
O Blog da BVPS publica hoje um simpósio especial sobre o livro Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber, de Gabriel Cohn. O trabalho do professor Gabriel Cohn, como sabemos, é peça fundamental não só para a recepção da sociologia alemã no Brasil – da qual é capítulo dos mais importantes –, mas se constitui como uma das interpretações mais originais e acuradas da obra de Max Weber, além de instigante contribuição para a teoria sociológica em geral. Desde sua publicação, em 1979, vem marcando de modo incontornável gerações de cientistas sociais brasileiros, lido e relido nos cursos de graduação e pós-graduação. Como ficará pontuado ao longo dos depoimentos que seguem, diante de Crítica e resignação estamos diante de um verdadeiro clássico.
O simpósio foi organizado por Bruna Della Torre (USP) e Lucas Carvalho (UFF), que também escrevem uma pequena apresentação, e conta com a participação de Brasílio Sallum Jr. (USP),Glaucia Villas Bôas (UFRJ), José Maurício Domingues (IESP-UERJ), Michael Löwy (Centre National de la Recherche Scientifique, França), Sérgio da Mata (UFOP) e Wolfgang Leo Maar (UFSCar).
Lembramos e recomendamos a nossos leitores a publicação recente do dossiê Gabriel Cohn no último número da revista Sociologia & Antropologia (PPGSA/UFRJ). Destacamos a entrevista com o autor, conduzida por Elina Pessanha e a equipe de S&A, e o artigo inédito de nosso homenageado, “Weber, Adorno e o curso do mundo”, em que Gabriel Cohn analisa as abordagens, muitas vezes incompatíveis, sobre questões da modernidade nesses dois clássicos da teoria social. Sugerimos ainda os artigos de Bruna Della Torre (co-organizadora de nosso simpósio), que aborda os diálogos da tradição marxista da teoria crítica presentes em Crítica e resignação, e de Leonardo Belinelli (organizador da nossa coluna “Interpretações do Brasil e política”), que situa a trajetória de Cohn no conjunto das pesquisas da cadeira de sociologia I da USP.
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Boa leitura!
40 anos de Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber: homenagem a Gabriel Cohn
Organização de:
Bruna Della Torre (USP)[i]
Lucas Carvalho (UFF)[ii]
Uma das tarefas que o pensamento crítico impôs a si próprio consistiu em expor e combater tabus que persistem num mundo que gosta de pensar a si próprio como livre de tais regressões. O maior deles, quiçá operante até os dias de hoje, é o do próprio pensamento enquanto exercício autônomo. Os 40 anos de Crítica e resignação, livro que permanece uma das maiores referências da teoria social no Brasil, é testemunho da potência do cometimento crítico e da importância da prática teórica nas ciências sociais. Num momento em que a ciência está sob forte ataque e o pensamento crítico sofre investidas de um anti-intelectualismo difuso, presente nos lugares mais surpreendentes, o próprio pensar é antídoto, forma de resistência e afronta a um mundo no qual somente as coisas que servem à sua reprodução podem sobreviver. A trajetória de Gabriel Cohn, nesse sentido, serve de contraponto, na medida em que é marcada pelo cosmopolitismo de enfrentar um cânone alemão das ciências sociais, pela coragem de se debruçar sobre a teoria social num momento no qual a sociologia encarnava uma vocação majoritariamente empírica e pela versatilidade intelectual que toma para si objetos diversos, fugindo da especialização bitolada para a qual empurram as forças objetivas da ciência e do mundo no qual ela se insere.
Essa homenagem visa recolher depoimentos de pesquisadores de gerações diversas a respeito desse grande livro e grande autor e homenagear a trajetória de um dos nossos maiores intelectuais. Fizemos três perguntas a cada um deles sobre a recepção e a importância de Crítica e resignação e as respostas seguem abaixo. Agradecemos a André Botelho, pela ideia da homenagem, a todos que participaram e a Andre Bittencourt, que também colaborou para a sua realização.
Nossos convidados são:
Brasílio Sallum Jr., professor titular de Sociologia da Universidade de São Paulo. É autor, entre outros, de Labirintos: dos generais à Nova República e O impeachment de Fernando Collor: sociologia de uma crise.
Glaucia Villas Bôas, professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora, entre outros, de Mudança provocada e A recepção da sociologia alemã no Brasil.
José Maurício Domingues, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros, de Critical theory and political modernity e Emancipação e história. O retorno da teoria social.
Michael Löwy, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (França). É autor, entre outros, de A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano e Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade.
Sérgio da Mata, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto. É autor, entre outros, de A fascinação weberiana. As origens da obra de Max Weber e Chão de Deus: catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais.
Wolfgang Leo Maar, professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade Federal de São Carlos. Autor, entre outros, de O que é política e O público e o privado; o poder e o saber.
1- Qual foi o impacto de Crítica e resignação na sua trajetória acadêmica e na trajetória de sua geração?
2- Como você enxerga a contribuição do livro de Gabriel Cohn para a recepção da sociologia alemã no Brasil?
3 – Em seus mais diversos trabalhos, Gabriel Cohn sempre prezou o tratamento refinado de conceitos e mesmo aproximações – não raro inusitadas – entre abordagens e autores distintos entre si, revelando a originalidade que a atividade teórica na periferia do capitalismo pode ter. Nesse sentido, qual foi e qual é a importância de Crítica e resignação para a prática da teoria social no Brasil?
Brasílio Sallum Jr.
Crítica e resignação foi decisivo para meu entendimento da obra de Max Weber e influenciou o meu próprio trabalho. Ela foi muito marcante no que diz respeito ao entendimento que se tem no Brasil da obra de Max Weber. Até hoje Crítica e resignação se destaca quando comparada a publicações em inglês e francês de outros analistas da obra de Max Weber. Infelizmente ela não foi traduzida para essas línguas, o que reduziu o impacto cultural que certamente teria.
Crítica e resignação foi um ponto fora da curva no momento em que foi lançada pois o mundo acadêmico de então se inclinava para o marxismo. No entanto, ela mostra que há bastante proximidade entre os dois autores, pois ambos enfatizam o caráter fundamentalmente conflitivo das relações sociais. Com efeito, o livro mostra que luta, escassez, apropriação e dominação estão no centro da sociologia de Max Weber. Outro ponto bastante destacado é a da autonomia das várias esferas de ação em que atuam os agentes sociais. Nisso Weber se afasta de Marx.

Glaucia Villas Bôas
1- Qual foi o impacto de Crítica e resignação na sua trajetória acadêmica e na trajetória de sua geração?
Li Crítica e resignação. Fundamentos da Sociologia de Max Weber dois anos depois de sua publicação em 1979. Tinha acabado de voltar de uma estadia de seis anos na Alemanha, e as leituras de Max Weber em seminários na Universidade Erlangen-Nueremberg estavam vivas na memória. Lembro que fiquei feliz em ler em português um livro que dialogava com autores alemães que havia conhecido como Dilthey e Simmel. Me interessava de maneira especial pela polêmica sobre os valores. Adotei imediatamente o livro para elaborar os programas de disciplinas obrigatórias de Sociologia, que ministrava no curso de graduação em Ciências Sociais do IFCS. Não me recordo se o livro fazia parte das leituras obrigatórias dos cursos, creio que não, fazia parte das leituras complementares. Só mais tarde, em cursos de teoria sociológica, oferecidos na pós-graduação em Sociologia e Antropologia, inclui o livro do Gabriel Cohn nas leituras obrigatórias. Junto com Crítica e resignação, eu lia a introdução de Pietro Rossi ao Ensayos sobre metodologia sociológica da Amorrortu e o livro de Julien Freund sobre Weber. No mais, minhas aulas naquela época, como as que ministrei recentemente, privilegiaram os textos originais de Max Weber, que considero mais esclarecedores do que muitos dos textos que se escrevem sobre eles. Exceto, claro, o Crítica e resignação!
O texto do Gabriel me deixou mais convencida ainda de que, na análise do pensamento de um autor, o mais importante é percorrer o movimento do seu pensamento, sua lógica, os pontos que valoriza mais, os pontos que valoriza menos, as conexões que faz _ e não buscar apenas o resultado daquele modo de pensar traduzido em um conceito. Há uma afirmação que nunca esqueci, e na qual Gabriel diz que o pensamento acadêmico da época de Weber ocupava-se com questões ligadas à sua própria possibilidade e validade “…entre a crítica do objeto e a crítica do conhecimento, prevalecia a segunda” (Cohn, 1979/13). Ora, essa observação sobre o contexto de produção da obra weberiana ressoa até hoje no meu trabalho como uma espécie de divisor de águas. Me abriu os olhos não só para o entendimento da obra de Max Weber como também de Simmel. Mais adiante, curiosamente, me abriu os olhos para as condições históricas e culturais específicas da produção sociológica brasileira, que, justamente, ao contrário de um pensamento voltado para seus próprios limites, preza o objeto mais do que as possibilidades de conhecê-lo.
Além disso, a observação de Gabriel sobre o contexto de produção da obra weberiana, me permitiu fazer distinções e ensinar melhor. Os alunos de sociologia, aqui como em em outras partes do mundo, estão compelidos, por força do que é lhes é exigido nos concursos, nas provas, nos trabalhos de curso, nas teses e nos artigos que escrevem, a usar uma orientação teórica ou conceito nas suas pesquisas empíricas, que os guie na organização dos materiais que coletam. Noto que têm uma grande preocupação de aprender de cor e salteado as definições conceituais: o que é classe social para Marx? o conceito de patrimonialismo para Weber, cultura de massas para Adorno, a dádiva para Marcel Mauss, configuração para Norbert Elias, e por aí vai. Ah, ia me esquecendo, do que é habitus e campo para Pierre Bourdieu. Isso é algo que lhes é exigido e os estudantes respondem muito bem a essa exigência. Em contrapartida, hámuito poucacuriosidade (até mesmo porque não é estimulada) em saber como o autor elaborou aquele conceito. E aqui entra o que aprendi com o livro do Gabriel: é preciso ensinar também como um autor elabora um conceito, para que se compreenda melhor o seu significado, se entenda melhor os seus limites e se desenvolva um senso crítico indispensável relativamente às suas possibilidades cognitivas.
Outra lembrança importante se refere, ainda, à contextualização da obra de Weber na primeira parte de Crítica e resignação: trata-se da tomada de posição de Gabriel relativamente à relevância da contextualização. Ela não serve para mostrar as filiações do autor ou rastrear suas influências, mas para apresentar o contexto de discussões da época e apreender como Weber se situou naquela configuração. Nesse sentido tenho muita afinidade com Gabriel. Em minhas pesquisas venho privilegiando a autonomia intelectual dos estudiosos em seu contexto, a exemplo dos estudos sobre Maria Isaura Pereira de Queiroz, (o que não significa naturalmente que ela não seja uma socióloga dos anos de 1950, no Brasil) ou, mais recentemente, sobre o crítico de arte Mario Pedrosa.
Crítica e resignação se afasta das interpretações mais convencionais de Weber. Isso porque não trata de aspectos da modernidade que Max Weber elucidou (aparentemente com tanta paixão!) como o processo de racionalização e o consequente desencantamento do mundo, nem investiga um de seus conceitos como patrimonialismo, mas refaz o percurso metodológico de Max Weber. O alcance dessa escolha é inestimável. Acrescente-se que Gabriel tem uma maneira de pensar e escrever que tornam aquela tarefa “pesada”, leve e interessante. Ele consegue colocar em palavras, da maneira mais clara que já vi, algo que não é de fácil entendimento. Isso fica muito evidente, por exemplo, quando argumenta que Weber estava interessado efetivamente no sentido da ação, que Weber buscava o sentido que encadeava as ações e relações sociais de agrupamentos humanos dos mais diversos, privilegiando a regularidade das ações. Mas, se a obra de Weber está repleta de personagens como beduínos, clérigos, operários eslavos, ingleses, protestantes, judeus, banqueiros, camponeses, será que ele procura mesmo o sentido da ação? Em Crítica e resignação, Gabriel argumenta com elegância que Weber está, sim, interessado, acima de tudo, no sentido social da ação, que todavia se realiza através de sujeitos historicamente concretos:
A unidade compreensível da ação é então dada pelo sentido. Resta saber onde se localiza esse sentido, posto que Weber não opera com a ideia de sistemas significativos objetivos já dados. Só há uma resposta possível no esquema weberiano. A única sede efetiva empírica possível do sentido é o agente, o sujeito, que comparece assim para usar o termo sugestivo do próprio Weber, como seu “portador”. E é por isso – longe de qualquer “psicologismo”- que Weber insiste no caráter subjetivo do sentido da ação. O sujeito individual constitui para ele o limite “para cima e para baixo” da realização do sentido (Cohn, 1979, p. 93).
Há tantas lições em Crítica e resignação que não poderia me reportar a todas elas, mas queria lembrar ainda uma das características do livro que até hoje me é cara. Trata-se da arte de argumentar própria de Gabriel, tão rara nos dias de hoje – em que a produção intelectual se volta, talvez, com algum excesso, para narrativas e descrições – e por isso, tão oportuna na atualidade.
2- Como você enxerga a contribuição do livro de Gabriel Cohn para a recepção da sociologia alemã no Brasil?
Escrevi sobre isso no meu livrinho A Recepção da sociologia alemã de 2006, que resultou de um projeto de pesquisa sobre a sociologia alemã no Brasil, financiado pelo CNPq. Eu estava imbuída da necessidade de sistematizar as modalidades de apropriação e reelaboração da sociologia alemã na sociologia brasileira, sempre com o intuito de compreender melhor a sociologia brasileira, como afirmo no livro e em outros textos. Meu objetivo não era estudar influências nem filiações. Ao escolher como ponto de partida a institucionalização da sociologia no país da perspectiva de sua produção, cheguei a definir três modalidades específicas da recepção da sociologia alemã: 1) a primeira modalidade se define pela leitura de autores alemães, sua reinterpretação e utilização em pesquisas empíricas; a 2) se inaugura justamente com o livro de Gabriel Cohn e é de grande relevância, pois, com Crítica e resignação, a sociologia alemã se torna ela mesma objeto de reflexão e análise. Essa é uma reviravolta significativa no pensamento sociológico no Brasil uma vez que a leitura dos autores alemães perde seu caráter instrumental imediato para acolher ideias, teorias e conceitos como objeto de reflexão. No meu livro, mostro ainda como à obra de Gabriel sucederam outros livros, artigos e teses sobre a sociologia de Max Weber e outros autores alemães na área da sociologia. A terceira modalidade que aponto no livro é o estudo da recepção, cujo alvo é apreender a lógica das leituras feitas pelos brasileiros de sociólogos alemães.
Anos depois, em 2014, ao escrever o artigo “A Recepção controversa de Max Weber no Brasil (1940-1980)”, voltei ao Crítica e resignação. Não mais para conceber os programas de meus cursos de teoria sociológica, como havia feito logo na primeira leitura do livro, nem para avaliar as modalidades da recepção da sociologia alemã, mas para entender algumas características da recepção de Max Weber entre sociólogos brasileiros. Na realidade, eu havia recebido um convite de um colega argentino e outro mexicano para escrever um capítulo para o livro Max Weber em Iberoamérica (2016). Me senti muito honrada e achei que não devia recusar. Mas tive que trabalhar muito. A pesquisa da recepção é custosa porque exige duplamente a leitura de um ou mais autores e a leitura daqueles que os lêem, reelaboram e se apropriam de suas ideias. No meio de tantos textos e escritos, lembro que o livro do Gabriel estava sempre perto, sobre a minha mesa, para esclarecer dúvidas. Não que ele tratasse da recepção de Weber no Brasil, mas justamente porque me mostrava um Max Weber cujos conceitos e metodologia se constituiram em relação com o contexto de discussão do seu tempo, o que representava um contraste claro com as apropriações dos intelectuais brasileitos, sobretudo nos finais dos anos de 1950.
Há muitas maneiras de abordar o pensamento de um autor. Podem-se distinguir duas ou três delas. Uma é a que Bourdieu ressalta no texto “Les conditions de la circulation internationale des idées”, conferência que pronunciou em 1989, pela primeira vez na Alemanha, por ocasião da inauguração de um centro de estudos sobre a França na Universidade de Freiburg. Nesse caso, destacam-se fatores externos ao pensamento, que se impõem, como as editoras, os prefácios, as traduções, as marcas que traduzem a prepoderância de grupos sobre outros e que fazem as ideias se moverem de um canto a outro. A segunda encaixa o pensamento dos autores em grandechaves classificatórias, funcionalismo, estruturalismo, interacionismo simbólico, teorias do conflito etc. Muito comum nos manuais de sociologia, essa segunda modalidade é hoje frequente na Internet. Basta ver o que sites sobre as teorias sociológicas tem a dizer. Finalmente uma terceira é percorrer o pensamento do autor. Naturalmente, elas podem estar mescladas mas de maneira geral convivem com uma separação rígida, e são sempre motivo de calorosas discussões (o dentro e o fora, externo e interno etc).
Faço essa consideração na tentativa de responder a sua pergunta sobre a repercussão de Crítica e resignação na minha geração e na recepção da sociologia alemã, em geral, no contexto brasileiro. Muito embora a obra ocupe lugar de destaque, como disse, creio que a escolha de Gabriel de reapresentar o percurso do pensamento de Max Weber em vez de dar à sua obra um tratamento diferente, utilizando-se, talvez, de fatores externos ao pensamento ou buscando suas influências e filiações, possivelmente, teve como efeito o fato de o livro ser recebido por especialistas em teoria sociológica ou, mais especificamente, na teoria sociológica alemã sem que as ideias ali contidas pudessem penetrar mas livremente no horizonte intelectual de minha geração, mais afeita às pesquisas sobre influência e filiações ao tratar das ideias de um autor. Além disso, há outros motivos para a recepção circunscrita da obra de Gabriel. A crescente especialização que coincidiu com a trajetória de minha geração vem constrangendo a curiosidade dos jovens para aspectos da sua disciplina, levando-os a uma altíssima concentração na pesquisa de seu tema de investigação e total desinteresse pelos autores clássicos.
3 – Em seus mais diversos trabalhos, Gabriel Cohn sempre prezou o tratamento refinado de conceitos e mesmo aproximações – não raro inusitadas – entre abordagens e autores distintos entre si, revelando a originalidade que a atividade teórica na periferia do capitalismo pode ter. Nesse sentido, qual foi e qual é a importância de Crítica e resignação para a prática da teoria social no Brasil?
Nunca duvidei da originalidade da atividade teórica no contexto que você chama de “periferia do capitalismo”. Durante meus anos de formação na Universidade de Erlangen – Nueremberg, assisti aos cursos oferecidos por professores alemães para alunos alemães que discutiam a obra de Darcy Ribeiro e Paulo Freire. Eram cursos que não estavam ligados a nenhum centro ou professor especialista em América Latina ou no Brasil. Havia interesse nas ideias daqueles autores. Além disso, ao longo de minhas pesquisas sobre a recepção da sociologia alemã, e, ainda, da pesquisa sobre o surgimento da arte concreta na cidade do Rio de Janeiro, tenho argumentado que as categorias centro e periferia não são de natureza sociológica mas geopolítica. Por isso, independentemente do que você chama de centro e periferia, considero o pensamento de Gabriel Cohn original e relevante para o entendimento de aspectos, sobretudo teórico-metodológicos, da obra de Max Weber. Qualquer bom leitor da língua portuguesa que desejar conhecer melhor o pensamento de Max Weber não pode prescindir da leitura do livro.
Um dos pontos altos de Crítica e resignação é evidenciar os problemas das proposições de Max Weber, suas incoerências e contradições e apontar questões que não foram esclarecidas pelo autor e permanecem sendo objeto de interesse de seus intérpretes. Voltemos então àquela questão do sentido da ação social, que já mencionei. No último capítulo do livro, “As Armadilhas da coerência”, Gabriel a retoma para mostrar o quanto sua definição é problemática:
Na realidade, Weber jamais conseguiu dar conta de maneira inequívoca desses conceitos [o outro é compreensão GVB], supostamente centrais na sua análise. O mais claro sintoma disso é o caráter inconclusivo e logicamente viciado por um raciocínio circular de sua definição de sentido, no início de Economia e Sociedade (…). Num autor rigoroso como Weber isso dá o que pensar (Cohn, 1979, p. 139).
Gabriel afirma, em seguida, que Weber reserva um papel tão especial para os processos racionalizados que, por exemplo, no caso puro da ação racional referente a fins, o sentido mais adequado da ação pode ser pensado sem passar pelo sujeito. A partir daí desenvolve seu ponto de vista com o objetivo de tornar evidente a insuficiência de clareza na definição do sentido social da ação. Penso que um dos legados de Gabriel para os interessados na teoria sociológica é justamente a prática da suspensão provisória de juizos e interesses para entender melhor as proposições de um autor, atitude que possibilita questionar seus pontos obscuros e incoerentes. Isso parecesimples mas não é. Ao longo da minha trajetória, tenho visto com muita frequência a instrumentalização dos conceitos e, mesmo, a retomada de algumas grandes hipóteses da sociologia brasileira, como a do atraso do país, descoladas de qualquer exercício crítico.
Por fim, penso que Crítica e resignação é uma referência muito importante para quem quer de fato conhecer Max Weber tanto com o objetivo de preparar aulas sobre o autor, ministradas nos diversos níveis de formação do sociólogo, quanto no que respeita à apropriação de suas ideias na produção de pesquisas. Além disso, o livro é indispensável para os que se interessam pela recepção de Weber entre os sociólogos brasileiros. Ao fazer um exame tão arguto do pensamento weberiano, o livro acaba mostrando o quanto os sociólogos brasileiros e, creio de outros países também, estão, possivelmente, mais interessados em modelos e sistemas gerais do que nas construções ideais típicas históricas particulares, e como eles abraçam a ideia de determinação e recusam as ideias de tensão e autonomia; e como, consequentemente, preferem o estudo das influências e filiações ao estudo das direções que o pensamento pode tomar ao debruçar-se sobre uma infinitude de acontecimentos.

José Maurício Domingues
1- Qual foi o impacto de Crítica e resignação na sua trajetória acadêmica e na trajetória de sua geração?
Li Crítica e resignação ainda durante meu mestrado e o livro foi uma verdadeira revelação. Em dois ou três sentidos. Primeiro por que àquela altura me parecia – e depois isso se confirmou – na melhor ou uma das melhores e mais criativas interpretações da metodologia weberiana, da questão dos tipos ideais, bem como de Weber de modo geral. Depois eu mesmo o utilizei em publicações minha, na mobilização desses dois temas. Além disso, era um autor brasileiro, um dos poucos que tinha ido longe na teoria social, o que encorajava um aspirante a teórico social. Enfim, porque me ajudou a situar o significado do que é teoria crítica, em geral e na periferia, inclusive em sua reivindicação de vocação teórica propriamente dita.
2- Como você enxerga a contribuição do livro de Gabriel Cohn para a recepção da sociologia alemã no Brasil?
O livro é exemplar, cobrindo não apenas a obra de Weber, mas uma constelação de autores alemães, pioneiramente; de novo, a possibilidade de compreender e trabalhar a partir dessa tradição, criativamente, me parecem centrais nessa contribuição de Cohn.
3 – Em seus mais diversos trabalhos, Gabriel Cohn sempre prezou o tratamento refinado de conceitos e mesmo aproximações – não raro inusitadas – entre abordagens e autores distintos entre si, revelando a originalidade que a atividade teórica na periferia do capitalismo pode ter. Nesse sentido, qual foi e qual é a importância de Crítica e resignação para a prática da teoria social no Brasil?
Crítica e resignação é de um rigor à toda prova, pondo-se como um parâmetro para quem quer fazer teoria social – no Brasil ou em qualquer lugar. Ou seja, não é porque vivemos na (semi)periferia que devemos aceitar que a produção intelectual e teórica em particular seja menos consistente e ambiciosa que a que tem lugar na Europa e nos Estados Unidos. De resto, é assim que isso se põe em toda a obra de Gabriel Cohn.
Michael Löwy
É uma velha amizade: Gabriel e eu nos conhecemos desde meados do século passado! Nunca vou esquecer uma conversa que tivemos em fins dos anos 1950: Gabriel se interrogava sobre a escolha de uma disciplina de estudos, de um Beruf para usar um conceito weberiano. Eu lhe sugeri o departamento de Ciências Sociais da USP, que eu havia começado a cursar. Convencer o Gabriel a estudar esta disciplina – ou melhor este conjunto de disciplinas – foi minha maior contribuição para as Ciências Sociais no Brasil…
Tenho muitas dívidas com o amigo Gabriel. Uma das mais importantes, sem dúvida, foi a esplêndida tradução que ele fez (ao português) de meu livro Franz Kafka, sonhador insubmisso (Azougue, 2005). Mas não posso deixar de mencionar seu belíssimo livro sobre Max Weber, Crítica e resignação (1980) que muito me ajudou no momento de redigir, muitos anos mais tarde, meu próprio ensaio sobre o ilustre sociólogo de Heidelberg.
Meu mestre, Lucien Goldmann, costumava dizer que uma grande obra literária ou de ciências humanas, se caracterizava pela unidade entre riqueza e coerência. Este juízo se aplica perfeitamente a este livro de Gabriel: ele é de uma riqueza impressionante, pela multiplicidade dos temas e dos autores discutidos, pela erudição extraordinária; mas é também de uma formidável coerência, na construção dos principais argumentos do livro.
Acho que Gabriel captou exatamente o grande dilema de Weber: por um lado, a crítica, em nome de certos valores aos quais aderia sem restrições (a liberdade, a autonomia individual), por outro, a resignação, a convicção que a “prisão de aço” capitalista/burocrática era o destino inevitável das sociedades modernas. Ou, se se quiser, a tensão entre os julgamentos de valor que inspiram sua visão crítica – basta pensar nas últimas páginas de A Ética Protestante e do Espírito do Capitalismo – e a exigência de um conhecimento neutro, de uma ciência social Wertfrei. Ou ainda, sob um outro ângulo, a fascinação pela universalidade faustiana e, por outro lado, a necessidade imperativa de sacrificá-la sob a exigência imperativa de especialização profissional – condição sinequa non de uma ação eficaz no mundo moderno. Como bem aponta Gabriel, estes dilemas, estas tensões, longe de enfraquecer o argumento weberiano, são uma das fontes de sua vitalidade e de sua pertinência!
Certo, nem sempre estou de acordo com o que escreve meu amigo. Temos algumas divergências (ainda bem!) …
Uma destas diferenças tem a ver com a relação entre Weber e Marx. Embora não haja um tratamento sistemático do tema no livro, ele é abordado em diferentes momentos. Por exemplo na introdução:
“Grande parte do que passa por ser análise marxista na Sociologia é perfeitamente compatível com o esquema weberiano, sem que isto signifique em absoluto que estas duas linhas de pensamento sejam compatíveis entre si” (p. XII).
Voltando ao tema, mas sob um outro ângulo, num dos últimos capítulos, Gabriel insiste que entre as premissas de Weber e o materialismo histórico “não há conciliação possível, apesar dos esforços de um Merleau-Ponty de construir um ‘marxismo weberiano’ nas suas Aventuras da dialética” (p.136).
Concordo com estes juízos e também discordo deles…
Parece-me que, no que concerne àcrítica, existem, entre as análises do capitalismo por Weber e Marx, muitas convergências, muitos argumentos distintos, mas compatíveis, e alguns incompatíveis. Karl Löwith (não é parente meu!) já havia esboçado um balanço destes aspectos em um famoso ensaio dos anos 30, que Gabriel cita, mas acaba recusando.
A radical incompatibilidade se situa em outro terreno. Ela diz respeito à resignação: contrariamente a Weber, adversário decidido do socialismo, Marx é partidário de uma revolução social capaz de substituir o capitalismo por uma sociedade sem classes nem dominação. Aqui a filosofia da práxis marxista se opõe frontalmente à “heróica resignação” weberiana diante da jaula de aço, este “destino fatal” (Schicksal) da modernidade.
Quanto ao “marxismo weberiano”, creio que sim existe, na obra do jovem Lukács, nos escritos da Escola de Frankfurt e no mencionado ensaio de Merleau-Ponty (entre outros exemplos). Mas estou de acordo com o Gabriel que não se trata de uma “conciliação” entre os dois: seria melhor a utilização, por alguns marxistas, de ideias, conceitos e argumentos weberianos (tentei mostrar isto em detalhe no meu livro sobre Weber e Marx).
Vasta questão! Que obviamente não pode ser elucidada nesta pequena nota…
O que fica, então, é uma grande admiração pelo livro do Gabriel, que, sem dúvida, constitui um marco na história da recepção de Weber no Brasil. E que mereceria ser traduzido para muitas línguas, porque, afinal, o que ele traz como análise epistemológica e imaginação sociológica tem um valor universal…

Sérgio da Mata
Cheguei tarde, talvez demasiado tarde, ao livro de Gabriel Cohn. Na graduação em História na UFMG, não creio que a leitura de Crítica e resignação nos foi em algum momento indicada. A proverbial resistência dos historiadores a Weber, apesar dos esforços de minha professora Lucília de Almeida Neves, talvez explique o fato. De fato, o primeiro Cohn que li foi sua coletânea de textos de Weber, publicada na saudosa coleção “Grandes Cientistas Sociais” da editora Ática. Com sua excelente introdução, trazendo textos que por muito tempo não gozariam de outras versões em português (é o caso, até os dias de hoje, de um dos ensaios de Weber mais flagrantemente influenciados por Marx, “As causas sociais do declínio da cultura antiga”), o livrinho azul e branco com a foto do Aiatolah Khomeini na capa foi, ao lado da Ética protestante, a minha porta de entrada para a gigantesca e multifacetada obra do “mito de Heidelberg”.
Receio não incorrer em alguma impropriedade ao sugerir para Crítica e resignação aquilo que seu autor reluta em fazer com Weber: contextualizar. É que em fins da década de 1970 aparecem, quase que simultaneamente, três grandes livros sobre o legado weberiano. Podemos inclusive dizer, com justificado orgulho, que dois deles eram da autoria de brasileiros. Estes livros são O desenvolvimento do racionalismo ocidental. Uma análise da história social de Max Weber, de Wolfgang Schluchter; Rousseau e Weber. Dois estudos sobre a teoria da legitimidade, de José Guilherme Merquior; e, por certo, o livro de Cohn.
Da mesma maneira que os dois outros títulos mencionados, a preparação de Crítica e resignação não pôde se beneficiar da imensa quantidade de material inédito aportada pela Max Weber Gesamtausgabe, cuja efetiva publicação só se iniciaria em 1984. Assim, impressiona como o sociólogo paulista estava atento ao que de melhor havia na literatura internacional disponível até então, quanto mais se pensarmos que, dos três autores, ele certamente era o que enfrentava as maiores limitações de acesso à produção mais recente, sobretudo (imagino eu) em língua alemã. Nada disso parece ter afetado ou prejudicado o valor substantivo de Crítica e resignação. O vigor interpretativo, a densidade analítica e o equilíbrio dos juízos que nele se expressam, não bastasse sua escrita elegante, primorosa mesmo, dão ao livro de Cohn o status de divisor de águas na produção brasileira e latino-americana sobre Max Weber.
Seria unfair, em especial para um historiador das ideias, avaliar a importância da contribuição de Crítica e resignação à luz dos progressos realizados ao longo das últimas décadas nos “Weber Studies”. Gostaria apenas de assinalar o peso uma de ausência, que, de resto, se repete no livro de Merquior. Embora seus objetivos diferissem claramente entre si (os fundamentos da sociologia compreensiva, em um; a concepção weberiana da legitimidade política, no outro), salta aos olhos o fato de que a religião não ocupa lugar de relevo em nenhum dos pais fundadores da Weberforschung brasileira – não nos esqueçamos ainda de um Maurício Tragtenberg. Como entender que, às vésperas da Revolução Iraniana e diante da ebulição crescente do campo religioso na América Latina, a discussão da teoria política, sociológica e histórica de Weber tenha deixado de fora esta questão verdadeiramente matricial, o fenômeno religioso?
Uma resposta weberiana a esta questão bem poderia ser: os valores teóricos dominantes naquele momento orientavam os investigadores para o que lhes parecia efetivamente “relevante”. Todos pareciam dividir a mesma crença na inexorabilidade da secularização, deslocando, assim, a religião para as margens da sociologia e da ciência política. Fadada a desaparecer ou pelo menos a acabrunhar-se, restrita àqueles espaços sociais onde a modernidade não teria vingado (“ainda”), a religião podia então ser deixada a cargo dos historiadores e dos antropólogos sociais. O fenômeno religioso era a antimodernidade.
Hoje tal lacuna torna-se demasiado evidente. Ser “fiel” a Max Weber exigiria de nós, no momento atual, o abandono daquela silenciosa e persistente enteléquia que percorre a obra de Max Weber; enteléquia que sabemos traduzida na sedutora metáfora do “desencantamento do mundo”. Mas me pergunto se a foto de Khomeini na capa da coletânea preparada por Cohn em 1979 não oferecia a resposta correta, ainda que contingente, para a pergunta que seu magnum opus não estava ainda em condições de fazer.

Wolfgang Leo Maar
Crítica e resignação – Fundamentos da Sociologia de Max Weber, de Gabriel Cohn, é um livro indispensável, o que costuma ser chamado de “clássico”: é admissível discordar, em parte ou mesmo no todo; mas é impossível ignorar a maestria na composição da cadeia argumentativa em seu contexto, a conferir vida própria à obra uma vez escrita.
Vale, em primeiro lugar, pela erudição em seu conteúdo, ao (re)construir a sociologia weberiana em vez de relatar a sociologia de Weber. Essa perspectiva, de uma história e não de uma historiografia da sociologia, permanece, em que pese toda a bibliografia posterior, que não tenho condições de acompanhar.
Para além disso, sua importância está no modo de abordar autores e temas conforme uma trajetória formativa original, sustentada num sofisticado posicionamento de contrapontos e tensionamentos de conceitos e significados, que se dissolvem para tornar a se dispor mais à frente, rumo ao pensamento de Weber e Marx. Gabriel acompanha o pensamento no curso próprio de cada autor, sem a modulação por perspectivas pressupostas. Tome-se nesse sentido o último capítulo, cujo título – “As Armadilhas da coerência” – prenuncia o difícil lugar no mundo de um pensamento voltado simultaneamente ao conhecimento e à ação. Ali se desenvolve o que pode ser chamado “arquitetura filosófica” do pensar social. É exemplar o modo pelo qual revela como o abandono de critérios de validade universal não conduz ao relativismo, na medida em que Weber confere destaque à responsabilidade dos agentes pelas consequências de sua ação, o que, por sua vez, evolui no contexto da contraposição entre autonomia e determinação, que leva, por fim, a decifrar “duas acepções distintas de determinação”: a de Weber e a de Marx.
Vale perguntar: não haveria aqui também duas acepções distintas de “sociedade” a diferenciarem os dois autores? A de Weber procura apreender a sociedade como estabelecida, numa relação de exterioridade com seu momento determinante, que não compartilha o plano da sociedade. A de Marx se baseia na sociedade como processo em sua totalidade, incluindo seus determinantes internos: uma sociedade apreendida dinamicamente no processo de sua própria produção.
Por fim, talvez o mais memorável seja uma linguagem que, para além de ser instrumento ou meio, constitui uma prosa sociológica a se expressar em formulações precisas, afinadas e potentes, cunhadas com sutilezas delicadas, mediante as quais são recorrentemente polidas as categorias com os seus significados. Procede conforme um esprit de finesse que constitui – ou deveria ser – parte fundamental do próprio fazer sociológico, sempre atento às dificuldades terminológicas do pensamento social e à elaboração conceitual para suspender as mesmas. Impõe uma leitura que não pode ser “ao pé da letra”, como adverte o autor, pois deve dar conta da dinâmica da construção categorial condicionada por uma época, com seu ideário e sua reflexão, formada pela sociedade capitalista e seu pensamento liberal-burguês.
A resignação adquire clareza em contraponto com a crítica e vice-versa; assim Adorno está presente como interlocutor. Mas há mais: em entrevista muito esclarecedora a Ricardo Musse e Stefan Klein, na revista Tempo Social, comprova-se uma suspeita antiga: Crítica e resignação é um livro adorniano sobre Weber. Melhor acompanhar pelas palavras do próprio Gabriel. “Na minha perspectiva pessoal, a principal contribuição de Adorno naquilo que se aplica a sociedades como a nossa consiste na valorização do pensamento fino, capaz de surpreender tendências onde estão mais ocultas, às vezes em recantos inesperados da vida social, porém nem por isso menos eficazes (…) é o melhor incentivo para realizar na reflexão e na pesquisa um lema que para mim vai se tornando imperativo. A saber, que, quanto mais bruta é a sociedade que nos importa conhecer mais fina deve ser a análise. Isso, desde que nosso propósito seja adicionar conhecimento novo e eventualmente imprevisto, ao invés da mera reprodução do objeto com sinal invertido no discurso”.
O referido acima converte o autor, por Crítica e resignação e outras obras, na mais sofisticada expressão intelectual viva da elaboração teórica na sociologia no Brasil.
Conheci a obra bem antes do autor, quando me debruçava sobre os escritos de “juventude” de Georg Lukács, no trabalho que resultaria em minha tese “A Formação da Teoria em História e Consciência de Classe”, de cuja banca Gabriel participou. Como a formação do húngaro passou por Weber, procurei obras de apoio para orientar essa busca. Desde logo, simpatizei com a sua recusa em ver indicações que possibilitavam algo como um “marxismo weberiano”. Parecia algo forçado, que desde aquela época atribuí a uma certa leitura posterior de Lukács – que procuraria envolver Habermas, por exemplo – do que propriamente a parentescos intelectuais. Mas o livro me fez perceber que, embora sem parentesco, havia, contudo, uma “afinidade eletiva” entre categorias e sua posição na realidade social, embora com caráter nitidamente diferente. Assim ocorreu entre racionalização e reificação, a rigor duas acepções de “racionalização” como categoria social e histórica. Uma com o fim do sujeito do conhecimento em Weber e outra com objetivo operacional do sujeito histórico para Lukács, cujo alvo era justamente uma teoria que unificasse ambos.
Depois disso, estive com Gabriel Cohn em vários eventos acadêmicos. Um em especial contribuiu para movimentar meu interesse central de Lukács à Teoria Crítica. Num seminário na Unicamp dedicado aos 75 anos de publicação de História e Consciência de Classe– publicado com o título Lukács: um Galileu no séc. XX – na discussão de uma mesa em que expusera ressalvas à Teoria Crítica e a Adorno pelo que considerava ser um abandono da questão do trabalho social, ele advertiu para a necessidade de aprofundar o tema.
Era a passagem do trabalho social à formação de sujeitos históricos que estava em questão, contexto que exigia diferenciar tendências distintas na vertente crítica do marxismo a respeito do que se poderia denominar razão objetiva e razão subjetiva. Demorei para acompanhar esse problema em todas as suas dimensões. Meu texto seguinte, “A centralidade do trabalho social e seus encantos” no seminário “Horizontes da Sociologia no séc. XXI”, igualmente publicado pela Editora Boitempo, é um ajuste de contas que, a partir de então, norteou minhas preocupações e elaborações intelectuais.
Um pensador social e do social da estatura de Gabriel Cohn se apresenta em toda sua relevância na hora de fazer as perguntas que organizam a reflexão e a investigação. Na abertura escrita para a Introdução à sociologia de Adorno, publicada pela Editora UNESP, há uma preciosidade que resume essa perspectiva. Como qualificar o pensar? O que deve estar em pauta não é apenas manter o ofício do pensar, mas caracterizá-lo como “pensar além”, adiante. Cabe compreender esse lema em dois registros: ao mesmo tempo como antecipação de tendências e suas inflexões pela via intelectual, é claro; porém com muita ênfase na direção da elaboração categorial, do necessário dinamismo a exigir a retirada do contexto conceitual de uma função de peça explicativa já consolidada e fixada, frequentemente um tanto exaurida e a exigir ajustes. A crítica só passa a ter um papel na negação do vigente quando não nos resignamos à sua própria forma já estabelecida. Esse é o verdadeiro sentido em que Gabriel Cohn e Adorno se identificam.
Fundamental mesmo, contudo, é o ponto de vista que, afinal, é o responsável último para distinguir resignação e crítica. Talvez seja, a seu ver, o maior elogio a merecer. O ponto de vista que nosso autor nomeia como uma sociologia plebeia, comprometida com a perspectiva popular, tal como a de Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Chico de Oliveira. E Gabriel Cohn…
[i] Pós-doutoranda no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Bolsista da Capes.
[ii] Professor do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
A foto que abre o post é da autoria de Ana Paula Paiva e foi publicada originalmente aqui.
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