Modernismo, engajamento e poesia social, por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves

No post de hoje, a coluna Interpretações do Brasil e poéticas publica um texto de Rodrigo Jorge Ribeiro Neves sobre poesia social e engajamento no modernismo, em seus projetos estético e ideológico. Qual foi, no passado, o papel da poesia diante da expansão das atividades da Ação Integralista Brasileira de Plínio Salgado e do recrudescimento da repressão do Governo Vargas no Estado Novo? Afinal, o que torna a arte engajada socialmente?

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Boa leitura!

Modernismo, engajamento e poesia social

Rodrigo Jorge Ribeiro Neves[i]

qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa

Belchior, “Como nossos pais” (1976)

Para Isabela Goulart

Octavio Paz, em O arco e a lira, nos fala sobre como a poesia se insere no mundo e suas implicações não apenas no plano da linguagem, mas na dinâmica das transformações da sociedade ao longo da história, sendo esta “o lugar de encarnação da palavra poética” (2012, p. 192). Como toda atividade humana, a poesia está inscrita na história, mas também a transcende e a antecede, embora nunca fora dela (Paz, 2012, p. 193). Por isso, a poesia não é apenas expressão do indivíduo e do mundo, é também sua consciência e condição. Um poema é escrito em um determinado tempo e um determinado lugar, mobilizando as questões que os atravessam. Na modernidade, sua gestação é resultante das tensões que constituem a sociedade na qual o poeta se insere e dos seus conflitos com esse espaço, qual o albatroz baudelairiano. Mário de Andrade, no entanto, nos recorda uma das concepções da poesia moderna, que, na verdade, se sustenta no lastro da tradição, desde épocas imemoriais: “o poeta reintegrado na vida de seu tempo” (2009, p. 257).

E o tempo do poeta de Pauliceia desvairada era de partido, de homens partidos, como ressalta um dos versos de seu amigo mineiro, Carlos Drummond de Andrade (2012, p. 324-325). Com a Revolução de 1930, o país atravessou turbulentas e profundas transformações políticas, sociais e econômicas, que tiveram reflexos na cultura. O estreitamento das relações entre a literatura e as ideologias políticas e doutrinas religiosas é uma das consequências desse tempo marcado por posicionamentos ideológicos e espirituais delimitados que, mesmo quando não estavam bem definidos na consciência, tangenciavam os elementos constitutivos de sua dimensão estética (Candido, 2017, p. 227).

Arte, ideologia e engajamento confluíam em face da premência pela tomada de posição em um tempo em que os homens não apenas se partiam, mas tinham suas ideias, sentimentos e corpos dilacerados pelo regime varguista, em especial durante o Estado Novo, instaurado em novembro de 1937, por meio de um golpe, e terminado em janeiro de 1946, pouco depois da deposição de seu ditador, em outubro de 1945. No mundo, acompanhamos o fim da Segunda Guerra Mundial e dos regimes totalitários nazifascistas. Contudo, os eventos que culminaram no declínio das políticas do horror que vicejaram na primeira metade do século XX, reinstauradas nos dias de hoje por meio dos governos da negação e da morte, não agendaram no calendário as datas em que iriam ocorrer. As condições históricas já estavam dadas, observáveis nos debates que pautaram os diálogos e as produções intelectuais e artísticas do período. Em carta enviada a Mário de Andrade, de 18 de setembro de 1934, um então jovem esquerdista Carlos Lacerda atenta para as exigências que se impunham: “Tenha paciência, meta-se isso na cabeça: você anda nos últimos dias da neutralidade. A neutralidade está agonizantezinha. Se não se escolhe agora, ter-se-á de escolher depois, em piores condições, e já com todo esse tempo de perdido”[ii].

Embora nunca fosse filiado ao PCB, Lacerda era próximo dos comunistas e participou de comitês e eventos organizados pelo partido. O perigo da “neutralidade” que ele aponta para Mário se refere, principalmente, à ascensão do fascismo no país, por meio da expansão das atividades da Ação Integralista Brasileira de Plínio Salgado e do recrudescimento da repressão do Governo Vargas. De que maneira a poesia modernista se manifestou sobre esses acontecimentos e os sintomas de uma sociedade marcada pelo autoritarismo e aprofundamento das desigualdades? Qual é o seu papel em tempos de horror?

A poesia social como tendência estética pode ser localizada em diversos momentos da história da literatura brasileira, desde o barroco até a contemporaneidade. Porém, há períodos em que as condições históricas galvanizam a ocorrência dos versos engajados nas tensões sociais, como é o caso, por exemplo, da poesia da segunda metade do século XIX representada, entre outros, por Castro Alves, Fagundes Varela, Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis. O movimento modernista, mesmo na fase de seu “Projeto estético”, dos anos 1920[iii], apresentou obras que podem ser identificadas como sociais, no sentido de uma expressão cultural dos conflitos políticos e sociais; no entanto, a predominância era a de uma ruptura estética, além da busca e construção de uma identidade nacional. A partir dos anos 1930, o “Projeto ideológico” do modernismo emergiu das condições políticas, sociais e econômicas apresentadas, intensificando-se entre os fins daquele decênio e durante os anos 1940.

Na prosa de ficção, a geração do Romance de 1930 é representativa das questões desse tempo, em especial os escritores nordestinos, como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e José Lins do Rego. A poesia de tendência social no modernismo também é pródiga de expressões dos conflitos vivenciados no período. Com o recrudescimento da ditadura estado-novista no Brasil e da guerra contra o nazifascismo no mundo, a poesia adquiriu um cariz de engajamento social, entretanto, não sem, muitas vezes, alguma contradição interna, ou “contra-dicção”, para lançar mão aqui de termo utilizado por Antonio Carlos Secchin, ao analisar A rosa do povo (1945), de Drummond, uma das obras exemplares da poesia social engajada: “um tenso regime de contradicções, em que duas vozes poéticas se alternam, prefigurando desdobramentos de complexa interseção” (2018, p. 226).

Em seu diário, o poeta de “A flor e a náusea” registra, em 12 de abril de 1945, uma “meditação entre quatro paredes”, em que questiona se seria possível militar pelas ideias que sempre defendeu sem necessariamente se vincular a um partido, apontando “uma contradição insolúvel” (ou contra-dicção) entre suas ideias, ou “apenas utopias consoladoras”, e sua “inaptidão para o sacrifício do ser particular, crítico e sensível, em proveito de uma verdade geral, impessoal, às vezes dura, senão impiedosa” (Andrade, 1985, p. 33). Em um dos poemas de A rosa do povo, o sujeito lírico projeta e dramatiza os conflitos do anotador do diário nos impasses da realidade premente e de seu lugar no campo de batalha: “Preso à minha classe e a algumas roupas,/ vou de branco pela rua cinzenta./ Melancolias, mercadorias espreitam-me./ Devo seguir até o enjoo?/ Posso, sem armas, revoltar-me?” (Andrade, 2012, p. 310).

A indagação se reveste não apenas do conflito individual do poeta e de sua posição de classe em meio ao horror e às injustiças, mas também do que pode a poesia, ou a arte, social diante de um “mundo caduco”. Afinal, o que tornaria a arte engajada socialmente? Para o poeta peruano César Vallejo, as composições de Beethoven e Bach, as pinturas renascentistas, as pirâmides do Egito, as estátuas assírias e alguns filmes de Chaplin são exemplos de “arte socialista”, pois “respondem a um conceito universal e de massa e a sentimentos, ideias e interesses comuns […] a todos os homens sem exceção” (1973, p. 37)[iv].

Nesse sentido, a arte social se constitui da expressão de uma sensibilidade coletiva, em que as mulheres e os homens se encontram e se sentem atravessados pelos versos, os acordes, os passos de dança, a tinta, o sussurro quase mudo no palco e o fotograma em preto e branco na tela, despertando-lhes a consciência não apenas da atroz realidade, mas da possibilidade, ainda que insuficiente, de que outro caminho seja possível. Portanto, o modernismo na fase do chamado “projeto ideológico”, principalmente nos anos 1940, embora encontrasse expressão mais engajada socialmente em um momento de turbulência política e social no Brasil, não prescinde de manifestar também os impasses do indivíduo em face das condições impostas pela necessidade da ação e pelos limites da linguagem.

Referências bibliográficas

Andrade, Carlos Drummond de. O observador no escritório: páginas de diário. Rio de Janeiro: Record, 1985.

_____. Poesia 1930-1962: de Alguma poesia a Lição de coisas. Edição crítica preparada por Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Andrade, Mário de. A escrava que não é Isaura. In: _____. Obra imatura. Estabelecimento do texto: Aline Nogueira Marques; coordenação da edição de Telê Ancona Lopez. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

Candido, Antonio. A Revolução de 1930 e a cultura. In: _____. A educação pela noite e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2017.

Lafetá, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 19-20. (Coleção Espírito Crítico).

Paz, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Secchin, Antonio Carlos. Percursos da poesia brasileira: do século XVIII ao XXI. Belo Horizonte: Autêntica; Editora da UFMG, 2018.

Vallejo, César. El arte y la revolución. Lima: Mosca Azul, 1973.


[i] Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

[ii] Arquivo IEB-USP, Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-C-CPL3838. A referida carta é parte integrante da pesquisa Entre letras e lutas: edição de texto fidedigno e anotada da correspondência de Mário de Andrade e Carlos Lacerda, realizada, em estágio pós-doutoral, no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), e na Universidad de Alcalá (UAH), na Espanha, e subvencionada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processos nº 2016/18804-7 e 2019/03880-8.

[iii] Referência à tese de João Luiz Lafetá, para quem “qualquer nova proposição estética deverá ser encarada em suas duas faces (complementares e, aliás, intimamente conjugadas; não obstante, às vezes relacionadas em forte tensão): enquanto projeto estético, diretamente ligada às modificações operadas na linguagem, e enquanto projeto ideológico, diretamente atada ao pensamento (visão de mundo) de sua época”. (2000, p. 19-20).

[iv] Tradução minha.

A imagem que ilustra o post é

Michaux, Henri; Untitled; Sainsbury Centre for Visual Arts, University of East Anglia; Disponível em http://www.artuk.org/artworks/untitled-1886

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