de fronteiras ou mesmo o questionamento da legitimidade de protocolos e orientações pactuadas em órgãos multilaterais. De modo mais específico, é possível notar que, em diferentes partes do mundo, a extrema-direita encontrou circuitos e agentes para colocar suas ideias e visões de mundo em circulação, organizando uma reação sistemática e consistente contra medidas de isolamento social. Cabe investigar de que modo tais forças políticas e sociais continuarão tendo capacidade de encaminhar o conflito social a partir de suas demandas.
No caso brasileiro, os contornos mais visíveis do mundo pós-pandemia parecem dizer respeito ao lugar da família como unidade econômica básica numa conjuntura que articula desemprego e recessão econômica. Mas o tema se desdobra na indagação decisiva sobre as bases sociais – bem como sobre a força política – do liberalismo e do conservadorismo para a construção de pactos sociais estáveis e duráveis no país.
4. Que obra(s) da sociologia e das demais ciências sociais podem nos ajudar a compreender e a conversar sobre os desafios em curso?
Peter Wagner: À luz do que foi dito acima, deveríamos lançar um novo olhar sobre análises de transformações sociais que adotem uma abordagem verdadeiramente histórica, ou seja, que considere o conhecimento e a orientação dos atores no momento mesmo em que tiveram de agir (tais como Lógicas da história, de William Sewell, 2005). Em vez de ver a mudança social como determinada por interesses e funções, devemos examinar os modos pelos quais os auto-entendimentos das sociedades foram transformados em reação a experiências cruciais– em particular os modos pelos quais instituições coletivas, em grande medida, ainda vigentes foram criadas a partir do final do século XIX –; e compará-los aos modos pelos quais as sociedades do final do século XX embarcaram no desmantelamento de tais instituições coletivas. Além disso, devemos tentar entender melhor como a imaginação social é – e foi – utilizada para estabilizar expectativas em relação a futuros marcados por grande incerteza, e para orientar a ação coletiva (Futuros imaginados, Jens Beckert, 2016).
Finalmente, a Covid-19 é um alerta sobre nossa dependência de processos naturais, apresentando, portanto, uma ocasião suplementar, com relação à mudança climática, para reconectar nosso conhecimento das relações sociais e naturais. Este é um trabalho em andamento, para o qual Bruno Latour forneceu importante abertura (Jamais fomos modernos, 1991) e Dipesh Chakrabarty (“O Clima da História”, 2009), ampliou na direção da historiografia e da teoria da história, mas que necessita de mais reflexão e investigação detalhada, sobretudo no âmbito conceitual onde operam as noções de “antropoceno” e “sustentabilidade”.
José Maurício Domingues: As obras que tratam da questão do risco, do desenvolvimento do Estado e do capitalismo são muito relevantes nesse sentido.
Maria Arminda do Nascimento Arruda: Creio que os livros de Castells sobre o mundo em rede, bem como as obras sobre os direitos, as desigualdades sociais, são referências importantes.
Renan Springer de Freitas: O simples fato de essa pergunta admitir várias respostas aponta para um fato instigante: estamos diante de um tema sob medida para a investigação sociológica, mas, não obstante, não sabemos que contribuição temos a oferecer. Sociedades muito diferentes sob os mais variados aspectos se veem, subitamente, reviradas de ponta-cabeça. O que é feito das diferenças (e das semelhanças) em um caso como este? Penso que a obra que colocará o pensamento sociológico na “conversa” sobre a pandemia ainda está para ser escrita. Ela responderá a seguinte pergunta: que diferença fazem, ou deixam de fazer, as semelhanças e diferenças de natureza econômica, política, social e cultural quando o desafio que se coloca é o de atravessar uma súbita e avassaladora crise sanitária e, uma vez amenizada a “tempestade”, reestabelecer alguma forma de “bonança”? Enquanto essa obra não for escrita, minha aposta é em obras que de alguma maneira tenham se movido nessa direção, o que remete quase que automaticamente à literatura sobre a gripe espanhola. Destaco, do historiador Alfred W. Crosby, America’s Forgotten Pandemic: The Influenza of 1918. Há ótimos trabalhos sobre a pandemia da gripe espanhola no Brasil, seja no Rio de Janeiro, em São Paulo ou na Bahia. Infelizmente não há espaço suficiente para citá-los aqui. Mas é fora da literatura sobre esse tema que, com a ajuda de colegas, pude chegar à referência que presumo poder servir de modelo para a elaboração da obra destinada a colocar a sociologia na “conversa” sobre a pandemia. Trata-se do livro In Care of the State. Health Care, Education and Welfare in Europe and in the US in the Modern Era, de Abram de Swaan. Eu o escolhi em razão de ser uma das raras obras que discutem o modo como diferentes sociedades enfrentaram desafios incontornáveis e de alguma forma os superaram.
Mariana Chaguri: Algumas obras que têm me ajudado a perceber dinâmicas contemporâneas como as apontadas na resposta anterior são: Melinda Cooper, Family values: between neoliberalism and the new social conservatism; William Callisonet al., Mutant neoliberalism: market rule and political rupture; Quinn Slobodian, Globalists: the end of empire and the birth of neoliberalism; NancyFraser, O velho está morrendo e o novo não pode nascer.
***Uma versão revisada do simpósio se encontra publicada em Sociologia & Antropologia, n. especial, v. 11/2021, no link: http://www.sociologiaeantropologia.com.br/v-11-n-especial/
A imagem que ilustra este post é:
••• Piet Mondrian. Ocean 3, 1914. Staatsgalerie Stuttgart, Alemanha.

* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da BVPS.
1 comentário