Resenha | Ópera flutuante, de Marcelo Diego

O Blog da BVPS publica hoje uma resenha escrita por Rafael do Nascimento César (USP) do livro Ópera Flutuante: Teatro lírico, Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado, de Marcelo Diego, publicado em 2022 pela EDUSP.

Aproveitamos para convidar a todas e todos para o lançamento do livro no Rio de Janeiro, que ocorrerá no dia 19/04, quarta-feira, às 19h, na Livraria da Travessa de Botafogo. O evento contará ainda com uma conversa entre o autor e Antonio Herculano Lopes (Casa de Rui Barbosa).

Boa leitura!

 A ópera no romance, o romance na ópera: flutuações e enraizamentos

Por Rafael do Nascimento César (USP)[i]

Há tempos a ideia de que a ópera se restringe a uma elite cultural causa pouca ou nenhuma surpresa. Já em 1928, um Mário de Andrade indignado expunha numa série de artigos para o Diário Nacional a discrepância socioeconômica entre “a sociedade que vai ao [Theatro] Municipal” (Andrade, 1976 [1928], p. 196) e as camadas populares da cidade de São Paulo, reféns de problemas estruturais como a falta de higiene e iluminação, e entregues a divertimentos muito diversos dos consignados pela Temporada Lírica Oficial, contra a qual o mestre modernista fez campanha. De lá para cá, a situação no Brasil mudou tão pouco[1] que é difícil rebater o diagnóstico dado em meados dos anos 1960 por Theodor Adorno: desancorada do solo social no qual conquistou hegemonia como forma de arte elevada, o mundo burguês do século XIX, a ópera viu abrir-se entre ela própria e o público uma espécie de “cova” à qual fatalmente sucumbiu, embora tenha conseguido “estruturar-se domesticamente” (Adorno, 2009, p. 179) em torno de alguns círculos de aficionados – ou “fanáticos”, na expressão do sociólogo argentino Claudio Benzecry (2011). De todo modo, se a crise de representatividade que acomete o teatro lírico há pelo menos um século não o sentenciou a desaparecer, ela ainda o mantém confinado às imagens de um passado que acessamos parcialmente nas récitas de hoje e, como mostra o belo livro de Marcelo Diego, em certos romances do Segundo Reinado.

Ópera flutuante contém vários méritos. Em termos gerais, a sólida formação do autor na melhor tradição da crítica literária brasileira soma-se a um conhecimento profundo do repertório operístico italiano, francês e alemão, sem que o livro seja escrito de um “fanático” para outro, isto é, sem pressupor nas leitoras e leitores o conhecimento prévio de enredos, compositores, sopranos e tenores. Ao contrário, cada ópera tratada conta com uma sinopse competente e algumas notas biográficas, dispensando os comentários herméticos comuns à crítica musical especializada. Além disso, a vocação transdisciplinar de Marcelo Diego, marca do Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Princeton, onde se doutorou, faz confluir na análise das obras literárias a reconstrução de aspectos histórico-sociológicos do Brasil Império assim como a música, a palavra e a ação nas óperas. Tudo isso empreendido numa escrita límpida, certeira e com pulso narrativo próprio, dando ao texto uma feição enxuta e calçada em notas de rodapé redigidas com o mesmo fôlego (algumas passam de uma página) e alento do resto do livro.

Centrado na relação entre o teatro lírico e a literatura romanesca produzida no Brasil dos Oitocentos, o argumento de Ópera flutuante encontra-se amparado na articulação de três “intuições” desdobradas em três “atos”, cada um contendo duas “cenas” (os termos são do autor). Diz a primeira intuição, à primeira vista quase contraintuitiva: “a ópera europeia – seu repertório e suas companhias – teve um impacto maior sobre a literatura brasileira do que sobre a ópera brasileira” (Diego, 2022, p. 26). Contida na primeira, a segunda intuição sugere que o fluxo transnacional de companhias líricas, sobretudo italianas, pela sociedade de corte do Rio de Janeiro desempenhou um papel importante na radicação do romance enquanto gênero literário de expressão nacional. Por fim, a terceira intuição dirige-se à fase madura de Machado de Assis, momento em que, segundo Marcelo, seria possível observar em Dom Casmurro (1899) e Memorial de Aires (1908) os contornos formais de uma “obra de arte total” [Gesamtkunstwerk], “assim como as chamadas ‘óperas românticas’ e os ‘dramas musicais’ de Wagner” (Diego, 2022, p. 27).

O que permite extrair de tais intuições o valor de hipóteses de trabalho é o seu diálogo estreito com a noção de “sistema” desenvolvida por Antonio Candido, de modo que, para transpor ao domínio da ópera a tese do autor de Formação da literatura brasileira, Marcelo Diego precisou localizar na capital do Império a relação interdependente entre produtores, linguagem e público. Quanto aos primeiros, uma minoria de compositores nativos (com destaque para Carlos Gomes e Alberto Nepomuceno) enfrentava a competição desleal de Bellini, Donizetti, Rossini, Verdi, Weber e Wagner. A linguagem operística, por sua vez, havia sido incorporada em meados do século XIX à vicejante “sociedade do espetáculo”[2] das principais capitais europeias, aportando em terras brasileiras a cada novo contrato entre as companhias itinerantes e o Imperador, este sim um real fanático pelo dramma per musica. Restava o público, constituído, por um lado, de uma classe ociosa e ávida em consumir signos de distinção estrangeiros e, por outro, de uma elite intelectual às voltas com o nacionalismo literário que assinalou a chegada do Romantismo entre nós. Pertencentes a esta última estão os protagonistas de Ópera flutuante, escritores homens – embora Maria Benedita Bormann, autora do romance Celeste (1893),[3] pudesse tranquilamente ter figurado no elenco e incrementado a tese de Marcelo sob o viés das relações de gênero – para quem a ópera serviu ora de marcador espaço-temporal do enredo, ora de forma artística a partir da qual a atividade literária poderia, ela mesma, ser transformada.

Os atos do livro – “Cantores de Arribação”, “Cidades dos Pianos” e “Teatro do Mundo” –  correspondem a três “momentos decisivos”, na célebre expressão de Antonio Candido, da presença da ópera no Brasil. Em “Cantores de arribação”, a chegada das primeiras companhias estrangeiras na corte fluminense é reconstituída em dois capítulos, ou “cenas”, por meio da peça O Diletante (1845), de Martins Pena, e dos romances O moço loiro (1845), de Joaquim Manuel de Macedo, Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, Lucíola (1862) e Sonhos d’ouro (1872), de José de Alencar. A maneira “sutil, porém significativa” (Diego, 2022, p. 85) pela qual as convenções do repertório lírico são flagradas nas obras mostra como a formação de um sistema operístico foi-se tornando possível na corte fluminense à medida que o sistema literário dava provas de vigor e permanência. Além de situar no tempo a estreia das temporadas líricas e seu sucesso entre os cariocas, o movimento dos capítulos procura caracterizar o diletante, tipo social emergente, habitué do prestigioso teatro São Pedro de Alcântara, entusiasta de Bellini e Donizetti e movido pelas rixas acaloradas acerca do melhor soprano – como as envolvendo Augusta Candiani e Clara Delmastro, em 1844, e Anne Charton-Demeur e Emilia Lagrua, em 1853.

O segundo e o terceiro atos tratam respectivamente da consolidação e apogeu da ópera no Rio de Janeiro, período abrangendo a segunda metade do século XIX e marcado pelo declínio tanto do escravismo quanto da Monarquia. Em “Cidade dos pianos”, duas “cenas” percorrem o processo de “domesticação” do repertório italiano pelas classes abastadas da corte através da leitura atenta da peça O Demônio Familiar (1858) e da série de crônicas Ao Correr da Pena (1854-1855), de Alencar, dos romances Cinco Minutos (1857), Lucíola (1870)e A Pata da Gazela (1870), do mesmo autor, e de A mão e a Luva (1857), de Machado de Assis. Tal processo, argumenta Marcelo, agitou os ânimos mais ufanos de então, a ponto de suscitar a criação de uma companhia nacional de ópera (ativa somente de 1857 a 1863). Incidiu também sobre diversas instâncias da vida social brasileira, como a relação entre os gêneros – notada no comportamento assertivo e calculista de certas personagens femininas dos romances de Alencar e Machado, antes relegadas a estereótipos infantilizados e irracionais –, bem como a relação entre brancos e negros.

Sobre este último ponto, vale destacar a análise de O Demônio Familiar realizada por Marcelo Diego na primeira cena do segundo ato. Ao esmiuçar o elo, traçado por mais de um comentador, entre a personagem Pedro, o menino escravizado da peça de Alencar, e Fígaro, o servo de O Barbeiro de Sevilha, o autor desvela em três planos “a relação íntima entre os universos da ópera e da escravidão no Rio de Janeiro oitocentista” (Diego, 2022, p. 155), a começar pela constatação de que só foi possível à elite carioca domesticar a ópera, isto é, torná-la de fato familiar ao público da capital do Império, porque um enorme contingente de pessoas escravizadas produzia o excedente de valor capaz de financiar a importação de bens culturais europeus, entre eles, as companhias estrangeiras. O segundo plano revelado pela peça diz respeito à incorporação da mão de obra negra pela “cultura da ópera”. “Do mesmo modo que Pedro fazia as vezes de pajem, acompanhando Eduardo [seu senhor] às récitas e entregando flores às prime donne em seu nome”, afirma Marcelo Diego (2022, p. 156), negras escravizadas cobertas de joias escoltavam suas senhoras nos camarotes dos teatros, cuidavam das crianças e até “transportavam comidas enroladas em guardanapos, para servir durante os intervalos” (Magaldi apud Diego, 2022, p. 156). Apesar de patrocinadora das companhias estrangeiras, a elite carioca não foi o único grupo social a ter se familiarizado com a ópera, embora as pessoas negras o fizessem na condição de subalternos escravizados ou libertos. O salto para o terceiro plano, infelizmente o menos desenvolvido no livro, vai no sentido de reconhecer que tal cultura lírica acabou sendo “apropriada” pelos grupos subalternos, convertendo-se inclusive “em um importante instrumento de profissionalização durante a transição do regime de trabalho servil para o assalariado” (Diego, 2022, p. 159). Sem prejuízo para a compreensão do livro, o fato de o autor não se deter em um caso específico dessa apropriação, no entanto, impede que o argumento atinja a voltagem analítica máxima, restando como uma sugestão potente para pesquisas futuras.

Em “Teatro do Mundo”, José de Alencar e Machado de Assis voltam à ribalta, dessa vez para mostrar como certos elementos da ópera contribuíram com a maturação da forma romance, chegando ao paroxismo no caso de Memorial de Aires (1908), última obra de ficção do Bruxo do Cosme Velho. O primeiro capítulo se atém aos romances Senhora (1875), de Alencar, e Dom Casmurro (1899), de Machado, permitindo “que se ouçam as ressonâncias da ópera na concepção de ambos” (Diego, 2022, p. 201). Não se trata mais de verificar nas referências à ópera um mero marcador temporal (em Senhora, aliás, tais referências parecem querer confundir intencionalmente o leitor), mas sim o reconhecimento de “elementos não exclusivos, porém característicos da linguagem lírica” (Diego, 2022, p. 206) na estrutura das obras e na composição das personagens. Exemplos disso são Bento Santiago, posto a meio caminho dos shakespearianos Otelo – tal como retratado por Rossini e Verdi – e o príncipe Hamlet, e Aurélia Camargo, protagonista de Senhora, cujo “caráter resoluto”, diz Marcelo, “e o seu sentido do trágico são os das grandes damas do repertório lírico” (Diego, 2022, p. 211).

Por fim, o segundo capítulo situa a chegada triunfal de Richard Wagner ao repertório operístico do Rio de Janeiro, rivalizando com a “supremacia de longo prazo” (Braudel, 2007, p. 21) de que gozavam os compositores italianos no último quartel do século XIX. Aqui, a noção de “obra de arte total” defendida pelo alemão encontra uma atualização inesperada, pois ao narrar as memórias do Conselheiro Aires sob a forma de um diário, Machado de Assis deslocou a energia do texto do discurso enunciado para o ato da enunciação, embebendo a narrativa no presente e, por consequência, tornando-a mais presa ao tempo que ao espaço – “mais distante da pintura, mais perto da música”, dirá Marcelo Diego (2022, p. 286). Através das óperas grandiosas de Wagner, preocupadas em “estabelecer efeitos de realidade por meio da linguagem”, Machado se volta para o caráter abstrato do fazer literário, comprometido menos com sua função representacional que a criação de “efeitos de linguagem por meio da realidade” (Diego, 2022, p. 301). Exposto de maneira alentada por Marcelo Diego, esse movimento de incorporação formal da ópera na arquitetura do romance convence leitoras e leitores da complexidade do fenômeno. Longe de reduzir-se a um caso de dominação cultural ou de simples assimilação, a presença da ópera europeia no Brasil, tal como analisada por Marcelo Diego, oferece um giro ao velho problema das influências estrangeiras, sendo possível arriscar que foi através do romance brasileiro, esse “objeto compósito, dotado de identidade própria e formado por uma reunião de traços heterogêneos” (Diego, 2022, p. 295), que a ópera permaneceu dona de encanto e sabor inigualáveis.

Notas

[i] Pós-doutorando do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, autor do livro Compondo Chiquinha Gonzaga: contrapontos antropológicos (no prelo).

[1] Em uma pesquisa recente sobre consumo cultural e classes sociais na sociedade brasileira, Edison Bertoncelo notou que 90,4% das pessoas entrevistadas jamais haviam ido à ópera (Bertoncelo, 2019, p. 244).

[2] O termo remete ao título do livro de Christophe Charle em tradução brasileira – A gênese da sociedade do espetáculo (2012). Apesar da análise arguta de como o teatro, tomado em sua diversidade temática e formal, se tornou a principal modalidade expressiva da Europa oitocentista, Charle curiosamente não trata de ópera.

[3] Em Celeste encontram-se diversas referências a óperas estrangeiras como Lucia di Lammermoor e A filha do regimento, de Gaetano Donizetti, e La Traviatta, de Verdi, além de uma citação da famosa soprano Anne Charton-Demeur (1827-1892).

Referências

ADORNO, Theodor. (2009). Ópera. In: Introdução à sociologia da música. São Paulo: Editora UNESP.

ANDRADE, Mário de. (1976). Campanha contra as Temporadas Líricas. Música, doce música. São Paulo: Martins Editora.

BERTONCELO, Edison. (2019). Consumo cultural e manutenção das distâncias sociais no Brasil. In: PULICI, C. & FERNANDES, D. (orgs.), As lógicas sociais do gosto. São Paulo: Editora Unifesp.

BENZECRY, Claudio. (2011). The Opera Fanatic: ethnography of an obsession. Chicago and London: University of Chicago Press.

BORMANN, Maria Benedita (Délia). (1988). Celeste. Rio de Janeiro: Presença.

BRAUDEL, Ferdinand. (2007). O modelo italiano. São Paulo: Companhia das Letras.

CHARLE, Christophe. (2012). A gênese da sociedade do espetáculo: teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena. São Paulo: Companhia das Letras.

DIEGO, Marcelo. (2022). Ópera flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: EDUSP.

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