No post de hoje, a coluna Interpretações do Brasil e poéticas publica um texto do poeta e ensaísta Tarso de Melo sobre o papel do rap na formação política de lideranças das novas lutas contra a precarização do trabalho e em especial de Paulo Lima, o Galo.
No ensaio, que reconstitui falas da liderança dos Entregadores Antifascistas lado a lado com versos do rap paulista, com destaque para os Racionais MCs, fica evidente o papel de reflexividade social da arte e suas consequências políticas para o caso analisado. Como escreve o autor a respeito da poesia de Mano Brown, “quanto daquelas letras é retirado das ruas e devolvido com mais intensidade para a fala da quebrada?”. A técnica lembra aquela proposta por Brecht a seus atores e descrita por Roberto Schwarz no ensaio “Cultura e política 1964-1969”:
nalguma parte Brecht recomenda aos atores que recolham e analisem os melhores gestos que puderem observar, para aperfeiçoar e devolvê-los ao povo, de onde vieram. A premissa deste argumento, em que arte e vida estão conciliadas, é que o gesto exista no palco assim como fora dele, que a razão de seu acerto não esteja somente na forma teatral que o sustenta. O que é bom na vida aviva o palco, e vice-versa. Ora, se a forma artística deixa de ser o nervo exclusivo do conjunto, é que ela aceita os efeitos da estrutura social (ou de um movimento) – a que não mais se opõe no essencial – como equivalentes aos seus.
A relação entre vida e arte está, assim, inscrita numa dinâmica de dupla hermenêutica (para recuperar o termo da teoria da reflexividade de Anthony Giddens): o rap lê o mundo que lê o rap.
Além do texto de hoje, aproveitamos para relembrar que o Blog da BVPS publicou na coluna Interpretações do Brasil e musicalidades uma entrevista em duas partes (que podem ser lidas aqui e aqui) com Acauam Oliveira, autor da introdução de Sobrevivendo no Inferno (Companhia das Letras, 2018), feita por Pedro Cazes.
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Boa leitura!
O rap, o breque e os apps: a fúria negra ressuscita outra vez
por Tarso de Melo [i]
“O primeiro trabalhador que acordou e disse: hoje vou trocar uma ideia com meu patrão e dizer pra ele que tenho direito a descansar 30 dias por ano e o nome disso vai ser férias”. É tentando imaginar quem foi esse trabalhador – seu irmão, seu igual, seu mano – e colocando-se numa linha histórica que vem desse primeiro embate até o mundo dos aplicativos, quando “uma pandemia intensificou o pandemônio”, que Paulo Lima, o Galo, tem protagonizado o debate sobre a luta dos trabalhadores neste ano em que poucos esperavam que teríamos espaço para qualquer assunto que não fosse o vírus: o pesadelo do verme e o sonho da vacina.
Galo tem 31 anos, nasceu e vive na periferia de São Paulo, e não tem tempo a perder. Não caiu na conversa de que todos são iguais diante da pandemia. Sempre soube que fazia parte daqueles que atravessariam a pandemia “entregando comida e passando fome”. Então sacou o mesmo aparelho eletrônico que usa para trabalhar e começou a luta, “dando a ideia” sobre reivindicações urgentes dos entregadores – máscara, álcool gel, refeições, proteção contra acidentes. Galo viralizou. E começou assim sua jornada como “político de rua”, colocando na capa dos jornais e portais a bandeira dos Entregadores Antifascistas, sem deixar dúvida de que o sofrimento causado pela uberização é a nova forma assumida pelo capitalismo e, portanto, é preciso enfrentá-lo em toda sua extensão: racista, machista, fascista.
Quando outras câmeras e microfones chegaram perto de Galo, por mais que ele mesmo não queira se colocar como liderança ou porta-voz do movimento coletivo, não demorou para que se tornasse “um rapaz latino-americano apoiado por mais de 50 mil manos”. Galo fala bem, fala forte, domina a comunicação. É claro, combativo e, de quebra, divertido. Não é surpresa alguma que esteja diariamente em duas ou três entrevistas, para os mais variados veículos (das lives com outros trabalhadores de todo o Brasil até os telejornais da imprensa hegemônica), porque o discurso de Galo organiza uma revolta que vai muito além de sua própria condição e dos demais entregadores. A cada aparição pública fica mais evidente que Galo fala por uma classe trabalhadora que, não apenas em cima de motos e bicicletas, já sofre os efeitos dessa forma de hiperexploração de mão de obra e descarte de vidas, mas também por aqueles que ainda não foram atingidos pela uberização, mas serão – se não lutarem muito.
A fala de Galo convoca para essa luta de todos os trabalhadores: “não sou entregador, sou trabalhador” (as citações que faço aqui são retiradas de muitas entrevistas e conversas espalhadas pelas redes). É muito interessante acompanhar como, em tão pouco tempo, o discurso de Galo tem-se ampliado para dar conta das diversas questões trazidas não apenas pelos seus entrevistadores e interlocutores, mas pela própria complexidade de sua luta, que é uma luta contra o capital e seus tentáculos. Quanto maior ficou o enfrentamento, maior e mais consciente ele se mostrou, argumentando sempre a partir de um núcleo muito coeso de ideias, de palavras, de compromissos políticos. Lendo e ouvindo Galo diariamente, minha intuição sobre a natureza dessa postura foi ficando mais clara: é filho do rap.
Tudo que o Galo falava me lembrava algo que já tinha ouvido. No início, nas primeiras vezes que ouvi suas falas, achei que era coisa do meu ouvido viciado em rap, da minha memória contaminada demais pelos Racionais MC’s. Mas a coisa foi ficando cada vez mais forte. Galo articula suas ideias com a clareza papo-reto das letras de rap e, quanto mais é convocado a falar, mais tem oportunidade de costurar suas ideias com aquilo que aprendeu nos discos de rap, em especial dos Racionais. Já era possível ouvir essa força atravessando sua voz quando ele disse “assumi uma luta que não está fácil, mas não deixei de ser um rapaz comum”, mas ainda mais quando disse que “o ser humano é descartável no Brasil”. Sobe o som.
Numa de suas entrevistas, a jornalista pergunta de onde vem sua formação política e Galo nem deixa terminar: “do rap, minha escola política foi o hip-hop, eu sou uma das crianças do hip-hop que amadureceu […] e você vai se surpreender quando mais crianças do hip-hop começar a aparecer por aí. Nós vamos mudar o mundo mesmo”. Galo fala de Marx, George Orwell, Paulo Freire, Zapata, Malcolm X, Marighella, Gandhi, conta histórias de sua vida, fala do amor pela filha, da violência atingindo sua família, diz que “troca ideia com Deus, Marx e Lênin” em seus sonhos acordados, mas o que costura todas essas ideias – dando as palavras e o ritmo para sua fala – é o rap. Os Racionais, mais do que qualquer outro grupo de rap brasileiro, ensinam a olhar de modo diferente para a realidade e, no mesmo pacote, vem uma linguagem capaz de dar conta dessa nova visão de mundo. A fala do Galo vem daí.
Um dos aspectos da poesia dos Racionais que mais me inquietam é a forma como a linguagem se mostra e reinventa nas suas letras. Quanto daquelas letras é retirado das ruas e devolvido com mais intensidade para a fala da quebrada? Quanto elas inventam e lançam dos discos para a boca do povo? As gírias, por exemplo, que são diferentes a cada disco, me dão a impressão de que fazem esse trânsito: ora são trazidas da rua para dentro das letras, ora saltam das letras para as ruas. Seria preciso investigar isso com muita profundidade, mas o mais importante é notar que, nesse trânsito, as letras dos Racionais empoderam.
Nos 30 anos de carreira do grupo, já tínhamos muitos exemplos de “vidas salvas pelo rap”. Rappers do Brasil inteiro confirmam isso, mas é algo que obviamente não se restringe a eles. São gerações de jovens formados para se orgulharem e lutarem pelo seu lugar no mundo, fazendo arte ou, mais ainda, em qualquer outro trabalho. Galo repete sempre que “os Entregadores Antifascistas são um movimento de empoderamento dos trabalhadores”. E podemos dizer: se Galo hoje empodera, é porque foi empoderado pelas letras dos Racionais.
Não é apenas uma incorporação das letras do rap em seu discurso, mas algo muito mais profundo, uma verdadeira transformação dos jovens crescidos nas periferias do país nas últimas décadas, que as palavras do rap promoveram e as de Galo confirmam. Por isso, Galo se apresenta como “um dos filhos do hip-hop”: “eu sou um doido que quer mudar o mundo e quer encontrar outros doidos pra mudar o mundo”. Com outras palavras, os Racionais estão cantando essa ideia desde os anos 1980: “eu tenho uma missão e não vou parar”. Taí.
Em “Vida loka II”, um dos hinos de luta e superação dos Racionais, Mano Brown canta: “eu sempre quis um lugar/ gramado e limpo, verde como o mar/ cercas brancas, uma seringueira com balança/ disbicando pipa, cercado de criança”. É para esse horizonte que a luta de Galo olha, nada menos que isso. Em diversas entrevistas, aliás, Galo fala que sua filha adora ver pipas no céu e que não troca por dinheiro a felicidade desse momento.
Mas nem sempre Galo encontra “outros doidos pra mudar o mundo”, obviamente. A resistência a suas ideias é forte mesmo entre os demais entregadores, que se identificam com a ideologia do empreendedorismo e da “liberdade” do trabalho nos aplicativos. Conta que, desde o início do movimento, já ouviu dizer que é “um ator contratado pelo Intercept para falar de comunismo”, um petista infiltrado, alguém que deve ir para Cuba… “Os caras falam que eu quero ser o Lula. Estão me vendo errado. Eu quero ser o Paulo Freire. Na verdade, eu quero mesmo é ser o Mano Brown. Mas tudo bem ser o Paulo Freire”.
Essas adversidades, no entanto, não diminuem a empolgação de Galo, afinal “nós é sobrevivente do inferno mesmo”. E outro combustível importante para a luta de Galo tem vindo das redes reais que estão se formando a partir de sua exposição nas redes sociais. O movimento hoje não apenas tem grupos em várias cidades espalhadas pelo país, mas há uma comunicação constante entre eles para troca de experiências e definição de ações conjuntas.
Nesse sentido, Galo afirma que uma de suas maiores alegrias foi perceber, nessas conversas, que ele era “o mais burro de todos”. Galo se define como alguém que é “igual aos Racionais dos anos 90: tenho algo a dizer e explicar pra você”, então foi para essas conversas com entregadores de outros estados pensando “preciso ensinar a ideologia da coisa”. Logo percebeu que não precisava conscientizar ninguém. Arrisco uma hipótese: o rap já tinha feito boa parte desse trabalho. “Periferia é periferia em qualquer lugar”, como cantam os Racionais. E todos esses “galos” por aí, movidos pelas mesmas ideias e colocados diante dos mesmos desafios, buscam formas de reunir para fortalecer (não vou citar os versos do João Cabral sobre galos e manhãs, porque já devem estar na cabeça de vocês aí…).
Quando Galo diz “eu sou pretensioso pra caramba”, é impossível não ouvir o eco do Mano Brown convocando seus irmãos para se tornarem “a revolução em pessoa”. Dias atrás, outro grande poeta do rap, Emicida, disse: “O hip-hop é a luta constante de melhoria pra todo mundo”. Já faz um bom tempo que ele canta: “o rap salvou mais moleque do que qualquer projeto social”. Galo é um desses moleques salvos pelo rap e agora está encontrando vários outros manos e minas assim pelo Brasil, alguns milhões de brasileiros que ouviram “Negro drama” e querem cantar: “eu vim da selva, sou leão, sou demais pro seu quintal”. A luta vai ser longa, mas, como canta Mano Brown, “é só questão de tempo o fim do sofrimento”. Galo, a seu modo, sintetiza: “a luta não é miojo, não fica pronta em 5 minutos”.
[i] Tarso de Melo (1976) é poeta e ensaísta, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É autor de Rastros: antologia poética 1999-2018 (martelo, 2019), entre diversos livros.
A imagem que ilustra o post é
foto de Renato Maretti e Julia Thompson para El País, postada no instagram @galodelutaoficial com a legenda “Abaporu”. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CCoeD_-M6xp/
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