
No post de hoje da série Pandemia, Cultura e Sociedade o escritor e ensaísta Silviano Santiago contribui com dois poemas. O primeiro, extraído da antologia Tente entender o que tento dizer: POESIA + hiv/aids (2018); o outro, do livro Cheiro forte, publicado pelo autor em 1995. Os textos são acompanhados de uma pequena nota crítica assinada pelo editor da coluna Interpretações do Brasil e Poesia, Lucas van Hombeeck.
A série Pandemia, Cultura e Sociedade é uma parceria do Blog da BVPS com a revista Sociologia & Antropologia (PPGSA/UFRJ). Assine o blog para receber as atualizações e curta nossa página no Facebook.
Boa leitura!
Sim
Para o Ramon
Não há por que esquecê-la,
embora sua chegada seja iminente.
Cata-se a Vida a cada dia.
Ela é a cada dia. É.
Não me sacrifico.
Inquieto-me.
Sorrio como empalideci na
tarde em que soube de supetão da sua chegada iminente.
Às vezes, me deito de costas para o teto do quarto.
Braços estendidos transbordam a largura da cama.
Abrem o corpo em cruz.
Aguardo a iminência.
Como se ela acontecesse já. Já.
Observo-me, sou eu não sendo eu.
Tenho sido sem ter
sido.
Tento ser sem ter
sido.
Não somos todos?
Tudo saber e nada conhecer.
Em céu de brigadeiro
o avião do corpo se desgovernou num átimo de segundo.
Felicidade.
Pergunto à Vida se ainda faz
sentido lhe emprestar sentido.
Responde-me que sim.
[20/09/2017]
No tumulo apedrejado da menina
– epitáfio seu nosso
Não posso, agora, tratar com complacência
nem suavemente tão cruel dor: é preciso
violentá-la.
Sêneca, “Consolação a Márcia”
(Tradução de Clarice van Raij)
compartilho
compartilho a curiosidade pela beleza:
milhares infinitos milhares
minúsculos diamantes em pó
broche brinco pulseira anel
brilham brilhando em luz goiana
planaltina joalheria
no ferro-velho.
quero serem meus todos meus!
os diamantes.
a mão se apossa
o dedo risca pulseira no pulso
colar medalhão no peito
a mão se apossou
morte! Morta
compartilho a morte pela beleza
– não seremos todos?
a morte reparte suas joias
seu corpo comigo vivo vive
compartilho a luz criança
risos alegria chicotinho queimado
compartilho peraltices
de purpurina.
dedos vagalumeando
platina chuveiro de brilhantes
no pescoço pulso orelhas
coquetes vedetes
na frente do espelho
tocha fria olhem olhem!
Minhas joias minha festa
nossa festa compete
com o lusco-fusco das estrelas
com a cauda do cometa
com a luz do sol
compartilho noite e luz, brilho
– não compartilhamos todos?
ainda não!
não pode compartilhar
nada ninguém pode compartilhar.
pesado denso artesanal futurista
madeira de lei três centímetros
placas de chumbo espuma de vidro
em Caxias constroem
em Goiânia o caixão baixa
no túmulo de concreto
laje de concreto lacra
hermética a morte.
a morte não alimenta
terra vermes plantas.
a morte não congrega
nem se distribui
caridosa sábia conselheira
a morte em si mesmada
não movimenta a matéria desmente
a lei de Lavoisier
a morte assassina não
podemos compartilhar, ainda
– não compartilhamos todos
um dia?
Silviano Santiago é poeta, romancista, crítico literário e ensaísta. Autor, dentre outros, de Machado (Companhia das Letras, 2016) e Uma literatura nos trópicos (Cepe, 2019).
Nota crítica, por Lucas van Hombeeck[i]:
O primeiro dos dois poemas de Silviano Santiago publicados hoje, “Sim”, foi retirado de uma antologia construída em torno do tema HIV/Aids. O título da antologia é emprestado de uma crônica de Caio Fernando Abreu, “Tente entender o que tento dizer”, e o organizador é Ramon Nunes Mello, a quem o poema é dedicado. Desse livro, o que podemos aprender como projeto, para além dos seus poemas, é uma forma de construção da convivência na publicação entre múltiplas perspectivas ao redor de um mesmo tema, que atravessa os corpos (e os textos) de diversas maneiras: os poetas estão vivos, sobretudo. E, vivos, não pertencem ou escrevem sobre um “grupo de risco”, porque a comunidade construída na diferença recusa o vocabulário médico ou militar da estigmatização e da política como guerra tão comum nos discursos de combate ou leniência ao coronavírus de hoje. Contra a necropolítica, “Tente entender…” é uma afirmação da vida – alguma coisa que diz sim.
Sobre a morte, de que essa vida por outro lado nunca se desliga, “No túmulo apedrejado da menina” reflete sobre o fascínio diante dos “milhares infinitos milhares / minúsculos diamantes em pó” de Césio, essa “luz goiana” que ilumina outra tragédia brasileira. No poema vêm as imagens de uma menina que brinca com uma máquina de raio-X jogada fora num ferro-velho em Goiânia e de seu caixão hermético, construído em Duque de Caxias. O movimento aqui, já indicado pela epígrafe “Não posso, agora, tratar com complacência / nem suavemente tão cruel dor: é preciso / violentá-la” atua no sentido oposto da gestão do medo pela justificação das mortes em grupos de risco, pela divulgação das imagens heroicas dos trabalhadores da saúde bem paramentados ou pela despersonalização dos dados estatísticos já apontados por Sabrina Parracho Sant’Anna nessa mesma coluna. Em seu movimento de violentar a dor, o poema talvez possa ser lido como uma crítica a essas imagens feita não da parte de um capitalismo sem peias ou de um totalitarismo genocida, mas de versos que rompem o silêncio em que nos encontramos acompanhando as notícias em isolamento para perguntar sobre os fundamentos sociais da legitimidade dessa gestão do medo e da morte que nos inclui na experiência de um Estado autofágico. Afinal, se como aponta Freud, mesmo a auto-destruição da pessoa não pode ser feita sem satisfação libidinal, a humilhação diante da beleza mortal do Césio recoloca as perguntas sobre o porquê da humanidade se prestar a assistir à própria destruição com prazer estético, como pôde ver Walter Benjamin. O cultivo da revolta contra a morte que nos é empurrada a seco precisa enfrentar esse nó, e suas raízes na cultura brasileira, para poder seguir sua vocação de superação do estado atual de coisas. Agradecemos a Silviano Santiago por compartilhar conosco sua contribuição para a tarefa.
[i] Doutorando em Sociologia no PPGSA/IFCS-UFRJ.
A imagem que ilustra o post é:
Vasily Kandinsky. Black Lines (Schwarze Linien), 1913. Óleo sobre tela. 129.5 x 131.1 cm. Solomon R. Guggenheim Museum
* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da BVPS.
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