Na atualização de hoje da série Pandemia, Cultura e Sociedade o antropólogo João Leal, professor da Universidade Nova de Lisboa, Portugal, discute os variados significados que o uso das máscaras assumem nas culturas humanas para poder refletir sobre as máscaras sanitárias da covid-19 e os valores e símbolos que ela articula.
Aproveitamos para comunicar que na quinta-feira, dia 02 de julho, publicaremos o post de encerramento do simpósio internacional Mundo Social e Pandemia. Nele, sociólogas e sociólogos do Brasil e do exterior responderam a um questionário com 4 perguntas, elaborado com a expectativa de indagar as diferentes dimensões sociais da pandemia e os desafios que ela representa para a sociologia.
Pandemia, Cultura e Sociedade é uma parceria do Blog da BVPS com a revista Sociologia & Antropologia (PPGSA/UFRJ). Assine o blog para receber as atualizações e curta nossa página no Facebook.
Boa leitura!
Máscaras covid 19 e outras máscaras
por João Leal (CRIA – NOVA FCSH)[i]
Podemos reconhecer na máscara – abordada a partir de uma perspetiva “cross cultural” – um conjunto de sentidos.[ii] Um deles prende-se com a sua capacidade de presentificação de entidades não humanas – geralmente entidades espirituais – por intermédio de personagens mascarados. Estes são percebidos como sendo as próprias entidades espirituais, que se fazem assim presentes. É esse o significado de muitas máscaras em diversas sociedades tradicionais, da Papua Nova Guiné à Amazônia ou a África. Um segundo significado que muitas máscaras assumem é um significado, não tanto de presentificação, mas de representação. É o que se passa com máscaras que representam entidades – humanas, animais, personagens de comics, etc. – que tanto os mascarados como a sua audiência sabem que são representações – mais ou menos conseguidas, com maior ou menor capacidade de criar a ilusão de uma outra presença, mas sempre representações. É esse o caso de muitas máscaras de carnaval ou – para dar um exemplo mais recente – de máscaras usadas em eventos de cosplay. Finalmente, as máscaras têm um sentido de mera ocultação da identidade – mais evidente nas máscaras venezianas ou em máscaras mais ou menos “neutras” de carnaval.
Pode-se argumentar que nas sociedades do Norte global, a máscara perdeu generalizadamente o seu valor de presentificação, mesmo em comunidades onde podemos presumir que outrora tiveram esse valor. É o que se passa em Portugal, com as máscaras associadas ao ciclo dos doze dias (estudadas por antropólogos como Benjamim Pereira, Paula Godinho, Paulo Raposo ou Miguel Vale de Almeida). Essas máscaras – como sugeriu Benjamim Pereira – provavelmente começaram por ter um sentido de presentificação, que, entretanto, perderam, oscilando hoje entre a representação e a mera ocultação da identidade.
Novas máscaras: a representação de valores
Simultaneamente, têm vindo a surgir novos tipos de máscaras que alargaram o campo das suas virtualidades representativas. É o que se passa com a máscara de Guy Fawkes tal como foi adotada pelo movimento Anonymous. Guy Fawkes foi um católico inglês que esteve envolvido, em 1605, numa conspiração contra Jaime I, o então rei (protestante) de Inglaterra. A conspiração foi descoberta a 5 de novembro e três meses depois Guy Fawkes foi executado. A comemoração da descoberta da conspiração deu origem, em Inglaterra, à noite de Guy Fawkes, marcada pela queima da sua efígie em fogueiras erguidas para o efeito. Gradualmente, estas comemorações foram perdendo terreno, mas a partir de 2006 – na sequência da publicação da novela gráfica V for Vendetta, de Alan Moore e David Lloyd – Guy Fawkes ganhou uma “segunda vida”, como máscara emblemática do movimento Anonymous. No quadro de manifestações e outras ações de rua promovidas pelo movimento, a máscara, para além do seu eventual valor de ocultação da identidade – os manifestantes podem não querer ser identificados –, ganhou o sentido de uma máscara de representação. Só que esse sentido, para além de remeter para um personagem histórico, remete igualmente para um conjunto de ideias e valores abstratos – a revolução, o anticapitalismo. As virtualidades das máscaras ganharam neste caso – como no caso das máscaras arco-íris utilizadas em paradas de orgulho LGBT – um novo sentido representacional.
Apesar dos três sentidos que podem ter (presentificação, representação, ocultação da identidade), as máscaras têm, entretanto, aspetos comuns. Entre estes conta-se, por um lado, a momentânea suspensão dos signos da identidade pessoal dos mascarados. E conta-se, por outro lado, a associação das máscaras a eventos – designadamente sob a forma de ajuntamentos festivos ou reivindicativos – em que o relacionamento social ou a afirmação da identidade de grupos é um dos aspetos relevantes,
A covid 19 e corporalidade do social
É talvez a partir deste quadro que pode ser interessante analisar as máscaras sanitárias associadas à covid 19. Estas máscaras começam por ser diferentes de outras máscaras porque são máscaras utilitárias, usadas com o objetivo de evitar a transmissão interpessoal do vírus. Mas ao mesmo tempo recuperam – involuntariamente – esses dois traços comuns que podemos reconhecer às máscaras.
De facto, a covid 19 teve um conjunto de impactos sobre o relacionamento social. O confinamento foi um confinamento das relações sociais, seja ao nível dos relacionamentos interpessoais – à Goffman (A Apresentação do Eu na Vida Quotidiana) –, seja ao nível dos pequenos e grandes ajuntamentos festivos sobre que repousa a produção e a (re)produção de grupos – à Durkheim (Formas Elementares da Vida Religiosa) –, seja ao nível dos eventos reivindicativos “de classe” – à Marx e Engels (Manifesto do Partido Comunista).
Esse confinamento incidiu com particular força sobre um conjunto de convenções culturais que – tomando o caso da sociedade portuguesa – rodeiam o relacionamento social: os beijos, os abraços, os apertos de mão, a pancadinha nas costas, a proximidade física entre as pessoas. Esta última em particular – como indicou Durkheim – é central em eventos festivos (e também, acrescento eu, em ações reivindicativas). Em qualquer caso, essas convenções têm no corpo a sua instância principal. Foi essa corporalidade do social que ficou em suspenso. Não é que certos tipos de relacionamento social tenham sido eles mesmos suspensos – muitos migraram para o ciberespaço – mas a sua expressão corporal foi momentaneamente posta em causa.
A máscara covid 19, usada como uma das formas principais de obviar à transmissão do vírus, tem como consequência involuntária uma sinalização ainda mais radical dessa suspensão do corpo como instância principal do relacionamento social. Não são só os gestos, mas o rosto e a sua capacidade expressiva – de emoções e sentimentos sobre os quais repousam as sociabilidades – que ficam confinados. A própria identidade da pessoa fica suspensa ou – nos casos em que as pessoas se conhecem – fica meio oculta. De alguma forma, as máscaras alternativas às simples máscaras cirúrgicas – pretas, de cores que podem coincidir com a da roupa, com arcos-íris ou com motivos do património nacional – tentam contrariar essa lógica despersonalizadora da máscara sanitária.
Mas o que é também relevante nas máscaras covid 19 é o modo como podemos encará-las à luz de uma lógica de representação, se considerarmos que essa lógica se estende hoje – como sugeri atrás – a ideias e sistemas de valor. O que o uso da máscara covid 19 transmite são também valores que têm sido centrais no combate á pandemia: a segurança própria e alheia, a preocupação com os outros, o civismo, as pessoas antes da “economia”. Usar a máscara é uma forma de exprimir a adesão a esse conjunto de ideias.
Por isso, em vários eventos reivindicativos que têm contrariado a lógica da suspensão do social – desde algumas manifestações do 1º de Maio promovidas por centrais sindicais europeias (como em Lisboa) até às manifestações desencadeadas pelo assassinato de George Floyd – o uso da máscara se tornou obrigatório (ou altamente aconselhado). É também por isso, inversamente, que certas personalidades políticas – como Trump e Bolsonaro – ou muitos dos seus apoiantes, fazem questão em não usar a máscara covid 19 (bem como em não cumprir outras normas de distanciamento social): não só porque a sua atitude é de negação da amplitude e dos riscos da atual pandemia, mas também porque o não uso da máscara é para eles um instrumento de uma “guerra cultural” contra os valores que a máscara covid 19 representa.
____
Notas:
[i] Professor de Antropologia da Universidade Nova de Lisboa, Portugal, e pesquisador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA – UNL). Autor, entre outros, de O Culto do Divino: Migrações e transformações e Azorean Identity in Brazil and the United States“.
[ii] Este texto nasceu de uma entrevista a Isabel Salema, jornalista do jornal português O Público, no âmbito de um artigo publicado no suplemento Ípsilon sob o título “O Ano de Todas as Máscaras” (edição de O Público de 5 de junho de 2020). Agradeço à Isabel Salema o facto de essa entrevista me ter “obrigado” a pensar sob o tema das máscaras covid 19 à luz da reflexão antropológica sobre máscaras.
••• As fotos que acompanham este texto representam máscaras portuguesas (da Madeira, de Ílhavo e de Grijó de Parada) que fazem parte do acervo do Museu de Arte Popular e do Museu Nacional de Etnologia, ambos localizados em Lisboa. ©DGPC, Ministério da Cultura, Portugal.
* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da BVPS.