
O Blog da BVPS apresenta texto inédito de Silviano Santiago, vencedor do Prêmio Camões 2022. No ensaio, o autor lê a ‘grafia de vida’ de Machado de Assis – especialmente em Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas – em perspectiva com a estranha Certidão de Óbito firmada em seu nome no dia 19 de outubro de 1908, reproduzida ao final do post.
O Blog dá os parabéns a Silviano pela premiação! Boa leitura!
O que aqui está é, mal comparado, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta.
Dom Casmurro, “Do livro”, cap. II
Numa das inúmeras e surpreendentes passagens de Dom Casmurro, que chega ao leitor na citação em epígrafe, o narrador e protagonista do romance constrói uma inesperada e sofisticada alegoria para explicar o que alicerça a sua entrega a novo livro – o desejo de atar as duas pontas da própria vida. Assim como já tinha reedificado a casa da mãe no Engenho Novo, o Bento Santiago ambiciona restaurar na velhice as experiências de vida na adolescência, quando o chamavam de Bentinho.
Reedificar e restaurar denotam uma composição pouco singular em autobiografia ou em romance burguês de origem europeia. O Bento Santiago, já idoso, sai em busca da experiência de Vida perdida. O desenvolvimento temporal e linear da narrativa é predeterminado pelas reminiscências do velho e por desejos tardios e fantasiosos de reocupar os locais da memória e de recuperar as sensações e as paixões ali vivenciadas. O valor do romance Dom Casmurro não está, portanto, na originalidade da composição. As digressões – muitas delas de caráter alegórico – se responsabilizam por a obra ir além das fronteiras conformadas pelo adjetivo literário, caso se lhe restrinja a importância.
Seleciono uma digressão em Dom Casmurro. Dela extraio a frase em epígrafe. O Bento põe em jogo, relativiza e barateia a ação de reedificar e de restaurar, se a cópia tiver como objetivo, não a casa materna ou as várias fases da vida humana, mas o corpo envelhecido do narrador ou, para se referir a poema de Carlos Drummond em Farewell, a sua “carne envilecida”. Astutamente, o narrador desvia os olhos do leitor das cópias, a da casa no Engenho Novo e a da adolescência no livro, a fim de redirecioná-los à arte da maquiagem. À tintura que a maquiadora aplica aos cabelos embranquecidos pelo correr das décadas. O rosto é de homem velho, certo, mas sua fisionomia é a de ser humano dissimulado e vaidoso. O Bento pode se desdobrar no mesmo e diferente domicílio, na mesma e diferente escrita da adolescência, mas hesita diante do mesmo e diferente rosto e o rejeita. Sem a tintura, a cópia resultante da restauração de Bentinho em Dom Casmurro evidenciaria as devastações causadas pela idade na aparência. Toca a maquiá-la.
De repente, a arte da maquiagem retira as reminiscências reprodutoras de cópia do domínio sentimental e as transportam a outro e inquietante domínio. A reedificação da casa materna no Engenho Novo e a restauração da adolescência em prosa literária exigem a análise objetiva e científica. Se restaurada em carne envilecida pela vida vivida, a cópia do rosto adolescente é a de um velho. Deveria ser conhecida por efeito de uma “autópsia”, volto à frase em epígrafe.
Ao definir o que será o livro que escreve, o Bento Santiago espaventa os bons sentimentos atribuídos aos verbos reedificar e restaurar e recomenda a si um bom exame técnico do rosto do escritor. Recomenda a análise que o médico-legista faz de cadáver, com a finalidade de revelar e identificar cientificamente as causas da morte. Como estamos lendo Machado, atente-se aos detalhes. Curiosamente, a etimologia de autópsia − auto+psia, em grego – sugere uma forma antiga, audaciosa e subjetiva de exame. O conhecimento de si por si mesmo. Dom Casmurro aconselha ao velho que reedifica e restaura o aforismo inscrito no templo de Apolo, em Delfos. A autoanálise de si por si mesmo. Que ele seja a testemunha-viva dessa tintura na barba e nos cabelos embranquecidos!
O idoso que conhece a si pelo lado externo – sensível ele à tinta que dissimula os cabelos embranquecidos – faz cair por terra a armação sentimental que reedifica a casa materna e restaura a adolescência. Todos os fatos que estão realmente a acontecer no íntimo da cópia saudosa ficam a ser escarafunchados pelo leitor. A aparência física do reedificador e restaurador do passado no presente é fonte de trapaças dissimulatórias. O coração a pulsar, o cérebro a imaginar e as vísceras a expelir dejetos não estão reedificados ou restaurados na cópia. O hábito “interno” não aguenta a tinta, volto à epígrafe.
Autópsia é o vocábulo escolhido por Dom Casmurro para que o leitor entenda que a maquiagem – aplicada às cópias da casa materna, da adolescência e do rosto do narrador – é a verdadeira responsável pela relevância final e o sentido dos vários constructos interinos e artificiais. O alicerce de cópia é duplo – esteve lá e está aqui – e, por isso, é naturalmente ambíguo e, por isso, razão de incerteza e até de dúvida. Não se estranhe que a conclusão a que chega Dom Casmurro – e o seu leitor − atesta e certifica o valor interino dos vários constructos que estão sendo postos em jogo pela prosa literária. Dom Casmurro radicaliza e afirma não ter conseguido “recompor o que foi nem o que fui”. E chega à máxima que constrói a alegoria desfeita pela autópsia: “se o rosto é igual, a fisionomia é diferente”.
O médico-legista examinou a tinta nos cabelos embranquecidos e afiançou: é mero “hábito externo”. Ao mesmo tempo ensinou ao vaidoso e à pessoa que, por desejo próprio, se deixa tatuar: Não se faça nem nos faça de tolos, “o interno não aguenta tinta”.
Ainda que rapidamente, acrescento que estamos diante da prosa escrita por um corpo envilecido pelo tempo e de mente e imaginação vaidosa. Estamos diante do marido ciumento da esposa Capitu, a dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada, para me valer da imagem fantasiosa que o narrador cinzela a partir de observação maledicente de José Dias. Assim, a presença de Capitu na solitária e desastrada vida do marido a bater à porta da morte, é restaurada pela arte da maquiagem. A autópsia mede a paixão humana, poetou Carlos Drummond, com cadência greco-latina e genialidade: “Trocaica te amei, com ternura dáctila, / e gesto espondeu”.
Mas a técnica pericial, a autópsia, se considerada pela etimologia, não mede o cadáver humano. É do século XIX essa confusão entre introspecção e o uso de bisturis por médico-legista. Lembre-se de Ralph Waldo Emerson em meados daquele século: “Os jovens nasceram com lâminas no cérebro, uma tendência para a introversão, a autodissecação, a investigação anatômica de seus motivos”.
Na passagem de Dom Casmurro, em pauta, a autópsia tem por finalidade menos o laudo científico, a que chega o médico-legista ao examinar um cadáver, e mais a autoanálise filosófica, a que nos convida a máxima socrática, “Conhece-te a ti mesmo”. Senhor narrador, não se iluda quanto à tinta em cabelo branco. Poupe-se, e já se ajuda. Ao leitor moderno, ela se refere a outra máxima, agora de autoria do cético Michel de Montaigne: “Que sei eu?”. Na velhice, o ser humano descobre que a aparência física − do rosto saudoso, da casa reedificada e da adolescência restaurada − nos chega e sempre nos chegará dissimulada pela maquiagem, motivada pela todo-poderosa vaidade humana.
Que o leitor atento de Machado de Assis distinga a dubiedade que explode o significado único de autópsia. Para melhor distinguir a ambivalência de sentido não há necessidade de muleta. Basta evocar um vocábulo de etimologia mais precisa e considerado o seu sinônimo mais apropriado – a necrópsia. Em grego, a necro+psia foca apenas o ser humano morto. Examina o corpo do cadáver, por fora e por dentro.
Pelo viés da etimologia, a sinonímia de autópsia e necrópsia é divergente e complementar. Descobertas de bruxo. Uma, leva a conhecer o ser vivo e o ser morto, depende, como, aliás, o gato de Schroedinger. A outra, só conhece o ser morto. A incerteza abre a porta para a divergência e satisfaz o matreiro Machado de Assis.
Não é por casualidade que a necrópsia joga para escanteio o sujeito que faz o exame do cadáver. Se o humano morto se responsabilizasse pela própria necrópsia, ele, o cadáver, estaria produzindo uma fala (ou uma escrita) completamente impensável e absurda. Na necrópsia, o médico-legista é o ventríloquo da Voz da ciência, ainda que ela possa ser falsa se se amparar só em… autópsia. A escrita da necrópsia só ganha razão e direito de cidadania se entregue à escrita anônima e (de preferência) objetiva da Ciência. Se praticada por uma ou qualquer pessoa morta, temos só discursos fantasiosos, já que um morto não pensa, não fala nem escreve. O bom-senso e o senso-comum nos dizem que a escrita póstuma é absurdamente inverossímil.
Só passível de ser escrito pelo saber do médico-legista, o laudo necrológico vai, no entanto, ganhar sujeitos às pencas – mortos e vivos! − no universo de Machado de Assis. Múltiplas citações provarão que a distinção entre autópsia e necrópsia é fundamental e que não exagero no número de necrólogos machadianos. Em sua prosa há um sujeito póstumo, o Brás Cubas, que se faz de narrador e de protagonista da sua vida para reivindicar cidadania em literatura brasileira e até cova no cemitério de S. João Batista, localizado no então Distrito Federal. Apresenta-se a todas e a todos os “leitores” como defunto autor, ou seria como autor defunto? Essas novas matreirices e as aspas (em leitores) não são gratuitas e exigirão explicação.
Os necrólogos machadianos serão multidão. Seres vivos e seres mortos. Seres humanos e vertebrados. Seres animais e invertebrados. São eles – masculinos todos por opção da sociedade ou do autor − que nos dizem o que se deve entender por “médico atestante” e testemunhas “declarantes” não só em texto ficcional dele como em documento cartorial, a sua Certidão de Óbito, firmada por Olímpio da Silva Pereira, escrivão vitalício da 6ª Pretoria do Distrito Federal. Adianto-me aos parágrafos finais deste artigo, para relembrar que nele se afiança que é “branca” a pele cadavérica de Machado de Assis. Não teria sido “embranquecida” por excesso de zelo dos bons amigos monarquistas?
No fundo, um escritor da altitude de Machado de Assis tem uma única e complexa grafia de vida. Por ela se escreve o cidadão nascido e criado em jovem nação escravocrata americana, de regime monárquico primeiro e depois republicano, e por ela também se exprime, em tempos dominados pela estética realista-naturalista, o notável e originalíssimo artista da palavra. A restauração do rosto humano nunca é cópia conforme, nos informou a autópsia; o construto, produto de reedificação, é sempre ambivalente e plural (coração que pulsa, cérebro que imagina e vísceras que expelem não aguentam tinta). Às vezes, se o leitor for informado pela necrópsia, a prosa de Machado chega a ser perturbadoramente absurda e impensável. Pode ser ceticamente bem-humorada. Pode ser verdadeira sendo inverossímil. Pode ser compreendida por autópsia, no sentido filosófico ou cético do termo, ou por necrópsia, em discurso médico-legal (aparentemente) impensável. Depende, já que o crítico está no domínio comum à vida e à obra literária.
Os vocábulos morte e cemitério pululam com frequência e elegância na prosa de Machado de Assis, denotando a presença de um terceiro e quarto vocábulos, cadáver e verme. Os mais extraordinários e ricos exemplos estão evidentemente no romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de 1881, sua primeira obra-prima. Há também, e há de se admirar, outro e definitivo exemplo no próprio romance Dom Casmurro, de onde já extraímos a dubiedade que a autópsia carreia no seu bojo.
Dois destaques saltam de Brás Cubas. O primeiro é oferecido pela dedicatória do romance: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. E o segundo, pela “errata pensante”, a metáfora que, retirada da produção e reimpressão de livro, vai qualificar as sucessivas fases de vida vivenciadas pelo corpo humano: “Cada estação da vida é uma edição [de livro], que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”. As citações terminam por nomear o mais estapafúrdio dos necrólogos machadianos – o verme de cemitério.
O terreno é naturalmente escorregadio. Avancemos devagar e com calma.
Associar a forma definitiva, a morte, a que chegam as sucessivas fases vividas da vida humana, à última edição de livro, a que chegam as reimpressões desde a edição princeps, não é apenas a hipótese proposta por nós com o conceito de “grafia de vida”. Na formatação da máxima da errata pensante está evidente a fusão da grafia literária à grafia humana. A máxima machadiana, aliás, desloca o lugar religioso e jansenista de máxima semelhante, de autoria do filósofo Blaise Pascal, que diz ser o homem (o masculino é sempre de praxe) “um caniço pensante”. Pensante, sempre, mas escrevente também, no caso do nosso escritor. O périplo da dupla e única grafia de vida não para aí. Em Machado, diz a dedicatória de Brás Cubas, fases da vida e edições revistas têm a fatalidade como fim. Estão destinadas aos vermes. São eles os primeiros e mais terríveis leitores de corpos póstumos e de letras mortas.
A bizarrice da máxima machadiana reclama uma compreensão particular do que seja a leitura. Não confundir a fusão proposta pela máxima da errata com a experiência da leitura pelos cinco sentidos (olhar, ouvir, tocar, cheirar e saborear) em ambiente cotidiano. Neste caso, pratica-se uma forma de conhecimento limitada ao contexto em que se vive. Pratica-se outra forma de saber quando se o depreende da reflexão sobre a vida humana fusionada à sabedoria que os livros produzem, acumulam e oferecem intermitentemente. Nem estações da vida nem variantes de livro são sonegadas à reflexão pelo nosso romancista.
Estamos a afirmar que o romance Dom Casmurro pode ser lido como variante tardia – como força sobrevivente − das Memórias póstumas de Brás Cubas. Foi escrito para nos segredar que a radicalidade proposta por necrópsia no romance de 1881 será reforçada no de 1900 pela ambivalência carreada por autópsia. O segundo capítulo de Dom Casmurro, como vimos, abre a porta para a autópsia entrar e lembrar o leitor da necrópsia que está patente no Brás Cubas. Lembra e a reencontra em capítulo, o 17, a que “Os vermes” emprestam o título.
Esse capítulo começa com a última frase do capítulo anterior, o 16, intitulado “O administrador interino”. Trata-se de narrativa duma fase venturosa da vida do futuro sogro do Bento, o Pádua, a ser seguida por outra fase, de total desastre. O chefe da repartição viaja e o Pádua ganha a chefia interina na repartição pública. Volta o chefe e termina a interinidade do Pádua. O rosto é o mesmo, a fisionomia é diferente. O dentro do dentro. O funcionário modesto, que tinha se tornado um perdulário, volta aos parcos recursos financeiros de antigamente. Goza e padece. Fica inconsolável. Mas o tempo passa e está curado. A condição humana está posta à vista na trama romanesca por uma situação particular na vida do futuro sogro. Situação tão atual que – se me permitem o anacronismo – será desenvolvida por Andy Warhol. Seremos todos famosos por 15 minutos.
O narrador oferece uma pergunta sobre administração interina da vida, que será questionada pelos comensais em casa da sua mãe: o que é “o sabor póstumo das glórias interinas”? Como vive o interino que perde a interinidade? A duras penas, o Pádua consegue entender que a vaidade, semelhante à tintura a dissimular a adolescência nos cabelos embranquecidos, não deveria ter peso maior em sua vida. Apenas aparência. O agregado José Dias e o padre Cabral, os dois comensais, suplementam a autópsia do Pádua. Para o primeiro o sabor póstumo é a “vaidade sobrevivente”. Já o padre, um erudito semelhante ao futuro Bento, se embaraça e age como o verme leitor da Bíblia sagrada. Diz ele que a “sobrevivência” do Pádua tem um Agente e não se deu em um só movimento racional, de causa e efeito, mas em dois, sucessivos e contraditórios. A cura sucede ao sofrimento. Quem é o Agente que as propicia? O Senhor, não titubeia o padre e lembra: na lição de Elifaz a Jó, está que o Senhor “fere e cura”.
O capítulo “Os vermes” começa ao retomar a última frase do anterior (“fere e cura”), para fazê-la caminhar pela trama do livro e ir se significando por acúmulo. As frases do romance não se fecham numa última, que sela a discórdia nas variantes. Alastra-se o efeito das ulcerações semânticas feitas na expressão “fere e cura”. O estoque de variantes é infinito enquanto dura. Na prosa machadiana, a radicalidade da discórdia é a porta de entrada para a ambivalência propiciada pela divergência seguinte. O Bento Santiago retoma a palavra. Passa a ler o acontecimento numa outra biblioteca – a da literatura greco-latina. Em matéria de ferir e curar, nela reina Aquiles e a sua lança. A divergência greco-latina contraria a lição do Senhor. Ela a repete em diferença. A lança de Aquiles “curou uma ferida que fez”.
Na reflexão, a fala pedestre do José Dias, a viver de favor na casa de dona Glória, parece um verbete do dicionário de lugares-comuns de Gustave Flaubert. Pedestre, ela ambiciona grandeza nas mãos de Dom Casmurro. A ela se soma a lição da Bíblia sagrada que, por sua vez, se deixa encaminhar para o protagonista exemplar da literatura greco-latina. Esse caldo cultural é que instiga o narrador do romance a levar adiante suas reminiscências: ele passa a ter “tais e quais veleidades de escrever uma dissertação a esse propósito”.
A interinidade na glória é um fato do cotidiano que merece autópsia (conhecimento subjetivo) e almeja necrópsia (merece ser avaliado do ponto de vista póstumo). Dito e feito: o nosso herói volta – e o cito − “a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum [grifo meu] do oráculo pagão [o episódio de Aquiles] e do pensamento israelita [a lição de Elifaz]”.
Os livros de que se alimenta Dom Casmurro são velhos e, à semelhança de cadáveres, estão mortos e enterrados. O narrador do romance fusiona o já-vivido e o já-escrito, mas não quer apenas restaurar ou reedificar o Saber da biblioteca. Sua leitura não produz uma cópia conforme. Tendo dedicado seu tempo ao “conhece-te a ti mesmo”, se encaminha para a necrópsia que examina a perda pelo Pádua da interinidade na chefia da repartição. Foi-lhe indicado numa ponta o Jó israelita e o Aquiles do oráculo pagão, mas por outra e inesperada porta façamos o contemporâneo Andy Warhol entrar no romance. Lemos em Dom Casmurro: “Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles”. Não há “origem comum”, a absorver, centrar e dominar o significado humano do mundo.
O primeiro interlocutor do Bento Santiago é um longo verme gordo. Retruca-lhe que são uns sujeitos que leem os livros que lhes caem às mãos. Embora seja uma figura singular e anônima, sua fala traduz o nós coletivo: “Nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos, nós roemos”. O Conselheiro Aires se encantou com o ruminar do boi a comer sua grama e Dom Casmurro se delicia com o discreto silêncio do roer. Não seria o silêncio, pergunta ele, “um modo de roer o roído”? Não seria esse o sentido da tarefa infindável da leitura em Machado de Assis? Roer o que pode e é roído por todos?
Reitera-se o procedimento estilístico da escrita literária de Machado. Ela se movimenta pela folha de papel menos por exclusão do potencial de significação (de um vocábulo, uma frase, um capítulo, uma cena, um livro) e mais por deslocamentos no potencial de significação do já dito e repetido e ainda passível de ser avançado e compreendido diferentemente. De modo lúdico, os deslocamentos amplificam e desmedem a antiga medida. Cada uma das fichas que vão sendo lançadas pelo narrador, pelos personagens, e até pelo Acaso, no veludo luminoso da folha de papel, têm o “sabor póstumo das glórias interinas”.
Os sucessivos deslocamentos semânticos na prosa de Machado operam um movimento original (em sua época) e atualíssimo (em nossa época) que é característico do saber pós-metafísico que se significa pelos efeitos de descentramento do saber ocidental que se alicerçou, se ergueu e, até os nossos dias, domina por ato autoritário de exclusão das diferenças significantes. Numa leitura, são as figuras significantes de deslocamento que passam a mapear e a configurar o espaço e o tempo em que o ato de pensar avança democraticamente. Como na prosa literária de Machado de Assis, o ato de pensar avança por inclusão (se se apoiasse em ideologia centrada por efeito de exclusão das diferenças, avançaria autoritariamente e por progresso unidirecional).
O romancista, à semelhança do crupiê de casino que não vê diferenças na ambição da clientela, instiga a todas e a todos os presentes a tomar assento e participar da complexa trama que se desenrola. A palavra FIM, na última página do livro ou da vida humana, traduz o “Les jeux sont faits”, anunciado passageiramente pelo crupiê, ou dito definitivamente pela pá do coveiro. A grafia da trama e a grafia da vida já não lhe pertence mais. Pertence a outro, ao verme, ao Acaso do leitor póstumo. Os vermes são peça fundamental entre os personagens do romance machadiano. São eles que reclamam a distinção nítida entre autópsia e necrópsia. Afinal, toda grande obra-prima literária comporta indicações de leitura.
Bem municiados, voltemos ao capítulo “Os vermes”, de Dom Casmurro. Fundamentais, eles são personagens intrometidos e severos e, por isso, delicada e deliciosamente caracterizados pelo Bento Santiago. Fortes em matéria de autópsia (longe deles a glória pela vaidade), são também os sucedâneos de médicos-legistas diante de cadáver. São predadores do corpo alheio e alfabetizados, − o que digo? eles são vorazes e silenciosos roedores de vidas humanas e de livros. Não é por outra razão que se representam como os críticos mais radicais de toda e qualquer grafia de vida, a da existência humana e a da literatura.
Tanto mais radical é a “leitura” deles porque se exprime por efeito devastador. Alimentam-se pela destruição a fim de se enriquecerem de energia de vida e de saber. A lógica do destruir para se reconstituir nos foi informada pelo poema “A flecha”, de Murilo Mendes (“O motor do mundo avança / Vai construir e destruir”). E encontra o seu mais notável poeta durante a invasão nazifascista na Europa e a ditadura Vargas no Brasil. Carlos Drummond de Andrade. Os vermes de Machado roem como os ratos no apocalíptico poema “Edifício Esplendor”. Cito os últimos versos: “– Que século, meu Deus! diziam os ratos. / E começavam a roer o edifício”. Esplendor é uma edificação moderna que, graças ao traço estiloso e belo de Oscar [Niemeyer], salta na areia da praia carioca e acolhe um grupo de habitantes da cidade. Esqueça Le Corbusier e sua “machine à habiter” e se peça aos moradores do edifício (da nação e do mundo) que, com a ajuda do Sócrates e de Montaigne, façam a autópsia dos “inocentes do Leblon”, e que, à imitação do roer dos ratos e dos vermes, se comportem como agentes da necrópsia.
O majestoso e belíssimo aspecto externo da máquina-de-morar apenas dissimula o funcionamento interno, o modo cotidiano de vida dos seus moradores. Diz o poema: “Entretanto há muito / se acabaram os homens. / Ficaram apenas / tristes moradores”. O “nosso tempo” é de partidos, de homens partidos. Conjugue-se o Machado em tempos de Brás Cubas/Dom Casmurro e o Drummond de José/A rosa do povo e temos os nossos grandes escritores-necrológicos, roedores de vidas humanas e de obras de arte, e até de séculos! Eles escreveriam hoje que fomos apenas os “tristes moradores” de um planeta esplendoroso. Nossa interinidade não tem origem comum, mas tem fim.
Continuemos a saltar para o lado de fora da literatura. Examinemos, finalmente, a Certidão de óbito do cidadão Machado de Assis, reproduzida ao final.
Destaquemos o nome de um dos declarantes e o do médico atestante, responsáveis pelas informações dadas ao escrivão Olímpio da Silva Pereira. São eles, respectivamente, o segundo barão de Vasconcelos, Rodolfo Smith de Vasconcelos, e o terceiro barão de Vasconcelos, Jaime Smith de Vasconcellos. O primeiro barão de Vasconcelos nascera em Portugal e por isso não recebe entrada no Arquivo nobiliárquico brasileiro, “um modesto trabalho sobre os títulos do 1º e 2º Reinados”, pesquisado e organizado por Rodolfo e por Jaime e publicado em Lausanne, na Suíça, em 1918. Esperado que se associe aos dois barões um segundo declarante, Rodrigo Otávio de Langgaard. É um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e está no cartório a representá-la. Ocupa a cadeira 35 e, em 1908, ano em que morre o escritor, faz parte da Diretoria da instituição. É o secretário eleito.
O Arquivo nobiliárquico brasileiro está evidentemente dedicado, em letras maiúsculas, “À sua Alteza Imperial / o Senhor / Dom Luiz de Orléans Bragança”. Apelidado o Príncipe Perfeito pelos admiradores, Dom Luiz foi o segundo filho da princesa Isabel e do príncipe francês conde d’Eu. Em 30 de outubro de 1908 – um mês depois da morte de Machado de Assis e 11 dias depois da assinatura do Atestado de óbito do escritor − torna-se herdeiro ao extinto trono imperial brasileiro. Será o maior ativista em favor da restauração.
A dedicatória à “Vossa Alteza Imperial” se alarga nas páginas seguintes, em curto texto dos dois autores. Eles esperam que o trabalho de levantamento e de organização do Arquivo “sirva de estímulo àqueles cuja fibra ainda é robustecida pela virilidade hereditária, e também aos que, de ascendência mais modesta, anseiam a culminância dos grandes”. E que, finalmente, os moços não vejam “nestes titulares do Império, os privilegiados do sangue, os aristocratas intransigentes”. Eles o foram “pelos próprios esforços nas conquistas do Saber e da Honra”. O proselitismo e a evangelização são a tônica da dedicatória.
Ao final, um curto parágrafo resume a lição: “Não foi uma casta que o Império criou, mas sim a verdadeira Aristocracia do Saber, da Virtude, da Bravura e da Honra, de que essa mocidade herdou o exemplo, e que a ela cumpre não deixar extinguir”.
Os dois monarquistas optam por declarar como branca a cor da pele do notável escritor nacional. Teria sido por efeito, em tempos republicanos, de embranquecimento da pele por tintura eurocêntrica, política e monárquica? Se o efeito resultou verossímil não foi pela eficiente arte da maquiagem? O confisco do cadáver do escritor e da sua obra póstuma significa a apropriação indevida de um e da outra não tanto para uma casta, concordemos, mas para a sua filiação a uma Aristocracia do Saber, suspeita, doutrinadora e unidirecional. Esse saber padece de autópsia por Dom Casmurro e o cadáver de necrópsia por Brás Cubas. Não há necessidade de este leitor expor os respectivos laudos periciais, eles são evidentes a todas as leitoras e leitores do Mestre das Letras brasileiras.
É uma doce casualidade descobrir que, no documento, o “lugar do enterramento” não tenha sido informado e permaneça a incógnita.
