
Como espaço de discussão de pesquisas e ensaios na área de pensamento social e com o intuito de atingir públicos mais amplos, o Blog da BVPS inicia hoje uma série de posts que se propõe testar e calibrar a força das ideias das interpretações do Brasil. Ao lado da seção “Interpretações do Brasil e musicalidades“, a qual vocês já acompanham aqui sob a coordenação de Pedro Cazes (CPII e IESP/UERJ), inauguramos hoje a seção “Interpretações do Brasil e política”, coordenada por Leonardo Belinelli (USP). A partir da produção cultural e dos eventos políticos, as seções têm em comum desvelar processos e dinâmicas do presente à luz das ideias de nossos intérpretes. Em breve, este projeto ganhará mais uma nova seção dedicada à poesia, sob a coordenação de Lucas Van Hombeeck (PPGSA/UFRJ).
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Sobre a seção “Interpretações do Brasil e política”:
A coluna “As interpretações do Brasil e a política” é um novo espaço no blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) em que se buscará discutir as histórias e os conteúdos das principais reflexões brasileiras a respeito de problemas fulcrais da organização da vida social do país, como a democracia, o desenvolvimento, a cidadania, as desigualdades, entre outros tantos. Sempre que pertinente, seus textos buscarão relacionar suas discussões com o contexto em que vivemos. A coluna cumprirá seu propósito se, ao longo do tempo, conseguir construir um mosaico em que se revele grandes linhas de cruzamento de diversos esforços empreendidos, no passado e no presente, para interpretar o Brasil. É nesse espírito que o texto abaixo foi escrito. (N.A.)
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As “interpretações do Brasil” ajudam a pensar o ciclo político que vivemos?
Por Leonardo Octavio Belinelli de Brito[i]
No conhecido ensaio “Por que ler os clássicos?”, Ítalo Calvino enumera uma série de definições do que seria um “clássico”. Uma delas diz que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Pelos exemplos dados pelo escritor italiano ao longo do ensaio, é admissível supor que ele se referisse, em especial, aos livros de literatura, razão pela qual vale perguntar: valeria o mesmo para os livros de ciências humanas? Nesse caso, o desafio parece maior, uma vez que suas formulações versam sobre a realidade social, sempre cambiante, e partem de determinadas condições de produção do próprio conhecimento. Não é à toa que Florestan Fernandes, em dado momento de sua carreira, imaginou que a institucionalização científica, com tudo que a acompanha, relegaria o “ensaísmo” ao passado (FERNANDES, 1960).
Embora a pergunta tenha interesse, pois dela poderiam decorrer diversas questões sobre o próprio fazer das ciências sociais, sua forma é abstrata. Uma maneira de respondê-la concretamente é abordando-a de modo direto. No contexto em que a formulamos, esse enfrentamento adquire a forma de resposta para a seguinte pergunta: teriam os clássicos do pensamento político e social brasileiro algo a nos dizer sobre a ascensão de Jair Bolsonaro (PSL),seu governo e o modo pelo qual governa?[ii]O primeiro cuidado a se ter é deixar bastante claro que a resposta, caso positiva, deve levar em conta que o Brasil mudou muito do século XIX para cá.Por exemplo, deixou de ser o país predominantemente rural no qual viveram autores como Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), Gilberto Freyre (1900-1987) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Além disso, apesar do caminho turbulento, deixou de ser um regime oligárquico para se tornar uma democracia de massas.
Embora muita coisa tenha mudado, parece que nem tudo mudou. Não há como não perceber a dimensão, para falarmos como Oliveira Vianna, “clânica” do atual governo. É claro que não se trata de um paralelismo estrito, uma vez que o termo, quando empregado pelo jurista fluminense, referia-se ao poder privatista dos latifundiários. O ponto de contato está na reunião de um grupo familiar – aqui entendido como composto por aqueles que compartilham laços de sangue e seus “agregados” – em torno de um chefe, o qual tanto Oliveira Vianna quanto Gilberto Freyre aproximaram da figura romana do pater familias. Embora a direção da política caiba a Bolsonaro, é sugestiva a imagem de que seu governo – ou, pelo menos, o seu cargo – possui fronteiras fluídas. Exemplo disso é o setor de comunicação dapresidência, no qual o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) atua decisivamente a partir de suas contas pessoais em redes sociais,[iii] suprimindo tanto as distâncias entre as instâncias em que deveria atuar (a municipalidade carioca) e o governo federal, como o espaço entre filho e pai. Talvez o uso midiático corrente do termo “clã Bolsonaro” seja mais exato do que parece[iv] e caiba imaginar que existam elementos que ultrapassem o âmbito da estratégia política familiar.
Essa postura remete à outra característica da persona do presidente: sua postura anti-institucional, regida por um espírito que não seria exagero aproximar da cordialidade brasileira identificada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. É importante não confundir essa noção com outras de dimensão eminentemente positiva (como candura ou docilidade), ou com aquelas que se referem à polidez. Ao contrário, trata-se de destacar o termo em seu sentido etimológico, “referente ao que vem do coração”. Ou seja, cordial designa alguém que age, fundamentalmente, em reação aos próprios sentimentos.Sentimentos, como todos sabemos, nem sempre são nobres. Apesar disso, como bem assinalou Roberto Schwarz em sua análise de Dom Casmurro, parece existir uma ideologia brasileira segundo a qual as reações sentimentais são tomadas como sinais de autenticidade e honestidade. Seriam como que provas de bom coração, com algum toque de ingenuidade e simplicidade.[v]
Algo dessa ideologia parece ter surgido na mobilização conservadora que venceu as eleições presidenciais de 2018, em especial no que se refere à sua aversão à institucionalidade política. A oposição, tão comentada, entre a “velha política” e a “nova política” pode ser entendida como uma revolta contra as instituições políticas, encaradas como articuladoras de um sistema organizado para beneficiar o status quo. Nessa revolta entram, por exemplo, o discurso anticorrupção associado com o discurso contra o “politicamente correto” – noção que, como se percebe, faz com que o termo “política” apareça associado à restrição do “discurso livre”.É nessa chave que a cordialidade de Bolsonaro aparece como desejo de liberdade de seus apoiadores. O lado “politicamente incorreto” da cordialidade de Bolsonaro evoca, assim, ao mesmo tempo, a ordem, por ter sido militar, e a sua transcendência, por supostamente desejar superar o “sistema”[vi] – do qual faria parte o “politicamente correto”.
Sintetizando provisoriamente: as obras de Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda não se resumem a identificar, cada uma à sua maneira, as determinações geradas pelas origens rurais do país. Mais do que isso, são análises profundas a respeito da dificuldade da construção da noção de “público” na sociedade brasileira. Embora seja necessário reconhecer que suas obras carregam marcas do tempo em que foram elaboradas – por exemplo, a vigência de paradigmas racistas completamente inaceitáveis para os dias de hoje –, pode-se assinalar que elas as transcendem ao colocarem questões basilares a respeito dos princípios que regem a imaginação coletiva local, um dos elementos decisivos para compreender as tensões envolvidas na organização social brasileira.
Nascido bem depois, Raymundo Faoro (1925-2003) será outro autor a enfatizar a indistinção entre público e privado como um dos problemas-chave da formação política do país. Para ele, a formação política brasileira foi regida segundo as orientações políticas que caracterizam o conceito de “patrimonialismo”, que empresta, com modificações, de Max Weber. O que Faoro deseja destacar em sua análise é que a centralização precoce do Estado português teria criado uma sociedade, ao mesmo tempo, dependente e sufocada por ele. O mesmo teria ocorrido com o Brasil.
O seu caso, entretanto, é curioso. Pensador liberal, Faoro costuma ser usado por setores liberais-conservadores para justificar as privatizações de empresas públicas e as desregulamentações das atividades empresariais.[vii] Para esses leitores, a explicação faoriana do Brasil seria o ponto de partida deuma apologia do mercado contra o “capitalismo politicamente orientado”. É uma modulação desse argumento que está presente, por exemplo, nas obras de Antônio Paim, historiador das ideias bastante influente na formação do ex-ministro da Educação do governo Bolsonaro, Ricardo Vélez Rodriguez.[viii] Esquecem-se, ou ignoram, que Faoro buscava enfatizar como o patrimonialismo usurpava a soberania popular. [ix]
Por outro lado, Faoro, entretanto, enfatizava como a modernização do país se valia da estrutura política “arcaica” para se realizar. E que uma das suas modalidades poderia ser, precisamente, o liberalismo econômico,ideologia de um pequeno grupo social próximo ao poder. Ou seja: ideologias “modernizadoras” podem se alimentar da estrutura social e política desigualitária para serem implantadas sem que isso signifique uma alteração da lógica do poder no país. Modernização, nesse caso, não se opõe ao “atraso”, mas dele se vale.Não seria precisamente esse o caso do ministro da Economia, epígono de um liberalismo radical que, suspeita-se, pode influenciar medidas que visem beneficiar justamente os interesses de sua irmã?[x]
Guardadas as enormes diferenças históricas, pode-se assinalar como o governo Bolsonaro reproduz aquilo que o historiador paulista Caio Prado Júnior (1907-1990), no seu clássico Formação do Brasil contemporâneo: colônia, designava como “sentido da colonização”. Sua orientação ultraliberal, sob medida para os representantes do capitalismo financeiro e do agronegócio, em combinação com seu completo alinhamento aos Estados Unidos, evocam um cenário em que a independência econômica, política e cultural envolvida em um projeto “nacional” sai de cena em favor da reprodução de uma condição próxima da colônia. A mesma preocupação pode ser remetida à argumentação de Celso Furtado (1920-2004), em Formação econômica do Brasil, sobre a importância da internalização dos centros de decisão da economia brasileira. O que se assiste é um processo de fragilização econômica e política do país no cenário internacional, agravado pela alienação de sua independência econômica.
Muito diferentes entre si, em seus trabalhos clássicos, Faoro, Prado Jr. e Furtado chamaram a atenção para a vinculação entre a forma política assumida pelos regimes brasileiros e suas orientações economicamente concentracionistas. Preocupados com a formação nacional, os três autores destacaram as formas pelas quais a pouca influência do “povo” na orientação política do país foi um dos elementos que propiciou a vigência de diretrizes econômicas cujos resultados foram o reforço das estruturas sociais, políticas e culturais que sustentam a abissal desigualdade brasileira. Não é à toa que os três, embora em graus variáveis e de formas distintas, chegaram a sugerir a necessidade de uma ruptura de grande envergadura com o passado brasileiro, como revelam A pré-revolução brasileira (1962), de Celso Furtado, A revolução brasileira (1966), de Caio Prado Júnior, e duas coletâneas de artigos e entrevistas de Raymundo Faoro, e A democracia traída (2008) e A república em transição (2018).
A lista de evocações das análises sobre o Brasil poderia continuar, mas não é o caso. Cumpre indicar que os mencionados clássicos nacionais, como outros, dificilmente fornecem pontos de chegada analíticos para os dias de hoje, dadas as mudanças profundas pelas quais passou a sociedade brasileira. Nem por isso, entretanto, deixam de ser ótimos pontos de partida para pensarmos o país, o que se devem tanto ao fato de terem elaborado análises densas da nossa formação social, cujos resultados foram a formalização de um vasto conjunto de problemas, hipóteses, conceitos, argumentos, perspectivas que nutrem não apenas o imaginário coletivo, mas, sobretudo, são capazes de informar nossas ciências sociais.
Em outras palavras, penso que é bastante razoável sugerir que os clássicos nacionais não terminaram de transmitir as mensagens que guardavam. Em parte, não há dúvidas, isso se deve às suas qualidades analíticas. Entretanto, há também a cumplicidade da própria estrutura social brasileira, reprodutora das desigualdades mais diversas. É ela, em última instância, a responsável por recolocar na ordem do dia as advertências de nossos clássicos.
Referências bibliográficas:
BRITO, Leonardo Octavio Belinelli de Brito. Os dilemas do patrimonialismo brasileiro – as interpretações de Raymundo Faoro e Simon Schwartzman. São Paulo: Alameda Editorial, 2019.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. São Paulo: Globo, 2008.
FAORO, Raymundo. A democracia traída: entrevistas (organização e notas de Maurício Dias). São Paulo: Globo, 2008.
FAORO, Raymundo. A república em transição: poder e direito no cotidiano da democratização brasileira (1982-1988) (organização de Joaquim Falcão e Paulo Augusto Franco). Rio de Janeiro: FGV, 2018.
FERNANDES, Florestan. Prefácio. In: CARDOSO, F.H; IANNI, Octavio. Cor e mobilidade social em Florianópolis – aspectos das relações entre negros e brancos numa comunidade do Brasil meridional. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1960.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. São Paulo: Global, 2006.
FURTADO, Celso. A pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil (edição crítica organizada por Pedro Meira Monteiro e Lilia Moritz Schwarcz). São Paulo: Companhia das Letras, 2016
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira/ A questão agrária no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Populações meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Notas
[i] Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador associado do Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (CEDEC) e editor do blog Boletim Lua Nova.
[ii] Retomo, no presente texto, algumas linhas analíticas sugeridas em “Primeiro como farsa, depois como tragédia”, texto publicado no blog Boletim Lua Nova. Disponível em: https://boletimluanova.org/2019/03/13/primeiro-como-farsa-depois-como-tragedia/. Acesso em:12 de maio de 2019.
[iii]“Post de Carlos Bolsonaro irrita Rodrigo Maia”. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,post-de-carlos-bolsonaro-irrita-rodrigo-maia,70002764293. Acesso em: 6 de maio de 2019.
[iv] “Política em Brasília e o clã Bolsonaro, um caso de família”. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/politica-em-brasilia-e-o-cla-bolsonaro-um-caso-de-familia/. Acesso em: 6 de maio de 2019.
[v] ‘Homofobia de Bolsonaro é da boca para fora’, diz Regina Duarte. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,homofobia-de-bolsonaro-e-da-boca-para-fora-diz-regina-duarte,70002564696. Acessoem: 6 de maio de 2019.
[vi] Sobre o assunto, ver o texto “A revolta conservadora”, de Marcos Nobre. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-revolta-conservadora/. Acesso em: 6 de maio de 2019.
[vii] Por exemplo, conferir o discurso de posse de Joaquim Levy como ministro da Fazenda no segundo governo de Dilma Rousseff (PT). Disponível em: http://www.fazenda.gov.br/noticias/2015/janeiro/discurso-de-posse-do-novo-ministro-da-fazenda-joaquim-levy. Acesso em: 6 de maio de 2019. Levy é o atual presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
[viii] “Quem é Antonio Paim, o filósofo baiano que fez a cabeça do ministro da Educação”. Disponível em: https://epoca.globo.com/quem-antonio-paim-filosofo-baiano-que-fez-cabeca-do-ministro-da-educacao-23361323. Acesso em: 6 de maio de 2019.
[ix] Para uma análise mais detalhada dessa argumentação, ver BRITO, Leonardo Octavio Belinelli de Brito. Os dilemas do patrimonialismo brasileiro – as interpretações de Raymundo Faoro e Simon Schwartzman. São Paulo: Alameda Editorial, 2019.
[x]“O parentesco desastroso para a Educação”. Disponível em:http://www.cartaeducacao.com.br/artigo/o-parentesco-desastroso-para-a-educacao/. Acesso em: 12 de maio.