Ocupação Mulheres 2023 | Fugas reais e metafóricas, por Lilia Schwarcz

Na primeira atualização de hoje da Ocupação Mulheres 2023, série de matérias sobre mulheres intelectuais, gênero, feminismos e temas afins, divulgamos um texto publicado no Nexo Jornal por Lilia Schwarcz, professora da USP e da Universidade de Princeton, no qual analisa como a fuga se constituiu em um expediente recorrente durante a escravidão, e como não parecia desavisado imaginar uma família constituída a partir da liderança de uma mãe.

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Boa leitura!


Fugas reais e metafóricas

Por Lilia Schwarcz

O artista francês François-Auguste Biard (1799-1882), numa famosa tela chamada Fuga de escravos, fez uma representação pujante de uma família matriarcal em fuga — são sete mulheres e dois rapazes —, carregando trouxas com suas roupas e parte de suas economias. O pintor francês oferecia uma representação na qual a fuga não era apenas e tão somente uma reação aos castigos ou idealizada por escravizados rebeldes. Na imagem reconhecemos também projetos, planos e estratégias, muitas vezes executadas por cativas, em especial mães, que temiam sempre serem separadas de sua prole e arriscavam de tudo para mantê-la unida.

A tela de Biard continua, porém, envolta por uma série de segredos. Não sabemos quem eram essas pessoas e tampouco se o desenho é original. Há quem diga que teria sido inspirada ou inspirara a obra de Theodore Kaufmann (1814-1896) On to Liberty, realizada no período final da escravidão nos Estados Unidos. Como se pode ver acima, os dois quadros são basicamente idênticos, variando apenas as padronagens das roupas e o destino final. No primeiro caso, o objetivo parece ser alcançar as matas fechadas do Brasil, onde os fugitivos poderiam aderir a um mocambo ou a um quilombo, e neles encontrar proteção. Já no segundo, além do artista incluir uma família à frente, também constituída matrilinearmente, mostrando (quem sabe) como as fugas não eram apenas casos isolados e individuais, o ponto final – indicado pela bandeira norte-americana – é o Norte livre da escravidão e dos confederados.

Não há como desempatar essa partida e verificar quem copiou quem, ou até se ambos copiaram um outro documento. O que importa é destacar que, tanto no Brasil, como nos EUA, a fuga se constituiu num expediente recorrente, e como não parecia desavisado imaginar uma família constituída a partir da liderança de uma mãe. 

De toda maneira, vai ficando cada vez mais claro como não se fugia de uma hora para outra e sem planejamento prévio. Durante muito tempo, a historiografia deu pouco destaque às fugas dos escravos, que costumavam ser apresentadas como atos repetitivos — um tanto banalizados — de resistência, quase sem sentido político. O fugitivo era visto como alguém simplesmente “inadaptado”, extenuado pela carga de trabalho e pelas condições de vida a ele impostas, e que de repente se desgarrava da propriedade em que trabalhava e de sua família. Sua meta seria apenas evadir-se do domínio senhorial.

Crioulo fugido: desde o dia 18 de outubro de 1854, de nome Fortunato: RS 50U000 de Alviçaras. Rio de Janeiro: Laemmert. 1854. Cartaz, 25.5 x 16 cm. Acervo Fundação Biblioteca Nacional

É isso que demonstra essa figura convencional, e muito presentes nos jornais brasileiros Oitocentistas, que apresentam um escravo solitário e que, romanticamente, se evadia com sua pequena trouxa. 

Mas a fuga era uma ação única e precisava ser muito bem calculada. Por isso, era vivenciada de modo diferente por cada escravizado. A trajetória de Damásia, que viveu na vila de Castro entre as províncias de São Paulo e do Paraná, mistura aventura, tragédia, esperança e dor. Ela deve ter nascido em 1830, possivelmente filha de africanos trazidos por tropeiros, passando por Sorocaba. Em 1850, Damásia era cativa de Inácia Maria. Com apenas vinte anos, era mãe do “pequeno João”. Ela resolveu, então, fugir com o seu filho e, para isso, estabeleceu estratégias.

Escolheu a noite do dia 12 de abril de 1850 acreditando que demorariam para dar por sua falta. Na manhã seguinte, Damásia já começou a ser perseguida por capitães-do-mato e capangas da fazenda. Acabou capturada dias depois. Em interrogatórios posteriores, Damásia revelou seus planos: “tomou os caminhos dos matos na direção por onde seguia o rio Iapó e emaranhou-se mata adentro e por lá ficou com o filho João”.

Damásia sabia que a fuga tinha várias etapas. A primeira era evitar a imediata captura, permanecendo escondida em algum lugar. Depois era preciso procurar ajuda; podia ser empregada numa fazenda ou vila, talvez se passando por alguém livre. Caminhando pelas matas da região aconteceu, porém, uma tragédia. Seu filho João acabou sendo picado por uma cobra peçonhenta. Em desespero, Damásia “com o coração doendo lançou o corpo do menino João já sem vida no rio Iapó e dirigiu rumo à cidade”.

Ao que parece, tinha desistido da fuga quando foi capturada sozinha. Ela estava voltando para a casa da sua senhora. Com a notícia da morte de seu filho, as autoridades foram acionadas para efetuar buscas no rio Iapó, tentando encontrar o corpo da criança. Mais tarde o “cadáver do menino foi localizado em estado de decomposição nas águas do rio Iapó”, e Damásia foi julgada por promover a morte de seu filho, atirando-o ao rio.

Não foram incomuns as acusações de infanticídio contra escravizadas que matavam seus filhos, impedindo que fossem vendidos, arrancados de seus braços e transformados em cativos. As investigações contra Damásia duraram meses. Tentava-se saber as razões de sua fuga e os motivos do suposto infanticídio. O tempo todo Damásia garantiu que a morte do seu filho tinha sido mesmo uma tragédia, ocorrida por causa de uma picada de cobra quando desbravava as matas, na tentativa de se afastar o mais rápido possível da casa da proprietária de nome Inácia.

No fim do processo, as próprias autoridades avaliaram que Damásia não tinha premeditado a morte do filho nem o jogado de propósito no rio. Ela só havia tomado essa decisão por puro desespero, ao perceber que ele já estava morto. Paradoxalmente, alegavam ter percebido que Damásia ainda “sofria de sentimentos de humanidade”, por causa de sua reação diante da morte do seu filho.

Para Damásia, o sonho de liberdade não era uma fuga heroica, mas sim uma saída planejada com o intuito de permanecer com o filho, vendo-o crescer sem as ameaças constantes de venda e de separação.

Em 1906, Machado de Assis publicou o conto “Pai contra mãe”, que foi incluído em seu livro Relíquias de casa velha. Já haviam passado dezoito anos desde o fim da escravidão, e ele parecia querer ironizar os ofícios e dilemas morais que aquela sociedade criara e que talvez não tivessem desaparecido apenas por efeito da lei. Já não existiam escravizados fugidos e seus perseguidores, mas mães e pais aflitos. No seu drama literário — numa data fictícia da década de 1850 —, o protagonista leva o nome de Cândido Neves, um homem “branco” muito empobrecido que estava prestes a entregar seu filho recém-nascido à roda dos expostos, uma vez que não tinha condições de mantê-lo. Para conseguir mais recursos, resolveu atuar como perseguidor de escravos fugitivos, apelando para os anúncios que abundavam na imprensa carioca urbana. Selecionou então o caso de Arminda, escravizada nascida no Brasil, que tinha fugido exatamente por estar grávida.

Não é o caso de contar o terrível desenlace do conto. Basta chamar a atenção como a fuga de mulheres escravizadas, como forma de proteger o filho ou a filha do cativeiro, era uma realidade tanto no mundo da ficção e das artes, como na vida cotidiana. Triste velho novo mundo. 

Observação

A pesquisa sobre as telas de Biard e Kaufmann foi realizada em conjunto com Lúcia Stumpf. Já a investigação sobre o caso de Damásia é parte da Enciclopédia negra que escrevi em co-autoria com Flávio Gomes e Jaime Lauriano.

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