
Em nova atualização da Ocupação Mulheres 2023, série de matérias sobre mulheres intelectuais, gênero, feminismos e temas afins, publicamos uma nota de pesquisa sobre desigualdade de gênero escrita por Felícia Picanço, professora de sociologia da UFRJ e Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Diferenças, Desigualdades e Estratificação (LeDdE). A nota apresenta alguns elementos do processo de estruturação e reprodução das desigualdades de gênero, com foco na distribuição do trabalho doméstico e de cuidados na família.
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Boa leitura!
As múltiplas faces da desigualdade de gênero, nota de uma agenda de pesquisa
Por Felícia Picanço
Diferentes agências multilaterais estimam que a redução das desigualdades de gênero e de raça acarretaria melhoria de diversos indicadores sociais e econômicos. É consenso que as saídas para a inovação, crescimento e desenvolvimento econômico e social só é possível através da ampliação da incorporação dos grupos sociais em desvantagens socioeconômicas ou sub-representados no sistema educacional, nas áreas de ciências, tecnologia e matemática, no mercado de trabalho e nos postos de trabalho de maior prestígio social e mais bem remunerados.
As imbricações de gênero, raça e classe são elementos centrais na compreensão das diferentes faces das desigualdades contemporâneas e na construção de mecanismos de enfrentamento das mesmas. Nesta nota de pesquisa, vamos pincelar alguns elementos centrais do processo de estruturação e reprodução das desigualdades de gênero, sem que, com isso, estejamos imputando qualquer primazia.
Um dos aspectos fundamentais para a compreensão de como as desigualdades de gênero se estruturam é a distribuição do trabalho doméstico e de cuidados na família, distribuição essa informada pelas definições de papéis de gênero nas sociedades. Os papéis de gênero são os comportamentos esperados e desejados de homens e mulheres (Lindsey, 2016) que se expressam por meio de opiniões e práticas em diferentes esferas da vida social, como na realização de tarefas domésticas e de cuidados na casa, na escolha das áreas de conhecimento no sistema educacional, na inserção no mercado de trabalho, na participação política, dentre outras esferas. Imbricados ao racismo e às condições socioeconômicas, os papéis de gênero definem hierarquias, distribuem desigualmente as oportunidades e resultados nos contextos singulares.
Nos últimos dois anos, o mundo experimentou a crise sanitária e econômica em função da pandemia da Covid-19, um evento que produziu milhões de mortos e transformou a vida cotidiana em escala mundial. A principal política de enfrentamento da Covid-19 foi, inicialmente, o isolamento social, que levou à suspensão das aulas nas escolas, colégios e universidades, além de outras atividades presenciais (trabalho, prestação de serviços etc.).
Os dados produzidos por diversos países sobre o período da pandemia apontam que houve um retrocesso nos indicadores do mercado de trabalho, em especial para as mulheres; nas condições socioeconômicas da população; no acesso e manutenção das crianças e jovens na escola; na distribuição das tarefas domésticas e de cuidados dentro das famílias e na violência doméstica contra mulheres e crianças.
Neste dramático cenário, o mundo da casa e suas relações assimétricas foram colocados em evidência no debate público como não víamos há décadas: quem faz a comida, lava a louça, cuida dos filhos? Como as mulheres, aquelas que assumem a maior parte do trabalho doméstico e de cuidados, quando não assumem integralmente, articulam as tarefas com a inserção no mercado de trabalho? Quem delega para outras pessoas e como delega? E quem são as outras mulheres que assumem as tarefas domésticas e de cuidados de outras mulheres?
A contribuição da literatura sociológica foi fundamental. A partir dela foi possível colocar sobre a mesa o prato indigesto: a desigualdade de gênero na divisão do trabalho doméstico e de cuidados persiste ao longo do tempo e entre países com diferentes valores culturais, níveis de desenvolvimento econômico e políticas de apoio à família.
Ainda que persistente, analisando em perspectiva comparada, é possível identificar que há variações significativas segundo os contextos nacionais e suas diferentes características em relação à distribuição de renda e de oportunidades educacionais, valores morais sobre justiça social, igualdade e papéis de gênero e existência de políticas públicas de apoio às famílias (Lomazzi & Israel & Crespi, 2018; Araújo & Picanço & Cano, 2019). Variações também são encontradas quando pousamos a lente sobre as famílias, suas experiências e dinâmicas, visto que eventos nos cursos de vida podem provocar mudanças na distribuição das tarefas domésticas e de cuidados entre os membros da casa para acomodar escolhas feitas (voluntárias ou compulsórias) diante de circunstâncias vividas.
Entre persistências e variações, devem sempre ser recolocadas as perguntas sobre os efeitos dos valores, definições de papéis de gênero, variáveis socio-econômicas e das políticas públicas de apoio às famílias sobre a distribuição das tarefas reprodutivas (tarefas domésticas e de cuidados) e como as situações e escolhas individuais são vividas e negociadas dentro e fora da esfera familiar. Este é o esforço produzido pelo International Social Survey Programme (ISSP), que realiza desde 1988 rodadas do survey “Família e Papéis de Gênero em Mudança”.
Os surveys do ISSP são uma poderosa ferramenta de acompanhamento das mudanças e permanências nas desigualdades de gênero, medidas a partir da adesão a definições de papéis de gênero e práticas mais ou menos igualitárias, ao longo do tempo e em perspectiva comparada.
Embora os países que se filiam ao ISSP variem a cada rodada do survey e haja mudanças nas perguntas dos questionários, alguns países e questões estão presentes nas três últimas rodadas (1994, 2002 e 2012). Na mensuração de atitudes de gênero, uma das perguntas que permanecem em todos os questionários é o grau de concordância (concorda completamente, concorda, nem concorda, nem discorda, discorda e discorda completamente) com a frase “Trabalhar é bom, mas o que a maior parte das mulheres quer é cuidar da casa e filhos” (tradução livre). Entre países que permaneceram nas três últimas rodadas, os achados são muito interessantes. Enquanto países como Hungria, Espanha, Áustria e Japão, que tinham os maiores percentuais de concordância, reduzem esta concordância ao longo do tempo, o Reino Unido, que tinha o menor percentual, teve um pequeno aumento. Um aumento que, mesmo pequeno em termos percentuais, é revelador da resistência à adesão a valores mais igualitários de gênero. Uma resistência também observada nos EUA.
O Brasil se destaca dos demais países pelo elevado percentual de concordância com a afirmação, mas não temos uma possibilidade de comparação ao longo do tempo, pois a pergunta não foi reproduzida no questionário aplicado em 2016 [1].

A realização das tarefas domésticas entre as pessoas que declararam estar em uma relação conjugal é mensurada pela citação da tarefa e a pergunta de quem executa (sempre eu, quase sempre eu, igualmente, quase sempre meu cônjuge, sempre meu cônjuge). Lavar as roupas é a tarefa que aparece nas três últimas rodadas. Na tabela abaixo apresentamos o que dizem as mulheres, que se declararam majoritariamente responsáveis pela tarefa de lavar. No entanto, existe uma tendência de queda do percentual de mulheres que se declaram responsáveis pela tarefa. Apenas no Brasil observamos o aumento, mas que analisado em conjunto com as demais tarefas não configura uma maior concentração do trabalho doméstico nas mulheres (Araújo & Picanço & Cano & Veiga, 2018). A maior redução ocorreu na Suécia, um dos países mais igualitários nas definições de papéis de gênero e práticas da divisão do trabalho doméstico e de cuidados (Araújo & Picanço & Scalon, 2007; Araújo & Picanço & Cano, 2019).

Nas últimas décadas, a oposição à discussão sobre sexualidade, o não reconhecimento das identidades não-heterossexuais, a rejeição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e à adoção de crianças por casais homoafetivos, a exaltação do padrão homem-cônjuge-provedor e mulher-cônjuge-mãe-cuidadora, dentre outras pautas, configurou-se como o combate à “ideologia de gênero”. Historicamente, os grupos de religiosos cristãos se opuseram aos direitos sexuais e reprodutivos e aos diferentes padrões de família (Miskolci & Campana, 2018; Machado, 2018; Miguel, 2021), mas o combate à “ideologia de gênero” atravessou a pregação religiosa e se tornou na forma mais promissora de arrebatar a adesão pública às pautas morais de grupos organizados do que se convencionou a chamar de “extrema direita”.
Embora o combate à “ideologia de gênero” seja uma pauta política das campanhas dos candidatos da “extrema direita” e que este grupo político tem disputado espaço de forma mais organizada nas diferentes instâncias do poder desde o final dos anos 90, as rodadas do ISSP até 2012 não mostraram um retrocesso no campo dos valores e práticas nos contextos nacionais para os quais temos dados comparativos.
No entanto, a rápida e constante disseminação das pautas morais conservadoras e notícias falsas através de redes sociais, o empresariamento desta disseminação e a emergência de governos que se elegeram com campanhas baseadas nas pautas morais conservadoras são elementos novos no cenário global.
O ISSP já está em campo para a realização de uma nova rodada do survey “Família e Papéis de gênero em Mudança”. No Brasil, embora o país não esteja filiado ao ISSP no momento, também está sendo preparado um survey para ser aplicado o questionário do ISSP[2]. As novas rodadas do survey internacional e nacional serão cruciais para a compreensão do impacto da organização e visibilização das pautas morais de combate a “ideologia gênero” nas definições de papéis de gênero e práticas da divisão do trabalho doméstico e de cuidados.
Notas
[1] O Brasil participou da rodada do ISSP em 2002 e os resultados foram analisados em livros e artigos. Em 2016, sob a coordenação de Clara Araújo (professora do Departamento de Sociologia da UERJ), foi realizado um novo survey utilizando o questionário do ISSP aplicado em 2012 como modelo. Os resultados comparados ao longo do tempo e a comparação internacional foram publicados em livros.
[2] O survey a ser realizado no Brasil é parte do projeto de pesquisa “Famílias, Trabalho doméstico e Cuidado em perspectiva comparada e realidades singulares”, financiado pelo CNPq, coordenado por mim e contando com a participação de diferentes gerações da pesquisa neste campo.
Referências
ARAÚJO, C. & PICANÇO, F. & SCALON, M.C. (2007). Novas conciliações e antigas tensões: gênero, família e trabalho em perspectiva comparada. Bauru, EDUSC.
ARAÚJO, C. & PICANÇO, F. & CANO, I. & VEIGA, (2018). A. Evolução das percepções de gênero, trabalho e família no Brasil: 2003-2016. In: ARAÚJO, C. & GAMA, A. & PICANÇO, F. & CANO, I. (org.). Gênero, família e trabalho no Brasil do século XXI: mudanças e permanências. Rio de Janeiro: Gramma Editora, pp. 15-45.
ARAÚJO, C. & PICANÇO, F. & CANO, I. (2019). Onde as desigualdades de gênero se escondem? Gênero e divisão do trabalho doméstico, o Brasil em perspectiva comparada. Rio de janeiro, Gramma.
LINDSEY, L. (2016). Gender roles. A Sociological Perspective. New York: Routledge.
LOMAZZI, V. & SEDDIG, D. (2020). Gender role attitudes in the international social survey programme: Cross-National Comparability and Relationships to Cultural Values. Cross-Cultural Research, v. 54, n. 4, p. 398-431.
MACHADO, M.D.D. (2018). O discurso cristão sobre a “ideologia de gênero”. Revista Estudos Feministas, n. 26 v. 2, e47463.
MIGUEL, L.F. (2021). O mito da “ideologia de gênero” no discurso da extrema direita brasileira. Caderno Pagu, n. 62, e216216.
MISKOLCI, R.; CAMPANA, M. (2017). “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Revista Sociedade e Estado, n. 3, v. 32, set/dez.
Imagem: “A preparação das meninas'” (1972), Maria Auxiliadora da Silva. Retirado do site: https://artebrasileiros.com.br/arte/insidiosa-desigualdade-de-genero-se-repete-no-mundo-da-arte/