
No post de hoje, o Blog da BVPS publica uma entrevista com Wander Melo Miranda a respeito de sua tradução de A loucura de Hölderlin – crônica de uma vida habitante 1806-1843, de Giorgio Agamben. Escrito nos primeiros dois anos da epidemia de covid-19, o livro trata da reclusão voluntária do poeta Hölderlin na casa do marceneiro Zimmer de 1807 a 1843, dos 36 aos 72 anos, numa forma extrema e paradoxal de manter corpo e mente livres e sãos, vivendo o que o filósofo chama de uma “vida habitante”.
Além da entrevista, trazemos também uma nota sobre a edição francesa do livro e um resumo em português junto com o link para a página do volume no site da Editora Âyiné.
1. Quais foram os desafios de traduzir um texto filosófico do italiano para o português? Que questão específica ela te trouxe enquanto tradutor?
A principal dificuldade é manter o regime conceitual do filósofo adequadamente na língua de chegada e com a fluidez necessária para que a leitura do texto traduzido se faça sem muitos percalços. Mas como tenho certa familiaridade com a obra de Agamben, não foi muito difícil manter na tradução o espírito do original.
2. São conhecidas as discussões na teoria da tradução em torno do par tradução-traição e do problema da fidelidade na passagem do texto de uma língua a outra. Você poderia nos contar de que maneira esses problemas se fizeram presentes na sua prática e em que medida princípios como a fidelidade ou a inventividade participaram do seu processo de trabalho?
A tradução ao pé da letra muitas vezes, ou na maioria dos casos, acaba por dar uma noção pouco exata do texto, além de tornar o texto traduzido pouco fluente ou estranho ao regime da língua do tradutor. Trair às vezes, para ser mais fiel, pode ser uma boa saída para o impasse da equação traduttore-traditore. Mesmo que os detalhes importem – e importam muito – deve-se buscar o sentido geral mais fiel possível ao pensamento do autor, o que exige uma compreensão o mais ampla possível do texto a ser traduzido.
3. De que maneira você posiciona este livro dentro da obra de Giorgio Agamben? E dentro da bibliografia em torno da relação corpo-escrita?
O livro foi escrito nos primeiros dois anos da epidemia de covid-19. Trata da reclusão voluntária de Hölderlin na casa do marceneiro Zimmer de 1807 a 1843, dos 36 aos 72 anos, tido como louco. Para Agamben, trata-se de uma forma extrema e paradoxal de o poeta manter corpo e mente livres e sãos, para poder viver uma “vida habitante”. Para dar conta dela, a história como a concebemos não é capaz, mas a crônica sim, o que faz o filósofo ao reproduzir cartas trocadas pelo poeta, narrativas de eventuais visitantes, poemas escritos nesse período etc. Não é uma biografia, mas uma reflexão, mediada pela vida do poeta, sobre a liberdade e a relação inseparável entre corpo e escrita, sobre a escrita e sua inscrição no(s) corpo(s) do(s) sujeito(s), a relação mútua entre um e outro. É um tema caro a Agamben e presente em sua obra – o pensamento como poesia indissociável do corpo como lugar onde, afinal, ele se materializa: o corpo-escrita. Talvez seja essa a mais bela poesia de Hölderlin.

A vida de Hölderlin divide-se exatamente em duas metades: os 36 anos de 1770 a 1806 e os 36 anos de 1807 a 1843, que transcorre como louco na casa do marceneiro Zimmer. Se na primeira metade o poeta vive no mundo e participa na medida das suas forças dos acontecimentos do seu tempo, a segunda metade da sua existência é transcorrida de todo fora do mundo, como se, apesar das visitas esporádicas que recebe, um muro a separasse de qualquer relação com os eventos externos. Por razões que talvez fiquem ao final claras para quem lê, Hölderlin decidiu eliminar todo caráter histórico e social das ações e dos gestos da sua vida. Segundo o testemunho de seu mais antigo biógrafo, ele repetia obstinadamente “não me acontece nada”. Sua vida pode apenas ser objeto de crônica, não de uma biografia e muito menos de uma análise clínica ou psicológica. E, no entanto, a hipótese do livro é que, desse modo, Hölderlin deu à humanidade uma outra, inédita figura da vida, cujo significado genuinamente político resta ainda a medir, mas nos diz respeito de perto. “A vida habitante de Hölderlin neutraliza a oposição entre público e privado, faz com que coincidam sem síntese numa posição de paralização. Nesse sentido, sua vida habitante, nem privada nem pública, constitui talvez o legado propriamente político que o poeta dá ao pensamento. Também nisso está próximo de nós, a nós que da distinção entre as duas esferas não sabemos mais nada. A sua vida é uma profecia de algo que seu tempo não podia de nenhum modo pensar sem ultrapassar os limites da loucura.