
O Blog da BVPS publica hoje uma pequena resenha do livro Restos épicos: a literatura e a arte na mudança de época, assinada por Diana Klinger (UFF), seguida de uma conversa entre Diana e o autor do livro, Mario Cámara.
Aproveitamos também para convidar a todos e todas que estiverem no Rio de Janeiro hoje, 14/03, para o lançamento do livro às 19h, com a presença do autor.
Boa leitura!
Restos épicos parte de uma premissa interessante: o retorno de signos como militância, pátria, emancipação e até revolução na “linguagem pública” dos últimos anos. A evocação desses signos, se pergunta Cámara, são um retorno ou uma farsa? Esta é a pergunta que norteia Restos épicos. Essa “segunda vida” (sobrevivência ou “existência póstuma”, no vocabulário de Didi Huberman, citado no livro) problematiza a separação entre um passado revolucionário (fechado, derrotado) e um presente democrático, dois tempos cindidos, no Cone Sul, pelas ditaduras militares. Mario Cámara estuda o retorno da iconografia política dos anos de 1960 e 1970 em plena época neoliberal, sendo a ditadura a dobradiça que separa e, ao mesmo tempo, articula as duas épocas.
A pergunta tem início com a tradução ao português, em 2004, de El niño proletário (O menino proletário), relato do escritor argentino Leónidas Lamborghini, que narra a tortura e assassinato de uma criança pobre por mãos de crianças burguesas, publicado em 1973, isto é, num “período hegemonizado por uma experiência do tempo que conduzia direto para o futuro e revolução”.
Mario se interessa por objetos artísticos, como esse relato de Lamborghini, que destoam da euforia militante da década de 1970, e que assim fazem o tempo parecer “fora dos gonzos”, como dizia Hamlet e retomava Derrida ao propor uma ciência dos espectros em contraposição a uma ideia de presente clausurado (ou “fim da história”), que virou hegemônica a partir dos anos noventa do século passado, após a queda do bloco soviético. A percepção desses elementos destoantes, assim como a presença dos fantasmas do passado no presente, complexifica o tempo, fazendo com que o passado não seja mais percebido nem como homogêneo nem como fechado, tal como Walter Benjamin entendia o trabalho do materialismo histórico. O tempo se apresenta então não como uma ordem sucessiva de acontecimentos, mas como montagem de elementos heterogêneos, de retornos e sobrevivências. E a montagem é, por sinal, um dos procedimentos fundamentais analisados no livro, inclusive, ele mesmo funciona como uma montagem de materiais heterogêneos, filmes, relatos, obras de arte, que permitem fazer leituras sobre “o popular”, inclusive em sua dissonância com relação a sua época.
Segue aqui a reprodução de uma uma conversa que tive com Mario sobre o livro.
Diana: O seu livro inclui materiais muito diversos, como o romance Em liberdade, de Silviano Santiago, o filme “Cabra marcado para morrer”, de Eduardo Coutinho, um happening de Oscar Masotta, uma instalação de Oscar Bony, obras de Helio Oiticica, entre outros. Poderia falar do processo de pesquisa, a escolha dos objetos e a montagem dos materiais?
Mario: A escolha dos objetos foi se dando de uma forma não planejada. Por exemplo, os textos sobre Silviano Santiago eu escrevi para um congresso em sua homenagem organizado aqui em Buenos Aires por Daniel Link e para uma publicação em homenagem organizada por Denilson Lopes no Chile, para a revista Papel Máquina. O ensaio sobre Oscar Masotta e Oscar Bony foi escrito para um congresso organizado em Leiden, Holanda, por Luz Rodríguez Carranza, e o do Eduardo Coutinho para um congresso organizado em Cambridge por Jordana Blejmar.
Pois bem, a pesquisa surge como resultado de voltar a ouvir enunciados políticos que pareciam definitivamente desterrados da vida política argentina, que viveu um processo de repolitização, no qual me incluo, a partir de 2008, em parte como consequência do conflito que houve entre o governo e o campo. Nesse processo de repolitização, essa circulação de consignas que recuperavam imagens e projetos dos anos sessenta e setenta era não somente um processo que estava vivendo Argentina, mas também vários países da América Latina, como Bolívia, Venezuela e Brasil, algo que começou a pensar quase de imediato. Também há um segundo aspecto, um pouco mais difuso, que consistente na busca de um modo diferente de praticar a crítica, quer dizer, a busca de categorias críticas que me tiraram de uma leitura – estou pensando agora – exclusivamente autonomista da literatura e das artes em geral. A pesquisa esteve orientada então pela seleção de objetos que contiveram enunciados políticos explícitos para poder ouvir aí o burburinho da história, das histórias, de Brasil e da Argentina.
Eu sempre pensei a montagem dos materiais em termos históricos, porque o livro busca articular uma dupla temporalidade que aparece enunciada no título, que traz a ideia de “resto”. Quer dizer, “resto” como o que persiste no sentido do que resiste, o que sobrevive e assim queria pensar neste retornos progressistas. Mas, também, “resto” como o que sobra depois de um estampido e resulta inutilizável. Por isso, tento pensar algo assim como “o mal” ou “o real” em pleno momento de hegemonia de um pensamento de esquerda, Masotta e Oscar Bony, assim como A hora da estrela ou algumas intervenções de Caetano Veloso ou Rogério Sganzerla entram ai, e eu contraponho isso com narrativas e imagens, posteriores, nas quais se retoma, de modo cifrado, deslocado, transfigurado, certo pensamento de esquerda.
Minha perspectiva contém uma espécie de dobra que busca manter na superfície a força dissolutiva do acontecimento dentro de um pensamento que posso denominar pós-fundacional, considerando que não há origem nem teleologia e nunca houve nem haverá, ao mesmo tempo em que procura observar e acompanhar, num conjunto de objeto artísticos, as formas em que em nossas recentes democracias lidamos com e processamos as heranças de tempos turbulentos. Poderia dizer, então, que Restos épicos é um livro sobre heranças, muitas vezes difíceis ou até ilegíveis, e descontinuidades. Em qualquer caso, o objetivo que busca a montagem é articular essas duas metades, o político e a sua contingência. Devo isso ao pensamento de Raúl Antelo e de Ernesto Laclau.
Diana: A história argentina está muito marcada pelo peronismo, por sua iconografia e vocabulário, que vive um novo auge nas últimas duas décadas. Como isso incide na comparação com o Brasil?
Mario: Evitei ao máximo fazer uma comparação com o Brasil, cuja história é radicalmente diferente da história argentina, mesmo que possamos encontrar semelhanças nos desejos, nos imaginários e nas futuridades que se construíam aqui e aí nos anos sessenta. Esse foi o ponto de convergência, não tanto de comparação. E desse modo inclui o narrador Rodrigo SM e seus insultos com Oscar Motta, ou Caetano Veloso raivoso contra o populismo com Oscar Bony; ou encontrei semelhanças entre a opacidade de um livro de poemas como Punctum, de Martin Gambarotta, e as primeiras narrações de João Gilberto Noll. Deste modo, fui esquivando uma comparação entre dois processos históricos diferentes.
Diana: A obra de Silviano Santiago está muito presente no seu livro, tanto como ensaísta quanto como autor de romances. Poderia falar um pouco desse destaque?
Mario: Com efeito, o livro dedica duas partes a Silviano Santiago, uma focalizada em seu romance Em liberdade e a outra que procura construir uma descrição de seu pensamento. Acredito que tanto Em liberdade quanto a reflexão teórica de Silviano Santiago desde os anos setenta sejam fundamentais para a cultura e política brasileira, e claro, para o que tento pensar no livro. Em Restos épicos leio Em liberdade como um romance central, tão central quanto o documentário de Eduardo Coutinho “Cabra Marcado para Morrer”, que procura pensar a democracia como futuro no Brasil. O romance se publica durante os últimos anos da ditadura que, no total, dura uns vinte anos, e constitui tanto um acerto de contas com o passado pensado em termos de lutas emancipatórias quanto uma aposta por um futuro sustentado num vitalismo não ingênuo. Nele há uma aposta pelo corpo, pelo erotismo, que consegue transmitir uma sensação de liberdade apesar de todas as dificuldades que atravessa a personagem, um Graciliano Ramos recém-saído da prisão. Em liberdade possui um espírito nietzschiano, no sentido que recusa adotar uma posição de mártir diante do passado e, por consequência, do futuro.
Por outro lado, me interessa refletir sobre o pensamento de Silviano num sentido político, porque parecia condensar a proposta do livro. No final do percurso por seu pensamento proponho imaginar que democracia imaginava Silviano nos anos oitenta e me respondia o seguinte: “Acredito que a democracia para Silviano seja capaz de conter essa dobra entre o que deve ser conquistado como direito amparado pela lei e o que deve se manter no espaço do indefinido e do ambíguo, porque há potência, práticas e gozos que florescem com mais força nas sombras”. Parafraseando: a democracia e sua sombra, a democracia e o real, a democracia e a dissolução, a democracia e a transgressão. Desfazer esse par supõe ingressar num regime imunitário.
Diana: Interessante pensar nessas questões no momento em que tanto a Argentina quanto o Brasil vivem um retorno dos governos progressistas.
Mario: De fato, o livro toma como ponto de partida o retorno dos governos progressistas na região (Lula e Kirchner), mas os objetos com os que trabalho, nenhum deles corresponde a esse período. Sua observação é muito boa. Mais do que abordar objetos contemporâneos me interessava pensar como a arte e a literatura tinham se virado durante o que poderíamos chamar de “transições democráticas”, para lidar com certas heranças de um passado que, ainda que recente, parecia já completamente desmaterializado. Este é o ponto: acho que os governos no Brasil de Lula e de Dilma e na Argentina de Néstor e de Cristina Kirchner produziram suas próprias imagens e relatos, mas eu estava interessado em abordar um período mais ermo para as “línguas políticas” que, volto a dizer, nos anos 60 e 70 eram mais comuns. Por isso tem produções post 2000, mas todas as produções que eu abordo me interessaram porque, em certa medida, enquanto releem o passado desmaterializado também imaginam um futuro que todos começamos a viver a partir dos anos 2000.
Diana: Você está escrevendo algo novo?
Mario: Acabei de lançar o livro El archivo como gesto. Tres recorridos en torno a la modernidad brasileña, que é um livro dedicado inteiramente ao Brasil. Tem a ver com o triunfo de Bolsonaro e a tentativa de refletir de onde ele veio, como chegou a se constituir o bolsonarismo. O conceito de arquivo me guia pelas obras de Adriana Varejão, Jean Baptiste Debret, Rosangela Rennó, Arthur Omar, Veronica Stigger, Mário de Andrade e Raul Bopp. Estes artistas me guiam para voltar a observar emblemas da modernidade brasileira, de Brasília até Carandiru, de Manaus ao extrativismo da borracha. E por meio desses percursos procuro pensar uma modernidade que talvez merece ser revisitada, que talvez deva ser repensada de uma maneira muito mais crítica para ver como foi se gestando isso que depois se conheceu como bolsonarismo.
Neste momento estou terminando um novo livro cujo título é Reimaginar o presente. Táticas do encontro e crítica institucional. Aí trabalho com um conjunto de experiências artísticas, do Museu da Solidariedade que Mário Pedrosa leva adiante no Chile de Salvador Allende, até o loft que Hélio Oiticica arma em New York, passando por projetos argentinos e peruanos, para pensar na ideia de participação, colaboração e de que maneiras esses projetos intervieram na invenção de linguagens que hoje nos resultam mais familiares. Me refiro a perspectivas de gênero, queer, entre outras.