*Créditos da Imagem: “Romário, Copa 1994” de Rubens Gerchman
“Arte e Ofício” (Parte II)
De que forma, então, é possível impedir esta degeneração da confiança?
Através, precisamente, da enfatização daquele controle, daquela contenção que o uso da máscara implica em desafiar. Lembremo-nos que, para controlar o abatimento e promover a confiança, os jogadores devem lançar mão de um recurso de caráter cognitivo, a autocrítica. Da mesma maneira, para conter a confiança em limites aceitáveis, e impedir o aparecimento da máscara, deve-se empregar uma outra categoria, a autodisciplina.
O jogador precisa, então, fortalecer de todas as maneiras o seu autocontrole, ter o máximo de confiança em si mesmo, mas tomando todo o cuidado para evitar que esta autoconfiança o leve a pretender humilhar seus adversários, assumindo uma postura hierárquica em um contexto em que ela não é permitida. Na verdade, se a autodisciplina tiver sucesso em controlar a confiança, a personalidade ideal do jogador será marcada por um quarto sentimento, a humildade. Esta vai, exatamente, implicar no privilégio de todos os valores negados pela máscara, constituindo, juntamente com a autoconfiança, uma dupla de sentimentos altamente valorizada pelos jogadores. Em função da humildade, por mais autoconfiança que tenha em seu talento, o jogador irá sempre tratar seus companheiros e adversários como iguais, respeitando as variações e a imprevisibilidade, as surpresas que o desempenho pode encerrar.
A personalidade do jogador, pelo menos no que diz respeito às suas emoções, já está, de certa forma, esboçada; temos quatro sentimentos: o abatimento, a humildade, a confiança e a máscara. O primeiro coloca o jogador excessivamente “por baixo”, enquanto o último o deixa excessivamente “por cima”. Ambos precisam ser controlados e corrigidos por duas categorias estreitamente relacionadas, baseadas na ideia de contenção, controle: a autocrítica e a autodisciplina. Os dois sentimentos do meio, a humildade e a confiança, são, por sua vez, extremamente valorizados, constituindo parte indispensável da personalidade de todo jogador.
É evidente que nem todos os jogadores possuem a mesma “quantidade” de humildade e de confiança. Existem jogadores que são muito mais confiantes que humildes, e vice-versa. Entretanto, mesmo o mais confiante dos jogadores irá enfrentar situações onde um mínimo de humildade é exigido, bem como jogadores muito humildes terão sempre que dispor, em alguns contextos, de uma certa quantidade de confiança. É exatamente para manter as emoções no interior destes limites, evitando o seu “exagero”, que a autodisciplina e autocrítica são tão importantes.
Note-se, para finalizar este desenvolvimento, que a personalidade ideal do jogador não é simplesmente a “média” resultante da combinação, em partes desiguais, da confiança e da humildade. Esta é apenas uma situação de fato, que, entretanto, precisa ser aperfeiçoada, pois, segundo meus entrevistados, o desempenho de todo jogador melhorará de forma acentuada quando ele puder experimentar, ao mesmo tempo, o máximo de confiança em si próprio e o máximo de humildade. É lógico que esta exigência só faz aumentar a importância do autocontrole em relação a este “sistema de emoções” que acabamos de apresentar, pois, se ela se concretizar, o risco dos sentimentos positivos degenerarem em negativos será, evidentemente, muito maior.
Esta categoria, o autocontrole, parece efetivamente desempenhar um papel extremamente importante na construção da personalidade do jogador. Ela pode, inclusive, ser empregada para nos ajudar a compreender um outro conjunto de “sentimentos”, que também faz parte dos depoimentos que colhi, embora de forma muito menos enfática.
Este segundo conjunto pode ser montado a partir da categoria raça. Ela parece ser tão importante quanto a confiança e a humildade, pois remete à cota de “paixão” que todo jogador tem que ter para perseguir a vitória num jogo tão competitivo quanto o futebol. Note-se, contudo, que esta paixão não se confunde com o “amor à camisa”, com a “devoção” pelo clube, que parece caracterizar os dirigentes e a torcida. A raça implica numa visão mais ampla da paixão, pois se refere à disposição que todo jogador precisa ter para lutar o máximo possível pela vitória das suas “cores”, quaisquer que elas sejam.
O jogador “raçudo”, portanto, é aquele que se destaca pela extrema dedicação com que se entrega ao cumprimento de suas funções, atingindo, algumas vezes, o limite do heroísmo: é o caso, por exemplo, de jogadores que continuam em campo, quando necessário, mesmo estando seriamente contundidos, arriscando sua “forma” e, ocasionalmente, até mesmo sua carreira, para garantir um bom resultado ao seu time. Mais cotidianamente, a raça está ligada também à coragem necessária para se enfrentar disputas corporais com os adversários, de entrar “nas bolas divididas”, correndo o risco de se quebrar a perna, mas sem “fugir da raia”.
É exatamente a partir deste ponto que a raça corre o risco de se tornar uma emoção perigosa, pois pode se transformar em violência. Segundo meus entrevistados, a violência e os sentimentos a ela associados, como a raiva e o desespero, podem ser extremamente destrutivos em relação à carreira de um jogador. Dominado por essas emoções, ele pode pretender agredir outros jogadores, dirigentes, e até o juiz, prejudicando o seu futuro profissional e desfalcando o seu time. Existem casos, sem dúvida, nos quais a violência é permitida e até mesmo aplaudida: quando ela é acionada em resposta a uma agressão anterior, mostrando que os jogadores do time atacado mantém a sua raça, não se intimidando com a ameaça de utilização da força física. Além disso, a violência parece poder também ser usada contra um adversário mascarado, trazendo-o dolorosamente de volta à realidade do jogo, exigindo, de forma radical, que passe a respeitar seus oponentes.
Note-se que o inverso também é verdadeiro: a máscara parece ser admitida quando se trata de sancionar o comportamento de um jogador, cuja violência não está sendo controlada pelo árbitro. Ele deve, então, ser humilhado, com uma sucessão de dribles, por exemplo [3], para perceber que está disputando um jogo de futebol, no qual se privilegia o talento e não a força física. Note-se, contudo, que, nos dois casos, tanto a violência quanto a máscara deixam de conduzir paixões dominadoras, que empolgam os jogadores e fazem com que incorram em procedimentos irrefletidos e perigosos. Neste contexto específico a máscara e a violência se combinam com um elemento consciente e racional, um mínimo de cálculo, que diminui o seu perigo, e possibilita o seu uso.
No seu emprego cotidiano, entretanto, a violência pode ser tão destrutiva quanto a máscara, o que exige, mais uma vez, a intervenção do autocontrole para fazer com que a raça do jogador seja mantida dentro de seus limites. Da mesma forma que no sistema de emoções anteriormente estudado, o autocontrole, se bem-sucedido, será acompanhado de um outro sentimento, oposto à raça, mas igualmente valorizado, a frieza. Ela parece ser o complemento perfeito da raça, ocupando-se, exatamente, das situações dramáticas que não podem ser resolvidas pela paixão, que exigem um jogador “sem nervos”, absolutamente controlado: é o pênalti que pode decidir um campeonato, o “toque de bola” necessário para “segurar” um adversário, a capacidade de resistir à provocação dos adversários, enfim, lances e circunstâncias diretamente derivados da natureza extremamente competitiva do futebol, mas que precisam ser enfrentados mais com a cabeça do que com o coração.
A frieza, contudo, também pode ser destrutivamente exagerada, pois um jogador demasiadamente frio, “cerebral”, corre o risco de se transformar num “pipoqueiro“, em alguém que não disputa as bolas divididas, que teme se arriscar em qualquer jogada fisicamente mais perigosa. Dominado pelo medo, o “pipoqueiro” pode rapidamente se transformar numa peça inútil para a equipe, pois, mesmo que seja um grande craque, seu talento ficará bloqueado pela sua falta de coragem em utilizá-lo. A frieza, portanto, também precisa ser disciplinada para não causar problemas à carreira do jogador.
Como se vê, repete-se, em linhas gerais, o mesmo esquema anteriormente elaborado: quatro emoções, o medo, a frieza, a raça e a violência, dispostas num sistema, no qual as duas do centro, embora opostas, complementam-se, e são consideradas extremamente positivas, enquanto as duas da ponta são pensadas como destrutivas, e, até mesmo, estigmatizadoras. O que se teme, portanto, não é a oposição, o conflito de sentimentos diferentes, mas sim o exagero de cada um deles, o que faz com que a autodisciplina, o autocontrole (uso as duas expressões como equivalentes) se transforme no traço invariante e, de certa forma, decisivo deste sistema de emoções, o que também acontecia no outro.
Dessa maneira, a análise dos sentimentos que, segundo meus entrevistados, definem de forma mais decisiva a personalidade do jogador, vai nos revelar um sistema extremamente preocupado com o exagero e a sua contenção, dando, por isso mesmo, um valor especial à ideia de autodisciplina.
Entretanto, o exame dessas emoções não chega a esgotar o estudo da personalidade dos jogadores. Esta parece implicar também numa outra dimensão, mais voltada para o corpo do que para as emoções.
Efetivamente, um jogador de personalidade “forte” precisa não apenas disciplinar suas paixões como também tomar o máximo de cuidado possível com o seu corpo, pois,
“… se não tiver condição física pode tratar de outro assunto, porque futebol não vai dar”.
Controlar a forma física, consequentemente, é tão importante quanto conter as emoções. O jogador deve levar uma vida extremamente “regrada”, pacata e caseira, evitar o álcool, tóxicos e até mesmo o cigarro, além de exercer um rígido controle sobre sua atividade sexual. Esta deve ser muito “dosada”, para restringir o desgaste, sendo inclusive aconselhável, segundo alguns dos entrevistados, que o jogador se abstenha de
“ter relações um ou dois dias antes dos jogos”.
Nestas condições, não é de se estranhar que em todos os depoimentos que recolhi haja uma enorme preocupação com duas entidades, perigosas e difíceis de controlar: as mulheres e a noite. As primeiras parecem sentir uma atração especial pelas estrelas, figuras públicas e poderosas, que sofrem um verdadeiro “cerco”: são esperados no fim do treinamento, recebem presentes, são “tentados”, enfim, com as mais variadas formas de sedução. Este tipo de mulher que, nas representações dos meus entrevistados, associa-se evidentemente à ideia da “mulher da vida”, aquela que controla a sua sexualidade, e que pode, portanto, “sugar as energias masculinas” (Matta, 1979), vai encontrar na noite, com seus segredos e mistérios, um campo ideal de atuação. Além disso, é na noite que o jogador pode frequentar “inferninhos” e boates, consumir tóxicos e bebidas, cultivando assim os vícios dos quais, em função mesmo da sua forma física e da sua carreira, deveria sumariamente se afastar. Da mesma forma como o sistema das suas emoções, será somente através de uma ênfase na autodisciplina, que o jogador terá condições de se manter afastado dessas tentações, e manter seu corpo fisicamente preparado para atender as exigências da sua profissão.
Como se vê, a autodisciplina vai desempenhar também papel fundamental nesta outra dimensão da personalidade do jogador. Ela vai orientar, aqui, uma espécie de “ética corporal”, que, de um lado, regula e proíbe uma série de atividades, e, de outro, vai enfatizar sobremaneira a necessidade do treinamento, da educação física, para a construção e o aprimoramento da forma atlética do jogador. Visto aqui menos como um estilista e mais como um atleta, o jogador deve dedicar-se integralmente a este treinamento, encarado muitas vezes como penoso e difícil, mas absolutamente necessário. O jogador deve empregar ao máximo a sua disciplina para realizar todos os exercícios até o fim, num trabalho reconhecidamente duro, rotineiro e previsível, essencialmente anônimo, mas fundamental para que o corpo do jogador, combinado com as suas emoções, tenha condições de realizar as “maravilhas” que o talento determina.
A personalidade do jogador, portanto, será construída basicamente em duas dimensões: a primeira cuida de organizar as suas emoções dentro de um padrão bastante definido, no qual sentimentos opostos se completam, e os seus excessos são reprimidos. Já a segunda trata do corpo do jogador, transformando-o em um instrumento muito bem “afinado”, através de uma ênfase no trabalho duro e anônimo que se realiza no treinamento físico, e da proibição de todos os vícios e prazeres que poderiam prejudicar a forma atlética do jogador. Estas duas dimensões diferentes são orientadas e definidas por uma mesma categoria, a autodisciplina, que faz a mediação entre elas e acentua a sua complementaridade.
Note-se que a personalidade não é inata como o talento. Meus entrevistados chamaram bastante a atenção para o fato de que a maior parte dos jogadores inicia-se no futebol sem qualquer autodisciplina, incorrendo sistematicamente nos vários excessos e vícios que ela procura evitar: são mascarados e violentos, consomem tóxicos, envolvem-se em aventuras amorosas, e não tem a menor disposição para o treinamento físico. A personalidade, portanto, está muito longe de ser uma entidade que a pessoa recebe quando nasce, sem saber muito por que, e conserva, como o talento, até o fim da vida. Ela precisa ser ensinada, através de um processo lento e gradual de socialização, no qual foram destacadas duas figuras extremamente importantes: o técnico e a esposa.
O técnico funciona como uma espécie de “segundo pai”, especialmente o técnico dos juvenis. É ele que introduz o jogador, de forma mais sistemática, no mundo do futebol, e, pelo próprio poder que detém sobre o seu destino neste mundo, já que é ele quem o escala ou deixa de escalar, transforma-se numa figura extremamente importante, cujos conselhos devem ser escutados para que se tenha algum futuro no mundo do futebol.
A figura da esposa, por sua vez, vai remeter diretamente para a importância de que o casamento parece se revestir na vida profissional do jogador. De imediato, o casamento regulariza a vida sexual do jogador, inclusive porque a esposa vai representar exatamente o inverso da “mulher da vida”, tomando todos os cuidados para controlar a sua sexualidade e impedi-la de atrapalhar o trabalho do jogador:
“às vezes, eu quero ter relação, mas ela me lembra que eu vou ter um jogo dois dias depois, e aí então nós evitamos”.
Além disso, a vida de casado vai influir positivamente no “equilíbrio emocional” do jogador, pois as novas responsabilidades que ela traz, especialmente depois da chegada dos filhos, obrigam-no a se preocupar mais com a carreira e seu futuro, levando-o a adotar uma atitude mais contida e madura, bem mais aproximada ao modelo de personalidade ideal de que vimos falando.
Assim, tal como visto da casa, o mundo da rua aparece fundamentalmente dividido em dois contextos principais, o dos vícios, do prazer perigoso e destrutivo, e o do trabalho, que implica num prazer saudável, como vimos no primeiro capítulo, orientado por um conjunto de representações que parece enfatizar um ideal, até certo ponto ascético, de dedicação e autodisciplina.
O mundo da casa rejeita e afasta-se do primeiro e, no caso específico das representações que estou estudando, aproxima-se estreitamente do segundo, chegando a haver, inclusive, uma certa continuidade entre os dois. A casa do jogador não é apenas, como em outras esferas da nossa sociedade, um local de refúgio e descanso, marcado pela hierarquia e pelo afeto, e relativamente fechado para o mundo “difícil” e impessoal que fica do lado de fora. No nosso caso, o mundo da casa vai se abrir para o do trabalho, elaborando categorias e sentimentos extremamente importantes para a vida profissional do jogador. Ele funciona como uma espécie de “mola” que impulsiona o jogador no seu trabalho, pois, como este não é simplesmente um castigo, já que pode implicar em prazer e em muito dinheiro, a casa não vai aparecer simplesmente como uma recompensa, uma retribuição ao esforço e ao sofrimento que seu “cabeça” despende na dura vida da rua (cf. Matta, 1979).
A personalidade, portanto, não é, de forma nenhuma, qualidade inata e intransferível, que necessariamente singulariza os seus possuidores. Muito ao contrário, ela vai sendo construída, ensinada, aos poucos, sob a influência de fatores diferentes, aos quais todos os jogadores podem ter acesso, como, no exemplo que acabamos de discutir, o casamento e o mundo da casa.
Na verdade, a possibilidade de se comparar a personalidade com o talento pode ser ainda muito mais desenvolvida, permitindo-nos, inclusive, levantar algumas considerações sobre o significado da personalidade e a forma pela qual ela se articula com outras categorias constitutivas do mundo do futebol.
Ora, o que mais chamava a atenção na discussão do talento era seu caráter extremamente original e singular. Ao “liberar-se”, de dentro para fora, ele implicava imediatamente numa enorme diferenciação, separando seus possuidores entre si, e, coletivamente, dos outros jogadores que não tinham nascido com esta habilidade especial. Uma liberdade “interna”, a liberdade de “realização” do talento, vai resultar numa extrema desigualdade, dando origem a um mundo de “estrelas”, de “cobras”, de pessoas conhecidas e poderosas.
A personalidade, ao contrário, vai definir um contexto social orientado por regras bastante diferentes, baseadas na ideia de autodisciplina, e aplicadas com extrema igualdade a todos os jogadores. Nunca é demais repetir que, segundo meus entrevistados, todos os jogadores devem seguir igualmente os preceitos que definem a personalidade, sob pena de verem seu desempenho diminuído e sua carreira prejudicada.
Assim, enquanto o talento serve para diferenciar os jogadores, a personalidade os identifica, definindo regras cuja modificação está acima da capacidade de qualquer estrela. Na verdade, se o talento pode ser articulado com o individualismo qualitativo, a personalidade, ao enfatizar exatamente o que é comum a todos os jogadores, parece estar diretamente referida à dimensão quantitativa do individualismo. O que, entretanto, é que vai ser definido como comum a todos os jogadores? A autodisciplina, a dedicação ao trabalho, a rejeição dos vícios e prazeres fáceis e o cuidado com o corpo, categorias que aproximam de um ideal ascético que vai precisamente caracterizar a ética protestante, uma das ideologias mais comprometidas com esta forma de individualismo (cf. Weber, 1967) [4].
Com efeito, se combinarmos as características definidoras da personalidade com aquelas que orientavam a dimensão racional e calculista do projeto dos jogadores, teremos um quadro de categorias que inclui alguns dos elementos formadores do individualismo quantitativo, e do “ethos” puritano e “yankee” que a ele esteve ligado. Assim, a preocupação em acumular riquezas através de um processo sistemático e calculado de maximização dos lucros, que constitui, de certa forma, o aspecto mais cognitivo e racional do individualismo quantitativo, vai ser complementada pela adoção de um código de emoções e de uma ética do corpo baseados na ideia de autodisciplina, e no reconhecimento do valor do trabalho “duro” e anônimo, único capaz de assegurar a forma física e a carreira profissional do jogador.
Temos então reproduzida, com novos elementos e num outro contexto, a mesma dualidade de individualismos que caracterizava o projeto dos jogadores. Precisamos então, para finalizar, estudar a maneira pela qual esses dois diferentes individualismos aqui se relacionam. Na discussão do projeto, os dois se completavam perfeitamente, pois um estava orientado para dentro do campo, buscando o prazer que o jogo podia proporcionar, enquanto o outro preocupava-se basicamente com questões extracampo, envolvido com as fórmulas de multiplicar o dinheiro que o futebol possibilitava.
Aqui, este relacionamento se dá de maneira diferente, pois como os dois individualismos estão orientados para o jogo, para dentro de campo, definindo as qualidades necessárias para que o jogador nele tenha sucesso, pode-se perceber um certo conflito entre os dois, que resulta na formação de dois grupos diferentes de jogadores, as estrelas e os coadjuvantes.
Ora, como a diferenciação e a singularidade são exatamente as características definidoras do talento, não é de se estranhar que tenha partido exatamente dele a iniciativa de distinguir os dois grupos. As estrelas, então, são os jogadores que nasceram com o talento, uma entidade rara e exclusiva, e que não pode ser dividida com mais ninguém. “Premiados” com esse dom, os craques transformam-se em verdadeiros artistas, “gênios criadores”, merecedores de fama e fortuna, que devem ser tratados com o máximo de consideração nos mais diferentes contextos de nossa vida social. Parecem ser o que Matta (1979) chama de “pessoas“, nossos medalhões, aqueles “que não precisam mais ser apresentados e com quem se deve primeiro falar”.
Opondo-se a essas estrelas, e definidos por características inteiramente diferentes, vamos ter os coadjuvantes, aqueles que não possuem nenhum talento especial para o futebol. São jogadores simples, com um talento comum, “mediano”, tão iguais entre si que se tornam praticamente intercambiáveis, tanto faz comprar um coadjuvante quanto outro, não faz diferença. Procuram, então, aprimorar exatamente o lado da personalidade, caprichando na forma física, ou desenvolvendo algumas das emoções que chegamos a discutir. Para eles, o futebol é um ofício, não uma arte; um ofício praticamente anônimo, pois, encerrada a carreira, dificilmente seus nomes serão lembrados.
Note-se, entretanto, que no relacionamento entre os jogadores a “superioridade” das estrelas e a “inferioridade” dos coadjuvantes jamais vai ser experimentada de forma tão nítida e explicita. Isso acontece porque a personalidade, e o individualismo quantitativo que a caracteriza, deve ser adotada também pelas estrelas. Não existe, assim, nenhum craque acima da lei, que possa garantir o seu lugar no time mesmo que não esteja em boa forma física, seja mascarado, um pipoqueiro, ou qualquer outra coisa assim. É evidente, e meus entrevistados têm bastante consciência disto, que existem craques que conseguem manter a sua posição sem ter a personalidade necessária para isso, valendo-se apenas do talento. Contudo, eles não acreditam que essa possa ser a tendência dominante, pois tem sido exaustivamente comprovado, até mesmo pela “performance” das nossas seleções nas duas últimas Copas do Mundo [5], segundo meus entrevistados, que o talento só pode se realizar se combinado com a personalidade.
Consequentemente, toda estrela precisa tornar-se também um coadjuvante, todo “tocador de piano” precisa aprender a carregá-lo, para que possa sobreviver à violenta competição que existe pelas posições de um time de futebol. Assim como qualquer um que esteja jogando mal pode perder o lugar, e todo dia podem aparecer novos craques, a estrela precisa cuidar que seu desempenho não seja prejudicado pela falta de controle emocional, ou de preparo físico, já que só o talento não basta para garantir uma boa performance.
As estrelas transformam-se, então, em “pessoas” muito curiosas, possuindo uma dupla personalidade. São grandes craques, famosos e festejados fora do campo, mas obrigados a “dar duro” como qualquer coadjuvante, forçados, como todos, a conter suas paixões dentro dos limites socialmente aceitos, tendo que encarar o futebol não só como arte, mas também como ofício, um ofício anônimo, rotineiro e pouco criativo. São classificados como “medalhões” noutras esferas da nossa sociedade, com sua superioridade nitidamente reconhecida, e trânsito livre nas mais altas rodas, mas, se quiserem “bancar” o “medalhão” no futebol, enfatizando a posição e esquecendo o desempenho, passarão rapidamente à posição de mascarados.
Este singular arranjo entre a diferença e a identidade, entre a hierarquia e o individualismo, torna nossos craques muito parecidos com os “super-heróis” norte-americanos, como o “Batman” e o “Super-Homem”, também portadores de dupla personalidade, obrigados a ser um “tipo comum”, um “regular guy“, que tem uma vida anônima e rotineira, paralelamente a suas outras espetaculares identidades de super-heróis (cf. Matta, 1979, p. 198).
Mais do que uma “tirada”, esta observação permite-me elaborar um pouco mais a análise das estrelas do nosso futebol, pois acredito que elas estão mais próximas das “pessoas” norte-americanas, figuras hierárquicas num universo individualista, do que das suas congêneres brasileiras. Da mesma forma que o “sucesso” nos EUA, o talento é algo inato, que se tem, mas que não se recebe nem se pode transmitir, o que impede a formação de uma nobreza e singulariza ao máximo a desigualdade. Assim, no nosso futebol as estrelas não são muitas, pois o talento é algo que todos pretendem ter, mas que apenas uns poucos possuem, e, estes poucos, tal como os “Vips” nos EUA, experimentam a sua diferenciação no meio de um universo extremamente individualizado, baseado na competição, na igualdade, e no desempenho (Idem).
O que estou tentando dizer, para ser o mais claro possível, é que, pelo menos na visão de meus entrevistados, o futebol é um contexto eminentemente individualista no interior da nossa sociedade, e, assim, as diferenças e hierarquias que comporta devem chegar a um acordo, mínimo que seja, com este individualismo.
Notas
[3] Tal como, segundo o depoimento de um dos entrevistados, Paulo Cesar Lima fez com o capitão do time da Escócia, na Copa do Mundo de 1974 (Nota dos editores: o capitão da Escócia era Billy Bremner).
[4] Note-se que o comportamento dos nossos jogadores protestantes, como Balthazar, do Grêmio, João Leite, do Atlético e Tita, do Flamengo, um comportamento extremamente ascético, com ênfase especial na dedicação e no trabalho “duro”, vem sendo constantemente elogiado por treinadores e pela crônica esportiva (cf. PLACAR, nº 473).
[5] Nota dos editores: As Copas do Mundo a que se refere o autor são as de 1974 e 1978.
Referências Bibliográficas
GLUCKMAN, Max. (1958). ‘Football Players and the Crowd’. The Listener, 19 February, pp. 331–332.
MATTA, Roberto da. (1979). Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro, Zahar.
PLACAR. n.9 482 e 496.
SIMMEL, Georg. (2001). On individuality and social forms. Chicago, The University of Chicago Press.
SOARES, Luis Eduardo. (1979). “Futebol e Teatro: notas para uma análise de estratégias simbólicas”. Boletim do Museu Nacional, n9, 33.
VOGEL, Arno. (1977). O Momento Feliz: Futebol e Ethos Nacional. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – UFRJ.
WEBER, Max. (1967). – A Ética Protestante e o Espírito do capitalismo. São Paulo, Pioneira.