
Em mais uma atualização do último dia da Ocupação Mulheres 2023, série de matérias sobre mulheres intelectuais, gênero, feminismos e temas afins, publicamos um texto inédito de Barbara Goulart, doutora em Sociologia pelo PPGSA/UFRJ e pesquisadora de pós-doutorado no IESP/UERJ. A socióloga examina as relações entre a imagem da primeira-dama Maria Thereza Goulart e o ambiente político do governo do presidente João Goulart (avós da autora), discutindo os problemas relativos aos modos de representação social da mulher como estratégia política.
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Boa leitura!
Machismo, Beleza e as Esquerdas dos Anos 1960:
Maria Thereza Goulart e a imagem como estratégia política
Por Barbara Goulart
“Felizmente nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu no jornal do que os elogios”. Clarice Lispector, Visão do esplendor (1975).
I.
Em minha tese de doutorado, defendida em 2020 no PPGSA/UFRJ, investiguei as memórias sobre o governo João Goulart (publicada em formato de livro, clique aqui para ver). Analisei as memórias que diferentes grupos políticos criaram sobre o ex-presidente Jango ao longo das décadas. Porém, pouco falei sobre sua esposa Maria Thereza Goulart. Aproveitando a oportunidade da Ocupação Mulheres 2023 e o convite do Blog da BVPS, utilizo este espaço para pensar em como a ex-primeira-dama mais bonita do Brasil entra nesse debate.
Argumento que essa designação não é por acaso, servindo a imagem de Maria Thereza como estratégia política do governo Goulart, apresentando um contraponto à complexidade das pautas progressistas do período. Ao mesmo tempo, sinaliza para o machismo à época, inclusive entre as esquerdas, reduzindo mulheres à superficialidade da beleza.
II.
Em um momento em que grande parte do país vivia na miséria extrema, o governo Goulart buscou adotar pautas políticas progressistas, defendendo as chamadas Reformas de Base, que incluíam as reformas agrária, urbana, eleitoral, universitária, tributária, bancária, entre outras. Ademais, vale lembrar a reputação de conciliador adquirida por Goulart ao longo dos anos, sendo visto como moderado demais pelos setores mais radicais da esquerda, incluindo Luiz Carlos Prestes e o cunhado Leonel Brizola.
Argumento então que Maria Thereza Goulart também tinha um papel nesse projeto político conciliador, facilitando a aproximação do presidente com os setores mais conservadores da sociedade brasileira – principalmente o PSD – dos quais precisava do apoio para aprovar as novas medidas no Congresso, sendo necessária a aprovação da maioria seguindo os preceitos do modelo político democrático vigente à época.
Maria Thereza Goulart servia como ponto de referência para a elite brasileira, aparecendo sempre muito bem-vestida e estampando capas de revistas nacionais e internacionais. Circulava nas melhores festas do país, cumprimentando elegantemente as esposas dos políticos de oposição, incluindo a famigerada UDN.
Assim, enquanto João Goulart se aproximava dos setores de esquerda através de reuniões, comícios e defesas de pautas progressistas, a fama e elegância da primeira-dama mais bonita do Brasil servia como uma espécie de ancoragem ao centro, aproximando Goulart simbolicamente dos setores conservadores, os quais também precisava agradar para conseguir aprovar as suas pautas no Congresso. Eram nas festas que essa aproximação acontecia, nas noites de gala, nos eventos beneficentes, em que Maria Thereza era figura central. Uma mulher tão bela e tão elegante que compunha aquele cenário, da qual os outros queriam se aproximar. Assim, a beleza também era política.
A reputação de Maria Thereza servia como estratégia, facilitando a entrada e circulação do presidente de esquerda entre os setores conservadores da sociedade brasileira. Quem não queria conversar com a mulher que tinha sido capa de revista europeia? Que rivalizava em beleza com Jacqueline Kennedy? Brasil e Estados Unidos se aproximavam por meio da beleza, já que na política os empecilhos eram cada vez maiores.
Logo, a estética também fazia parte do casal Goulart, servindo Maria Thereza como modelo – e, infelizmente, padrão de beleza, resultante de uma construção social hoje altamente criticada – a ser seguido pelas socialites brasileiras da época. Portanto, enquanto Goulart conversava com comunistas e atendia trabalhadores em reuniões com sindicalistas de todo o país, era Maria Thereza que aproximava o governo dos conservadores, mais precisamente das conservadoras, sendo admirada pelas esposas dos coronéis agrários e pelas filhas dos patrões das maiores empresas do país.
Tentava-se retomar então o sonho dos anos dourados de JK, agora a partir de uma perspectiva mais progressista, porém ainda com traços de conservadorismo, em que o masculino dominava a política. Vale lembrar a realidade extremamente machista do Brasil dos anos 1960, inclusive no campo da esquerda, em que a beleza ainda era considerada “fundamental”, como cantava Vinicius de Moraes.
Assim, a própria redução da primeira-dama à sua beleza aponta para o machismo estrutural à época, em que mulheres eram reduzidas à superficialidade da imagem. Vale citar que diversas militantes que entrevistei para minha pesquisa sobre o governo João Goulart apontaram para o machismo dos grupos de esquerda. Mulheres do PCB precisavam de autorização para namorar e alguns anos depois, quando a ditadura já imperava, alguns grupos de luta armada recusavam a participação de mulheres.
Voltando para a primeira-dama, aproveito para citar uma passagem da biografia de Maria Thereza Goulart escrita pelo jornalista Wagner William (2019):
Foi no clima de mais um gol do Brasil que uma série de importantes publicações mundiais elevou Maria Thereza à categoria de estrela internacional. Ela se tornava a primeira brasileira a ser capa de uma revista europeia de grande circulação. Em fevereiro, a principal publicação da Alemanha, Stern, lançou uma edição com a foto de Maria Thereza na capa e a manchete “Morgen stürmen wir Rio” – um título que recorria ao “triplo sentido” e que mantinha o estilo incisivo da Stern. A manchete poderia ser traduzida como “nós vamos invadir (ou tomar) o Rio” e transmitia a ideia de movimento e mudança. O texto, assinado pelo jornalista Gordian Troeller, trazia fortes denúncias sobre as injustiças sociais no país e dava destaque a Francisco Julião, que assustava a oposição conservadora e preocupava Jango com as Ligas Camponesas. A reportagem repetia o artifício a que recorriam as revistas brasileiras e usava Maria Thereza Goulart como chamariz. Sobre ela, somente a observação de que não era apenas a primeira-dama, “mas também uma das mulheres mais bonitas do país”. […]
Foi só o começo. A revista norte-americana Time, de 8 de junho de 1962, trazia na capa a foto do conselheiro econômico da Casa Branca, Walter Heller, e publicava uma longa reportagem sobre as mais belas primeiras-damas do mundo. Maria Thereza estava entre elas. A reportagem “Belas que Reinam” escalava nove rainhas e esposas de presidentes: Farah Diba, do Irã; Sirikit da Tailândia; María Teresa Paz Estensoro, da Bolívia; Fabíola da Bélgica; Marie-Thérèse Houphouet-Boigny, da Costa do Marfim; Muna al-Hussein, da Jordânia; além de Grace Kelly de Mônaco; Jacqueline Kennedy e da própria Maria Thereza.
[…] A revista apontava para o que alguns governantes, Jango entre eles, demoravam para perceber: “Elas poderiam trazer imensas vantagens políticas e sociais para seus maridos” (WILLIAM, 2019: 149-150).

Permanece em aberto se João Goulart de fato veio a perceber a importância de sua esposa no cenário político do país ou não. Porém, em bom sociologuês, é inegável o grande capital simbólico que ela trazia para o governo através de sua beleza e, consequentemente, fama. Argumento então que esse trabalho simbólico, de criação de sentido para o governo através da valorização da beleza, em grande parte não foi feito de maneira intencional, nem pelo presidente e nem pela primeira-dama, mas reflete os valores da época, em que a mulher precisava ocupar um certo espaço na sociedade, espaço esse que valorizava principalmente suas qualidades estéticas.
Defendo que, mesmo que realizado de maneira subjetiva e inconsciente –dentro das estruturas machistas invisíveis da época –, esse trabalho teve resultados, ajudando a projetar o governo Goulart para além do Brasil, aproximando-o também dos setores mais conservadores do país, mesmo que por pouco tempo. Entretanto, para a tristeza de nossa democracia, o golpe sempre esteve no horizonte brasileiro e nem toda a beleza de Maria Thereza Goulart seria capaz de impedi-lo. 1964 viria como uma bomba.
III.
Maria Thereza Goulart não seria mais apenas a primeira-dama mais bonita do Brasil. Ela seria uma exilada política, tentando criar dois filhos no Uruguai e depois Argentina, sendo constantemente vigiada pelo regime militar. Enquanto seu marido tentava voltar ao Brasil, a esposa mantinha a casa em pé, equilibrando a difícil vida de exílio com os sonhos de democracia. Durante esse período tentou fugir para Porto Alegre por alguns dias, porém, o plano não teve sucesso. Foi presa pela ditadura uruguaia, dentro do contexto da Operação Condor – em que as diversas ditaduras latino-americanas atuavam conjuntamente – sofrendo uma madrugada de interrogatórios em que temeu por sua vida. Por sorte, foi solta.
Sendo conhecida até hoje como a ex-primeira-dama mais bela do Brasil, Maria Thereza Goulart foi também uma das primeiras vítimas da ditadura militar. Sofreu a perda do marido em terras estrangeiras, mas conseguiu voltar e sobreviveu. Até hoje. Talvez seja uma vida que vá muito além da beleza, não?

Referências:
GOULART, Barbara. (2022).O Passado em Disputa: memórias políticas sobre João Goulart. Rio de Janeiro: 7Letras.
LISPECTOR, Clarice. (1975). Visão do esplendor: impressões leves. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
WILLIAM, Wagner. (2019). Uma mulher vestida de silêncio: A biografia de Maria Thereza Goulart. Rio de Janeiro: Record.
Imagens: 1. Foto de Indalecyo Wanderley/ O Cruzeiro / Arquivo EM. Retirada de: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/05/19/interna_politica,1054927/joao-goulart-e-maria-thereza-tiveram-suas-vidas-devassadas-por-escutas.shtml; 2. Retirada de: https://revista.istoe.com.br/maria-tereza-a-primeira-dama-desnuda/; 3. Foto de Jonas Pereira / Agência Senado. Link: https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:Maria_Thereza_Goulart_em_2016.jpg#mw-jump-to-license