O Blog da BVPS inicia hoje mais uma seção, Interpretações do Brasil e poéticas, com curadoria de Lucas van Hombeeck, mestrando do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. O post de hoje traz uma breve apresentação da coluna, feita pelo organizador, e também o primeiro texto, “A educação pela prática da linguagem: uma chance pedagógico-filológica na poesia de João Cabral de Melo Neto e na filosofia de Paulo Freire”, escrito por Rafael Zacca, poeta, crítico literário e professor de teoria literária na UFRJ.
Lembramos aos leitores do Blog que “Interpretações do Brasil e poéticas” é nossa quarta coluna, ao lado de “Interpretações do Brasil e política”, coordenada por Leonardo Belinelli (USP), “Interpretações do Brasil e musicalidades”, sob a coordenação de Pedro Cazes (CPII e IESP/UERJ) e “Arte e sociedade”, com curadoria de Sabrina Parracho Sant’Anna (UFRRJ).
Aproveitamos para também recomendar que sigam nossa página no Facebook: https://www.facebook.com/blogBVPS/
Uma boa leitura!
***
Essa nova seção do blog da BVPS quer ser um espaço em que se cruzam perspectivas sobre as relações entre literatura e sociedade pensadas a partir do Brasil e da América Latina. Com isso queremos saber o que do social pode ser lido na literatura e vice-versa, quais elementos de interesse sociológico são codificados nessas formas, e como elas podem ser posicionadas entre os textos conhecidos como interpretações do Brasil. Assim ampliamos o repertório da análise do pensamento social para outros gêneros, fazendo a eles as perguntas tradicionais da disciplina sem deixar de escutar aquelas que eles nos fazem. São as sociologias da literatura, em suas diferentes abordagens e conceitos de “sociedade”, “sociologia” e “literatura” que nos interessam aqui, passando do tradicional paradigma do reflexo a outro em que os pólos da relação literatura-sociedade não sejam considerados universos acabados ou externos um ao outro. A aposta é de que arte é pensamento, até quando não é, que a literatura é uma coisa que se faz com as mãos, que a poesia é “um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas”, é “uma coisa que voa”. Para construir esse espaço, vamos ter a ajuda de crític_s, pesquisador_s e artist_s de diferentes áreas e formações em posts e entrevistas, reforçando a vocação transdisciplinar da nossa tarefa e articulando temas como poesia e sociedade, cultura e política, crítica e crise, corpo e sentido, por aí. Vamos conversar.
Lucas van Hombeeck
***
A educação pela prática da linguagem: uma chance pedagógico-filológica na poesia de João Cabral de Melo Neto e na filosofia de Paulo Freire
Por Rafael Zacca[i]
Entre os tesouros que a cultura de nosso país desenterra, encontra-se a promessa de um convívio pedagógico entre pessoas e coisas pela linguagem. A esse propósito, há uma curiosa afinidade entre alguma tradição poética e alguma tradição pedagógica no Brasil. É o que se manifesta com força nos projetos de João Cabral de Melo Neto e de Paulo Freire. No primeiro, a experiência da língua é uma experiência pedagógica de compartilhamento de saberes entre coisas e de reconhecimento da alteridade; no segundo, a partilha entre educadores e educandos é, necessariamente, uma partilha de expressões de si e do outro, semelhante ao que ocorre na filosofia Ubuntu que postula uma ontologia do ser social a partir do pressuposto “eu sou porque nós somos”. Essa experiência poético-pedagógica não é exclusiva de Cabral e Freire – eles apenas visibilizam um Brasil que ainda não pôde vir a ser em sua plena potência linguística-educadora, mas que conhece alguns lampejos em práticas insistentemente interrompidas por projetos autoritários (como a alfabetização pelo método Paulo Freire foi atacada durante a Ditadura Militar, assim como hoje o nome do pedagogo é alvo da retórica bolsonarista).
As práticas artístico-pedagógicas que se desenvolvem há mais de meio século no Brasil fazem parte dessa tradição. É curiosa a coincidência dos momentos de ascensão das oficinas não apenas literárias como artísticas em geral (no Brasil essa tendência teve um dos momentos de consolidação, por exemplo, no momento pré-ditadura militar, entre 1962 e 1964, com os Centros Populares de Cultura da UNE) com o surgimento da Educação pela pedra (1966) de João Cabral de Melo Neto. Se no caso das oficinas de poesia temos uma tendência de formação (dos escritores e dos leitores) para o poema, no livro de João Cabral vemos uma educação do poema (aludida desde o título da obra) pelas coisas. No texto que dá título ao livro, “Educação pela pedra”, isso se configura tanto na lição da pedra-em-si (“para aprender da pedra, frequentá-la / captar sua voz inenfática, impessoal / (pela de dicção ela começa as aulas)”), quanto no pré-didatismo da pedra-no-Sertão (“lá não se aprende a pedra: lá a pedra / uma pedra de nascença, entranha a alma”).[ii] Contemporâneo da Educação como prática da liberdade (1967), de Paulo Freire, esse projeto de João Cabral de um aprendizado do poema (e do poeta) com as coisas chega à sua forma mais bem realizada em A escola das facas (1980), com a esperança de que haja, no poema, uma educação das coisas pelas coisas.
O alísio ao chegar ao Nordeste
baixa em coqueirais, canaviais;
cursando as folhas laminadas,
se afia em peixeiras, punhais.
Por isso, sobrevoada a Mata,
suas mãos, antes fêmeas, redondas,
ganham a fome e o dente da faca
com que sobrevoa outras zonas.
O coqueiro e a cana lhe ensinam,
sem pedra-mó, mas faca a faca,
como voar o Agreste e o Sertão:
mão cortante e desembainhada.
O poema é uma espécie de lugar comum em que acontecem a poesia e as próprias coisas, em sua essência, a partir de relações de ensino-aprendizagem das palavras e dos “objetos”. O que o vento alísio aprende nas folhas laminadas, quer dizer, cursando as folhas laminadas, nesse duplo sentido que tem para nós a palavra e o verbo “cursar”, se revela como uma pedagogia entre coisas. Vento, folhas, coqueiral, cana. Mas as coisas estão saturadas de relações humanas: o coqueiro e a cana, que cortam, ensinam o corte ao vento, porque o Agreste e o Sertão aprenderam o modo de existência da “mão cortante e desembainhada”. É possível perceber uma espécie de solidariedade entre essa colocação poética e a filosofia do inacabamento de Paulo Freire, para quem tanto mundo quanto seres humanos estão em estado de permanente acabamento a partir de relações de ensino-aprendizagem.[iii] Por isso ensinar exige consciência do inacabamento essencial dos seres humanos (e das coisas):
Aqui chegamos ao ponto de que devêssemos ter partido. O do inacabamento do ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou a sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se tornou consciente.[iv]
Assim como a pedra-no-Sertão da “Educação pela pedra”, nas palavras do poeta, “entranha a alma”, também o método Paulo Freire pressupõe uma construção imanente do conhecimento. O modo de funcionamento das palavras geradoras no método de alfabetização, por exemplo, é análogo ao modo existencial das palavras em João Cabral, com a sua pedagogia do dentro para fora. Assim como as cartilhas de leitura surgem a partir das colocações do próprio educando,[v] também as propriedades poéticas de um elemento de comparação, nos poemas “pedagógicos” de João Cabral, se desdobram de um universo lexical desdobrado lentamente dos outros elementos convocados.
É o que podemos chamar de vocação, ou chance, pedagógica da linguagem na cultura brasileira. Não se trata de defender aqui que a linguagem possa humanizar ninguém, nem sequer de destacar um papel redentor dos poemas ou das práticas de alfabetização. Trata-se, antes, de destacar que há, talvez, em nossa cultura, possibilidades de ensino-aprendizagem (entre pessoas e poemas, entre poemas e coisas, entre pessoas e coisas, entre coisas e coisas e, por fim, entre pessoas e pessoas) na linguagem. Nesse sentido, a língua se torna uma espécie de redução ontológica que transforma tudo aquilo que é dito e que diz (pessoas, coisas, poemas) em sujeito. Todas as relações (frequentemente estabelecidas na forma sujeito-objeto) passam a tomar o aspecto sujeito-sujeito. Essas possibilidades não apontam meramente para um uso instrumental da língua (como se pudéssemos, com a ajuda da linguagem, ingressar em relações desse tipo), mas sim para algo que poderíamos definir como uma pedagogia filológica.
Um tal aprendizado na linguagem, e não por meio dela, parece implicar também, tanto em João Cabral quanto em Paulo Freire, um reconhecimento da alteridade. Com isso, as relações de ensino-aprendizagem na linguagem exigem um método dialógico. Em Paulo Freire, esse método parte da colaboração entre os diferentes que ad-miram e pronunciam o mundo.[vi] Em João Cabral, por outro lado, tal exigência encontra seu grau máximo em “O mar e o canavial”, de A escola das facas, em que se reconhece, nas relações de ensino-aprendizagem entre coisas, o que se pode e o que não se pode aprender um com o outro (é preciso reparar, ainda, como a própria disposição dos poemas de A escola das facas é dialógica, com o espelhamento das estrofes-poemas e dos elementos, bem como com as inversões lógicas):
O que o mar sim aprende do canavial:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos.
O que o mar não aprende do canavial:
a veemência passional da preamar;
a mão-de-pilão das ondas na areia,
moída e miúda, pilada do que pilar.
*
O que o canavial sim aprende do mar:
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial não aprende do mar:
o desmedido do derramar-se da cana;
o comedimento do latifúndio do mar,
que menos lastradamente se derrama.
[i] Poeta e crítico literário. Professor de Teoria Literária na UFRJ. Doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária na Coart/UERJ. Publicou Mini Marx (7Letras), Mega Mao (Caju) e A estreita artéria das coisas (Garupa). É co-autor do livro de criação literária feito a 20 mãos, Almanaque Rebolado. Colabora com o Jornal Rascunho e com a Revista Escamandro.
[ii] Os poemas de João Cabral citados aqui estão em MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1995.
[iii]FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e terra, 1996. pp. 50-55.
[iv]Ibid, p. 55.
[v]BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é método Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 1981. Cf. também FREIRE, Paulo. A experiência do MOVA. SP/ Brasil. Ministério da Educação e Desporto. Instituto Paulo Freire; Organização de Moacir Gadotti. São Paulo, 1996.
[vi]Cf. o prefácio de Ernani Maria Fiori em FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.