
Publicado em 1902, Os Sertões, de Euclides da Cunha, inicia um longo e acidentado processo de denúncia e sensibilização social e política sobre os crimes da República, então recém-instaurada. Mas não só: é a narrativa exemplar que trará ao primeiro plano o protagonismo ambíguo do sertanejo, as misérias do sertão e a dualidade sertão/litoral na sociedade brasileira. O “Livro vingador”, como ficou conhecido, a um só tempo expressa e pulsa ininterruptamente a memória de um crime e de um trauma coletivos na cultura brasileira que jamais encontrarão redenção.
Este é o argumento de “Os sertões: crime e castigo”, de Lilia Schwarcz (USP) e André Botelho (UFRJ), que o Blog da BVPS publica hoje na Série Nordeste BVPS. O texto foi originalmente publicado em versão mais ampla como prefácio à edição de Os sertões da Penguin/Companhia das Letras, em 2019. Essa edição contou com o estabelecimento de texto original de Andre Bittencourt (UFRJ).
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Boa leitura!
Os sertões: crime e castigo
Por Lilia Schwarcz (USP) & André Botelho (UFRJ)
Muito se tem comentado acerca do perfil cientificista de Os Sertões: campanha de Canudos, de Euclides da Cunha (1866-1909), publicado em 1902. Parece inegável a influência do pensamento evolucionista de sua época, incluídos os seus traços deterministas e mesmo preconceitos tanto em relação aos temas raciais, quanto aos geográficos. Nenhum livro, nem é preciso argumentar muito, por mais inovador que seja, consegue fugir inteiramente das circunstâncias da sua produção, de seu contexto e do momento que o viu nascer – tanto em termos dos problemas abordados, quanto dos recursos mobilizados para sua formulação, além das escolhas e valores nele expressos. É enganoso acreditar, porém, que todo livro participa de seu tempo da mesma forma, e equivocado traçar o contexto de um livro enfatizando apenas o que possivelmente há de comum entre ele e outros contemporâneos, como se a contextualização fosse necessariamente um recurso homogeneizador de todos os pensadores que viveram no mesmo momento político, social e cultural. Tampouco vale a pena imaginar que uma obra como essa seja apenas um “reflexo” imediato de seu tempo. Livros como esse são sempre mais, pois ajudam a criar o contexto que, teoricamente, apenas espelham.
E o que torna Os Sertões um livro fascinante é exatamente o fato de que a análise e a narrativa que realiza levam quase ao paroxismo os pressupostos cientificistas de que parte. Nesse sentido, ele é um livro do seu tempo, mas também contra o seu tempo. Esse movimento é simultaneamente interno e externo à obra e se relaciona, sobretudo, com o caráter traumático assumido pela Guerra de Canudos (1896-1897) na cultura brasileira e para Euclides da Cunha a partir de seu contato pessoal com ela. E é a ele que Os Sertões deve, em grande medida, seu lugar no pensamento brasileiro. E, também, acrescentamos nós, muito de seu interesse atual. É esse movimento muito próprio do livro que queremos aqui acompanhar.
Euclides: Repórter de guerra
Em 1895, Euclides pede e recebe uma licença do Exército, quando foi considerado incapaz para o serviço militar em decorrência de uma tuberculose que contraíra tempos antes. A partir de então, Euclides da Cunha literalmente se reinventou. Seguiu primeiro para a fazenda Trindade, de propriedade do seu pai, em Belém do Descalvado, e se dedicou às atividades agrícolas. Depois, deu início a uma atividade como engenheiro-ajudante na Superintendência de Obras Públicas em São Paulo. No ano seguinte, entediado, decide afastar-se definitivamente de qualquer ligação com o Exército, sendo reformado no posto de tenente. Em 1897 decide regressar a São Paulo, para tentar a sorte como colaborador do jornal O Estado de São Paulo. Foi aí que sua vida mudou, novamente, e que ele se converteria no “autor de Os Sertões”. O jornalista foi então designado para cobrir a 4ª Expedição contra Canudos, na condição de correspondente daquele periódico. O jornalismo de guerra, na posição de testemunha ocular, era atividade nova nesse contexto, assim como a oportunidade de presenciar um evento desse porte e que mexera com a imaginação da população brasileira. Mexeu com a República, também, que logo transformou um pequeno foco num imenso bode expiatório.
A comunidade de Canudos vivia no interior do estado da Bahia, na região Nordeste do Brasil, num local pouco conhecido pelos ilustrados da capital carioca. A região, caracterizada por latifúndios improdutivos, secas cíclicas e desemprego crônico, passava então por uma grave crise econômica e social. Desenganados, abandonados pelos políticos e grandes proprietários, milhares de sertanejos dirigiam-se para Canudos, uma sorte de cidadela liderada pelo peregrino Antônio Conselheiro (1830-1897). Unidos por uma crença na salvação milagrosa que pouparia os humildes habitantes do sertão dos flagelos do clima e da exclusão secular tanto econômica como social, e que transformaria o sertão em mar, o arraial cresceu muito.
Mas a própria organização comunitária de Canudos e o comércio que realizam com a vizinhança tocou nos brios dos grandes senhores da região, os quais, unindo-se à Igreja, que se sentia igualmente ameaçada pelo milenarismo do líder de Canudos, deram início a uma forte pressão junto ao governo da República, no sentido que fosse aniquilado “tal cancro monarquista”.
O certo é que Canudos foi virando uma grande desculpa pronta, suficiente para expiar as culpas da República com os boatos correndo à solta. Criou-se uma série de rumores, sendo que o mais estridente deles era aquele que afirmava que Canudos andava armando-se para atacar cidades vizinhas e partir em direção à capital. E mais: que pretendiam depor o governo republicano e reinstalar a Monarquia.
A notícia não tinha pé ou cabeça, e não havia chance de um grupo de pessoas esquecidas pela República resolver atacá-la. Mas a grita virou geral e o próprio Euclides, assinando como Proudhon, um filósofo anarquista francês, atacou, num primeiro momento, a “barbárie” deste movimento, oposto ao novo regime, representante da “civilização”.
Mas se Euclides viajou convencido, voltou cheio de dúvidas. Ele pôde presenciar os verdadeiros massacres empreendidos pela República, que enviou três expedições militares contra Canudos, todas derrotadas, e depois conseguiu destruir o arraial, vitimando cerca de vinte mil sertanejos, além dos cinco mil militares que pereceram nos combates.
A guerra terminou com a destruição total de Canudos, a degola de muitos prisioneiros de guerra e o incêndio de todas as casas do arraial. Já Euclides da Cunha perdeu a convicção que carregava consigo quando chegou a Canudos. Além de publicar artigos no jornal que o contratou, o periodista publicou, em 1902, um livro essencial, resultado de sua experiência em Canudos, chamado Os Sertões, que teve imensa repercussão naquele contexto ao denunciar o verdadeiro massacre empreendido pela República.
Contrariando o uso provinciano da ciência
O movimento complexo de pertencimento ao contexto intelectual e, simultaneamente, de distanciamento dele e de inovação prefigurado por Os Sertões, para começar do início, já se mostra decisivo na estrutura do livro. Formalmente, o autor segue o esquema positivista de Hypolite Taine, que propunha a trilogia meio, raça e circunstâncias para a interpretação da história. O esquema é transposto ao plano narrativo de Os Sertões como uma espécie de roteiro a partir do qual Euclides da Cunha desenvolve sua análise em três partes que dividem e ligam o livro: a terra, o homem e a luta.
Em “A Terra” são examinados elementos gerais da natureza física americana, mas num crescente ajuste de foco para circunscrever a região de Canudos, como a flora, a fauna e o clima tendo em vista, sobretudo, identificar as causas das secas que caracterizam a região do conflito. Dizem que a leitura em voz alta, dessa primeira parte da obra, reproduz o som sibiloso do sertão; essa terra árida e persistente, na opinião de Euclides da Cunha, como o próprio sertanejo. A formação antropológica do brasileiro, entendida, sobretudo, como uma formação racial decorrente da confluência das três “raças” presentes de modo autóctone (indígenas) ou por imigração (europeias) e diáspora compulsória (africanas), constitui o tema central da segunda parte, chamada “O Homem”. Também nesta, o ângulo de abordagem vai sendo paulatinamente ajustado, passando das características mais gerais às mais particulares do fenômeno estudado, no caso, as características da população sertaneja. Importante observar como não apenas seus “tipos”, mas também os costumes e mesmo o que poderíamos hoje chamar de cultura, como a própria religiosidade messiânica dos sertanejos, elemento central da Guerra de Canudos e, portanto, do livro, são traçados em relação e, em grande medida, como decorrência dessa formação que se pretendia “física”. O sertanejo seria um “degenerado”, pois decorrente da mistura de raças “mui diferentes” entre si, mas também um “forte”: como a água que sai do cacto. Todas essas dimensões convergem e se concretizam na análise, ao final da segunda parte, da trajetória do líder carismático Antônio Conselheiro, que representaria ele próprio, em seu corpo, as ambiguidades destas populações.
“A Luta” é parte mais longa do livro, correspondendo a cerca de o dobro das duas primeiras juntas, e trata, enfim, da Guerra de Canudos em seis diferentes capítulos. Acabamos de escrever “enfim” tanto porque, no fundo, Os Sertões é fundamentalmente uma narrativa da Guerra de Canudos, do confronto entre um movimento messiânico sertanejo e as Forças Aramadas – e, por meio delas, do Estado Republicano e da sociedade brasileira da época; quanto porque as duas partes que antecedem “A Luta” também a preparam, no sentido de permitirem a construção de sua inteligibilidade com os (melhores) recursos intelectuais disponíveis à época.
Dessa maneira, se perguntarmos pela imagem de sociedade e pela concepção de história que orientam de modo dominante o livro, dificilmente poderíamos fugir da constatação de que, numa dimensão, talvez a mais aparente da narrativa, estamos mesmo diante de uma visão determinista naturalista e positivista. Clima, geologia, natureza somadas à formação racial das populações sertanejas dariam conta de explicar a configuração do fenômeno abordado. É isso que sugere, afinal, o próprio roteiro do livro.
Mas essa seria apenas parte da resposta. Para caracterizar o movimento próprio do livro, teríamos que lembrar também que, semelhante a outras abordagens da época, o determinismo naturalista acaba por se combinar a uma visão evolucionista, relativamente inovadora no contexto intelectual da época, que faz com que sociedade e história em Os Sertões estejam em permanente transformação. Central, no livro, é o diálogo travado com teóricos deterministas europeus, como Ludwig Glunpowicz (1838-1909), que propunha a luta de raças como fundamento do processo histórico.
São noções de história e de sociedade em transformação às quais não faltam sequer, em alguma medida, a convicção iluminista de que seria possível, por meio da ciência, prever e mesmo intervir nos sentidos das suas mudanças. Note-se que estas concepções permaneceriam presentes por muito tempo, e talvez, permaneçam ainda hoje, de maneiras renovadas, não apenas no debate intelectual, mas também nas políticas de Estado no Brasil. Assim, ao lado das numerosas referências ao determinismo naturalista, então em voga, e de certa oscilação entre uma visão pessimista e outra relativamente otimista sobre as possibilidades de um projeto civilizatório moderno no Brasil, podemos perceber em Os Sertões muitas tensões que expressam, ao fim e ao cabo, as dificuldades de uma mera aplicação dos princípios naturalistas. Os sertões, nos parece, está inteirinho nessas tensões e contradições.
A primeira tensão operada em Os Sertões é que os elementos geográficos e geológicos abundantes na primeira parte do livro (“A Terra”) estão também presentes, mas como imagens e metáforas, nas suas partes seguintes. Esse uso alegórico de categorias científicas certamente pareceu pouco ortodoxo ou rigoroso a alguns dos seus contemporâneos positivistas. Mas tais usos são decisivos para o principal argumento desenvolvido na segunda parte do livro: o do isolamento do sertanejo como fator histórico crucial para explicar o antagonismo entre litoral e sertão. Se em “O Homem” verifica-se até mesmo a reprodução de argumentos de Nina Rodrigues sobre a inferioridade das raças que formaram o Brasil, a tese mais importante de Os Sertões acaba sendo forjada ali mesmo, justamente em contraste: a de que o sertanejo seria antes um “retrógrado” do que um “degenerado”. E esta situação decorreria, paradoxalmente, da sua distância das influências negativas da “civilização de empréstimo” que se desenvolvera nas cidades do litoral; de seu isolamento. As tensões com relação ao que era de alguma forma hegemônico naquele contexto intelectual seguem por todo o livro. Elas se expressam, sobretudo, na incrível dificuldade que Euclides encontra para fixar uma imagem efetiva do sertanejo. É por isso levado a forjar a imagem ambígua (na verdade, um oximoro) do “Hércules-Quasímodo”, pois, de acordo com as circunstâncias, o sertanejo oscilaria muito: da fragilidade à força. Por fim, na terceira parte do livro, na narrativa sobre as campanhas militares, acaba por prevalecer a ideia, quase uma denúncia política, da resistência quase heroica dos sertanejos, até a sua trágica derrota final.
A viagem a Canudos, como tem ressaltado a fortuna crítica, foi decisiva para acentuar as ambivalências do escritor face aos ideais de ciência e progresso, então dominantes, e para alterar profundamente sua visão sobre os sertanejos e o sertão. Em contraste com os primeiros artigos publicados por Euclides da Cunha na imprensa, a crítica aos excessos e contradições da República acentua-se notavelmente em Os Sertões. Como observa Nísia Trindade Lima (2009), que sugere que Os Sertões também pode ser lido como uma espécie de viagem, com origem no Rio de Janeiro da Belle Époque, a análise de Euclides desconcerta o leitor que busca a mera aplicação dos determinismos em voga ou pretende ler um relato contínuo e evolutivo sobre o incidente que abalou a Primeira República. Escreve ela: “O que se observa é a plasticidade das categorias sertão e litoral, essencialmente referências simbólicas que sofrem no texto uma série de deslocamentos. São os temas da inversão de papéis e comportamentos esperados dos habitantes do sertão e do litoral; entre sertanejos e as forças militares que os combatiam e da transformação súbita dos sertanejos e de sua realidade” (Lima, 2009: 110).
Como mostra Os Sertões, a adoção do naturalismo, do evolucionismo e do positivismo – celebrizada na afirmação de Sílvio Romero de que, então, “um bando de ideias novas sobrevoou sobre nós” – nem sempre foi simplesmente servil ou mecânica. É claro que, do ponto de vista das elites intelectuais brasileiras de então, a adoção dessas teorias também representava uma possibilidade de atualização e modernização da produção intelectual local em relação a certas vertentes do pensamento filosófico e científico dominantes na Europa. Mas poucas vezes, como em Os Sertões, esse instrumental parece ter sido apropriado de modo tão consequente para expressar o que ele, de fato, trazia de mais inovador: o reconhecimento da luta e do conflito (no caso, disciplinados pelos paradigmas naturalista/positivista), mas que, sim, arremetiam diretamente contra idealizações e dicotomias vigentes da ordem tradicional.
Mais do que isso, menos vezes ainda se terá visto um uso tão perspicaz das categorias naturalistas para expressarem seus próprios limites explicativos, cuja adoção, entre nós, frequentemente realizou-se por meio da “naturalização” da nossa herança colonial e das relações sociais que, tendo por base a experiência de três séculos de escravidão, estruturaram a sociedade brasileira. Estruturaram e silenciaram, justamente, essas outras histórias e esses outros povos que não correspondiam exatamente aos modelos europeus.
É que a Guerra de Canudos é um evento traumático que altera as perspectivas de Euclides da Cunha e lhe exige um uso inovador e alegórico das categorias de análise que estavam disponíveis. A mera “tradução” tornava-se difícil, com o autor atualizando conceitos a partir da realidade que encontrou no sertão nordestino. Para expressar um evento tão trágico, exigia-se se não um novo repertório, ao menos novos sentidos para as categorias usuais.
Não faltou a Euclides, assim, a coragem de rever o que já sabia a partir do que descobriu em contato com a realidade trágica e terrível da guerra, expondo as fraturas e ambiguidades da nossa realidade social e do projeto republicano. Esse é, por sinal, um uso em nada provinciano da ciência, que, antes, se opunha à usual apropriação oligárquica do moderno no plano das ideias que, de certa forma, vinha e continuaria pavimentando todo um caminho brasileiro para eleger apenas uma determinada modernidade.
A guerra está em nós
A codificação de experiência sociais tão complexas já seria suficiente para reconhecer o lugar tão especial que Os Sertões ocupa na cultura brasileira. Entretanto, mais do que transmitir conteúdos, os livros agem, provocam reações no leitor e na comunidade de críticos e teóricos. Implicam e estimulam, igualmente, posicionamentos políticos. Nessa perspectiva, a força de Os Sertões existe e resiste também em sua recepção. Não por acaso foi chamado de “livro vingador”, apenas dois anos após sua publicação, em 1904. Tal foi seu impacto, que a editora Laemmert, a mesma que publicou Os Sertões, criou um volume, chamado Juízos críticos, recolhendo as críticas feitas à obra. Na imensa repercussão, grande até para os dias de hoje, encontramos pistas importantes sobre o sentido de Os Sertões na cultura brasileira, de uma maneira mais geral. O livro balançava convicções, denunciava um genocídio, reconhecia a existência de vários Brasis, e colocava em questão as bases da República no Brasil.
Desde a crítica de José Veríssimo (1857-1910), publicada no rodapé literário do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro no dia seguinte à publicação de Os Sertões – isto é, no dia 3 de dezembro de 1902 –, até as críticas de Araripe Júnior (1848-1911), publicadas em fevereiro e março de 1903 no Jornal do Comércio, passando pelas de Medeiros e Albuquerque (1867-1934), Coelho Neto (1864-1934) e outros literatos, impressiona o impacto causado, desde cedo, pelo livro.
Mas as críticas permitem também recuperar os embates em torno do caráter científico ou não das ideias de Euclides da Cunha que, em grande medida, permaneceriam conosco por décadas e ainda não desapareceram por completo. Não por acaso, em praticamente todas as resenhas da referida antologia afirma-se, como no caso de José Veríssimo; nega-se, como no de José Maria Moreira Guimarães, ou suspeita-se, como no de Araripe Júnior, que Os Sertões promova um bem-sucedido “consórcio da arte com a ciência”; ideia, aliás, bastante cara ao próprio Euclides da Cunha.
Mais importante, porém, é perceber como a afirmação ou a negação do caráter “científico” e/ou “artístico” das formulações euclidianas, o peso da “ciência” ou da “arte”, da “razão analítica” ou da “imaginação” na configuração de Os Sertões, imbricam-se frequentemente com a ratificação, rejeição ou mesmo condenação da sua interpretação sobre o massacre de homens, mulheres e crianças no sertão da Bahia e, particularmente, da atribuição de responsabilidades aos próprios sertanejos, ou antes, ao exército brasileiro pela tragédia.
Lembremos, a Guerra de Canudos mobilizou cerca de 12 mil soldados distribuídos em quatro expedições militares e deixou um saldo de cerca de 25 mil pessoas mortas. Para uma sociedade que gosta de repetir para si e para os outros o mito da sua pacificidade, um saldo repugnante e tanto, convenhamos.
Naturalmente, os debates sobre a Guerra de Canudos não desapareceram, e parecem mesmo redivivos atualmente, quando a história militar brasileira passa por novas ondas de reinterpretação. Não faltará muito, tudo indica, para que também Os Sertões integrem o novo revisionismo historiográfico em curso na sociedade brasileira, no fim desta segunda década do século XXI. Não por acaso, a guerra é também chamada de “Campanha de Canudos”, quando, provavelmente, se atualiza o ponto de vista do Estado, da modernização conservadora, das elites dirigentes e da opinião pública da então capital federal.
É que, há 117 anos, a narrativa exemplar e polêmica do conflito de Canudos realizada por Euclides da Cunha parece desempenhar, guardadas as devidas proporções, também um papel expiatório na sociedade brasileira – como o “castigo” na ficção de Fiódor Dostoiévski ou a “pena” na sociologia de Émile Durkheim.
Os livros não operam apenas no plano intelectual, mas também no sociopolítico e cultural, enraizando-se nas consciências e participando da organização dos grupos sociais e da sociedade como um todo.
Assim, parece que, como Euclides da Cunha ao escrevê-lo e seus contemporâneos ao recebê-lo, prosseguiremos com Os Sertões: campanha de Canudos também para tentar expiar nossa culpa e tentar recompor, no plano simbólico, a fratura que o extermínio dos sertanejos criou na sociedade brasileira em meio ao seu processo de modernização conservadora e em nome da “razão de Estado”.
Euclides da Cunha usou as ferramentas que tinha, para subvertê-las. Seu mestiço era forte, e a civilização nunca esteve tão avizinhada da barbárie. De nada adiantaram as citações de Broca, Gumplowicz ou Moray, que tanta certeza passavam, com seus modelos deterministas que previam tudo: geografias, climas, homens e raças.
Por outro lado, o corpo de Antônio Conselheiro entrava para sempre no imaginário local, como tantos outros corpos que fizeram história. Aí estava o corpo de Conselheiro, o crânio de Conselheiro, tantas vezes maldito. A sua cabeça surge como prêmio para essa civilização que se vinga e impõe o progresso.
O crânio de Conselheiro, devidamente medido por Nina Rodrigues, deveria confirmar a loucura, colocar um ponto final nessa história e cumprir uma espécie de função catártica para essas populações que deliravam diante da morte. Esse é o final deste livro, inconcluso nas interpretações que suscita. Progresso, crime e loucura parecem estar em suspenso. Em suspenso estão o corpo do Conselheiro e das 25 mil mortes que ele personifica, os limites e proximidades entre o litoral e o sertão, bem como o próprio livro Os Sertões.
Dizem que quando há muito silêncio, sobra contradição. Os Sertões é um livro escrito há mais de um século, mas ainda atual entre nós. Ele continua tanto a denunciar o crime – e o castigo – de uma sociedade eurocêntrica, violenta, autoritária, desigual e excludente, quanto a desafiar as nossas certezas e respostas fáceis; assim como atenta contra as polaridades e dicotomias estanques. Mas, atenção: o sertão, definitivamente, e como diziam os seguidores de Antônio Conselheiro, havia de virar mar (e o mar de virar sertão).
Referência
LIMA, Nísia T. (2009). “Euclides da Cunha: o Brasil como sertão”. In: BOTELHO, André & SCHWARCZ, Lilia M. (orgs.). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 104-117.
Imagem: Joana Lavôr, colagem da série Dei Normani, Sicília. Para a disciplina/série Blog da BVPS Nordeste Autopoiesis.