BVPS recomenda | Denis Diderot, Hóspede de Bougainville, de Silviano Santiago

O Blog da BVPS convida todas e todos à leitura do ensaio “Denis Diderot, Hóspede de Bougainville”, do escritor e crítico literário Silviano Santiago, publicado no site do Suplemento Pernambuco.  No texto, dedicado à socióloga Élide Rugai Bastos, o autor trabalha a partir do conceito de suplemento a crítica à razão colonial feita por Denis Diderot em seu gesto de escrita hospedado no relato de viagem eurocêntrico do navegador francês Louis Antoine de Bougainville (1729-1811).

Abaixo reproduzimos os primeiros parágrafos do ensaio e convidamos os/as leitores/as a terminarem no site do Suplemento Pernambuco.

Boa leitura!

Denis Diderot, Hóspede de Bougainville

por Silviano Santiago

 Para Elide Rugai Bastos

Escritores que não viajam ao estrangeiro escrevem também relatos instigantes de viagem ao estrangeiro. Poderia ter escolhido o poeta Carlos Drummond de Andrade, autor do poema Rua do Olhar, que se abre por esta estrofe: “Entre tantas ruas/ que passam no mundo,/ a Rua do Olhar,/ em Paris, me toca”. E segue mais abaixo: “Uma rua — um olho/ aberto em Paris/ olha sobre o mar./ Na praia estou eu.// Vem, farol tímido,/ dizer-nos que o mundo/ de fato é restrito,/ cabe num olhar.” O resto virá da leitura do poema.

Não muito por acaso, escolho outro viajante sem viagem. O filósofo e romancista Denis Diderot (1713-1784; imagem). Ele é o autor de Supplément au voyage de Bougainville (Suplemento à viagem de Bougainville), escrito em 1772 e publicado na França postumamente em 1796. O subtítulo do Suplemento é esclarecedor: “Diálogo entre A e B sobre o inconveniente de relacionar ideias morais a certas ações físicas que não as comportam”.

Como insinua o título do futuro livro, o filósofo iluminista hospeda o novo manuscrito no relato Voyage autour du monde (Viagem ao redor do mundo), de responsabilidade do navegador francês Louis Antoine de Bougainville (1729-1811), publicado um ano antes da escrita do Suplemento, em 1771. Depois de atravessar o Atlântico e bordejar pelas Américas, onde observa, anota e justifica, por exemplo, a expulsão dos jesuítas do território das Missões, ao sul do Brasil, Bougainville segue viagem para as ilhas da Polinésia e lá se detém a escrever os demais e muitos capítulos do relato.

Denis Diderot se transformou numa espécie bem especial de escritor/hóspede de obra alheia, espécie antiga, claro, mas tão pós-moderna quanto o pensamento do filósofo Jacques Derrida, responsável pela introdução do conceito de suplemento na leitura dos filósofos ocidentais.

Diderot é um leitor que no presente cria textos já produzidos no passado. Reparem: não disse um leitor que re/cria no presente textos já produzidos. Portanto, pouco tem a ver com Pierre Menard, personagem de Jorge Luis Borges que se apresenta, na modernidade, como autor do famoso Dom Quixote, de Cervantes. Diderot não é autor, é hóspede um tanto trapalhão e iconoclasta da obra de Bougainville. Ao capinar nas margens improdutivas e preconceituosas de texto alheio, no caso o relato colonialista de Bougainville, ele “suplementa” inteligentemente a escrita eurocêntrica dos relatos de viagem. Diderot, hóspede, tem a intenção de ali — na obra/hospedeira — cultivar uma lavoura menos peçonhenta. Adubo já tem: incomoda a mania dos viajantes em relacionar ideias morais a certas ações físicas que não as comportam.

Diderot não faz da escrita de hospedagem “cópia” ou “complemento”, colonialistas, à escrita maníaca de Bougainville. Neste caso, seu próprio leitor julgaria corretamente que na obra hospedeira há apenas deslizes ou detalhes negligenciados, que estavam sendo devidamente “complementados” por exercício de crítica. Seu suplemento não vem a reboque das ideias do hospedeiro, embora não lhe desagrade instalar-se naquela hospedaria. Questão de estratégia. Para Diderot, tudo sobre viagem ao estrangeiro está na Viagem ao redor do mundo e tudo sobre viagem ao estrangeiro lá NÃO está. Trata-se de um suplemento, diz o título do livro assinado Diderot. Ou seja, a intenção do filósofo é a de acrescentar uma reflexão pessoal e original ao que já é concretamente um todo de propriedade alheia.

Diderot lavoura nas entrelinhas, nas margens do relato de viagem, percebendo, do quarto em que se hospeda, como a cegueira mental domina o trato dos seres humanos “desconhecidos” dos viajantes. A cegueira se consolida e se consola pelo preconceito etnocêntrico. O viajante, autor do relato, é incapaz de enxergar de maneira diferente, além da convencional, as várias e diferentes sociedades que visita e os vários e diferentes seres humanos de quem se aproxima.
Feito nas entrelinhas e nas margens do relato de viagem, a capina feita por Diderot tem significado preciso: o filósofo iluminista leva os valores morais dos colonizados (ou seja, dos “primitivos”), descritos e analisados por Bougainville, a fazerem uma inesperada viagem de volta à Cidade-Luz a fim de dar um novo e importante recado aos compatriotas. O recado tem valor de troca se se ampliar, globalizar, o sentido dado ao conceito pelo antropólogo Marcel Mauss: “Vocês nos deram aquilo e (pela letra de Diderot) compete-nos agora oferecer esse suplemento.”

Evidentemente suplementar, a viagem de volta dos colonizados serve para Diderot contestar de maneira radical certezas etnocêntricas, ao fim da época colonial e início da época imperial. Na agenda metropolitana, insere a relatividade dos valores morais sobre os quais se funda — e tão arrogantemente se espraia — a civilização ocidental. Que saudades da Rua do Olhar: “Olhar de uma rua/ a quem quer que passe./ Compreensão, amor/ perdidos na bruma.” O Ocidente tem tomado posse, tem-se apropriado de outras terras e outras gentes, a partir e pela imposição ao Outro de muitos de seus valores desastrados. A cegueira etnocêntrica de Bougainville é suplementada pelo respeito ao Outro de Diderot.

Continue lendo no Suplemento Pernambuco

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