
O Blog da BVPS publica hoje o texto “O formigueiro do real”, de Mateus Baldi (Puc-Rio), que se hospeda no ensaio “Errata”, de Silviano Santiago.
O post dá continuidade à Hospedagem Vale quanto pesa, um experimento intelectual e estético inspirado na categoria de “hospedagem” de Silviano Santiago, voltado para as comemorações do seu segundo livro de ensaios, Vale quanto pesa, de 1982. Propomos um exercício de comentário, repetição, suplementação, hospedagem dos 18 textos nele reunidos. Autores e autoras de 40 anos ou menos comentam Vale quanto pesa em seus 40 anos ou mais.
É uma alegria proporcionar esse encontro, ainda mais porque, como espaço de formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes, o Blog da BVPS aposta sempre na conversa entre diferentes gerações.
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Boa leitura!
O formigueiro do real
Por uma proposta de uma hexalogia do desespero em Rubem Fonseca – a partir de Silviano Santiago
Por Mateus Baldi* (Puc-Rio)
Em texto dos anos 1990, o antropólogo Gilberto Velho (1996: 10) define violência como “o uso agressivo da força física de indivíduos ou grupos contra outros”, destacando que ela “não se limita ao uso da força física, mas a possibilidade ou a ameaça de usá-la constitui dimensão fundamental de sua natureza”, associando-se a uma ideia de poder ao enfatizar “a possibilidade de imposição de vontade, desejo ou projeto de um ator sobre outro”. No parágrafo seguinte, Velho arremata afirmando que “a própria noção de outro ressalta que a diferença constitui a vida social […] é, simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito”.
Pouco mais de trinta anos antes da publicação do texto do antropólogo, o mineiro José Rubem Fonseca publicou um livro de contos intitulado Os prisioneiros. No posfácio à edição de 2009, o jornalista Sérgio Augusto (2009: 159) destaca:
embora o conto e a crônica fossem, na época, os dois gêneros literários com o maior número de adeptos no Brasil, o sucesso alcançado por Os prisioneiros, nos últimos meses de 1963, pegou de surpresa o mercado editorial […] ‘É a grande revelação do ano’, proclamou o exigente Fausto Cunha, um dos muitos críticos que, semanas depois, elegeriam a primeira coletânea de contos de Rubem Fonseca um dos livros mais expressivos da temporada.
Complementando o espanto, o crítico Wilson Martins, em sua coluna no ano seguinte, inicia o texto dizendo que Fonseca “traz a literatura no sangue” e “renova o conto brasileiro no momento mesmo em que estaríamos inclinados a considerá-lo esgotado”. Segundo Martins (2009: 165), seu personagem típico estaria “situado numa fronteira indecisa entre a normalidade e a loucura; e esse homem procura recuperar o tempo perdido, não pela literatura ou pela arte, mas na vida”.
O percurso vertiginoso de Rubem Fonseca, aumentando exponencialmente a violência a cada lançamento até o fim da década de 1970, culminou numa tentativa de interrupção abrupta. Feliz ano novo, publicado em 1975, tido até hoje como seu livro mais influente, foi censurado por ordem do ministro da Justiça Armando Falcão por acusações de pornografia e imoralidade. O cobrador, por sua vez, foi uma resposta. Ainda mais raivoso, Rubem não fez nenhuma concessão ao regime. Ao contrário do que cria Martins para seus personagens, acreditou no poder da literatura ante o obscurantismo da vida. Há uma crueza sem igual naqueles contos publicados em 1979.
Partindo desses fatos, Silviano Santiago escreveu, naquele mesmo ano, o posfácio de uma edição de A coleira do cão – cujo último conto, que dá nome ao livro, não deve nada aos mestres do policial noir Chandler e Hammett, ao mesmo tempo que antecipa personagens e temas que aparecerão em livros futuros. Para Silviano (1982: 58), “Rubem Fonseca optou por enfrentar a fera sem a máscara das feras”. Em plena ditadura, ou seja, no momento em que a possibilidade de fabulação para driblar o autoritarismo é absolutamente legítima – e os exemplos são muitos, o próprio Silviano elenca alguns, como Chico Buarque e sua “Fazenda modelo”, inspirada em Orwell –, Rubem desmistifica “os recursos da ficção”. Não há espaço para fábulas ou dribles numa realidade que se afigura como incontornável. Esse recurso, que Silviano vai chamar de uma “jogada do romancista”, do ponto de vista formal “é truque, habilidade ou perícia de romancista”, mas, numa interpretação político-social, configura “o elemento por excelência da eficácia do texto literário junto aos minguados leitores de livro no Brasil” (Santiago, 1982: 58, grifo no original).
Este texto é intitulado “Errata”. Escreve Silviano (1982: 57): “onde se lê – um pornógrafo, leia-se – um moralista. A censura se alimenta do que o moralista oferece ao seu concidadão e que as instituições autoritárias não podem digerir: a dramatização dos verdadeiros e cruciais problemas humanos, sociais e políticos de uma sociedade”. Essa definição do crítico será a base para, nos parágrafos seguintes, formular uma visão ainda mais nítida do que seria a ética literária do jogo real-ficção em Rubem Fonseca:
O texto ficcional que se indica a si mesmo como não-ficcional não cria uma descontinuidade entre ele e as representações verbais e diretas da realidade que o homem moderno recebe no seu dia-a-dia, sejam elas as dadas pelo jornal diário, a revista semanal ou o jornal falado da tevê. O texto que estamos falando opera uma incisão na realidade cotidiana do leitor semelhante à operada por um jornal, revista ou noticiário. Com relação a estes, tem, no entanto, pelo menos uma (grande) vantagem: a ficção, mesmo indicando a si mesma como não-ficção, acaba por falar descolada e criticamente da realidade imediata do próprio leitor, descondicionando-o com maior radicalidade, pois propõe, como propõe, à sua reflexão, uma história ficcional (e não acontecida como no caso do jornal). Nesta liberdade de fabular, de inventar, e não na objetividade do jornalismo, nesta liberdade que é a da arte, da criação e da imaginação é que trabalha um romancista ‘realista’ como Rubem Fonseca (Santiago, 1982: 58-59, grifos no original).
Assim, seus personagens “soltos na violência do espaço social urbano, procuram desesperadamente um elo afetivo que os recupere para a coletividade”. Analisando as epígrafes de Os prisioneiros e A coleira do cão, Silviano Santiago coloca em evidência o estar em jogo “a busca de si mesmo, a relação do homem para consigo mesmo e as possibilidades do exercício da sua própria liberdade”. Sobre este segundo livro, o crítico sugere a imposição de uma “dramatização, rica e variada, sobre a meia-liberdade, ou seja, sobre os possíveis do homem” (Santiago, 1982: 61). Essa noção de meia-liberdade me faz pensar em um ensaio de Lucas Lazzaretti a respeito da “casualidade fraca na narrativa contemporânea”. Antes de chegar ao seu objeto de análise, o crítico executa uma retrospectiva da forma do romance e demonstra que a modernidade quis se pensar para além de determinismos universais de destino, dando peso ao empírico, ao particular, ao específico. Contudo, o século XIX não viu essa realização, ficando entre um pouco e outro.
por um lado, as narrativas deixam de ter em seus centros personagens agigantados, podendo voltar-se para o que havia de pequeno – para as casinhas, para as salas de costura e para as farmácias emboloradas, para os pequeno-burgueses, quando muito –; por outro lado, as narrativas ainda possuem aquele ranço incensado do universalismo, agora não mais servindo a absolutas transcendências (o Destino, a Hýbris, a Providência), mas servindo a meias transcendências (a História, a Natureza Humana, a Realidade), não raro vestidas com os trajes da imanência (Lazzaretti, 2021, s.p.)
Esse aspecto meio-transcendental de que fala Lazzaretti pode muito bem casar com a meia-liberdade de Silviano Santiago. Os dois nomeiam, nas limitações da modernidade, uma contingência aguda na movimentação dos indivíduos pelo tecido social. E em Rubem Fonseca, mesmo quando ocorre, a transcendência nunca virá plena. O gozo que ela carrega – seja pela fruição da arte ou do sexo, ou ainda combinando ambos, em contos como “O campeonato” –, é sempre acompanhado de uma dor, de um “ato final”, quase sempre a morte. Como se, a rigor, mesmo capazes de se perceberem como indivíduos, esses personagens, essas vidas – pois é isso o que Rubem Fonseca lhes incute, vida –, estão condenados à agressividade do tudo ao redor. Trata-se, em larga escala, de uma visão que confere às possibilidades da vida urbana, sua matéria primordial – isto é, o exame do aglomerado de seres numa estrutura conhecida como cidade –, um caráter maleável que esbarra na única coisa incontornável: a morte. A agressividade das consequências, e que não raro redunda na morte, é menos algo gratuito do que o limite de uma mobilidade. Em suma, um projeto estético, que causa furor justamente por deslocar essa redundância das classes mais baixas para as mais abastadas. Pensemos em Feliz ano novo. Após executar seu torto plano de (auto)justiça social, os bandidos que chacinam “granfas” numa festa de réveillon voltam para casa e celebram, felizes da vida. E só. Sem consequências. Há, em Rubem, uma materialidade aguda da luta de classes, filtrada pelo espaço urbano. Para a professora e crítica Vera Figueiredo (2016: 152),
a mobilidade dos pontos de vista, a pluralidade das vozes na literatura de Rubem Fonseca está, desse modo, em consonância com o espaço da cidade, que não só é atravessado por vias de circulação, mas está por inteiro em circulação, em circuitos, em idas e voltas, em transportes.
Segundo Silviano Santiago, numa “prosa de moralista latino o que o homem deve buscar é a adequação entre o corpo e a mente, entre a razão e as coisas, um fluir tranquilo entre as quatro partes, de tal modo que o todo se dê de maneira plena e bela”. Contudo, há no mundo de Rubem “um personagem que recusa a transa livre”, o que resolveu “fazer o jogo das aparências na sociedade burguesa”, que acaba por reprimir o “grito solitário, que transborda em revolta e desespero, gerando um desejo sádico (mas nunca “gratuito”, no sentido gideano) de violência” (Santiago, 1982: 63). Esses “desvios do self-made man” são um dos pontos-chave da obra de Rubem Fonseca. O conto “Escuridão e lucidez”, de Pequenas criaturas, publicado em 2002, é um bom exemplo do que mencionamos. Ressoando “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles, a história de um encontro romântico tematiza “o inefável prazer da escuridão plena” (Fonseca, 2011: 238) A rigor, não há aqui nenhuma diferença, a não ser no caráter do dispositivo, das fruições que também fruem os personagens dos primeiros livros de Rubem, seja os contendores de um campeonato sexual ou o executivo que atropela pessoas nas duas partes de “Passeio noturno”.
Esse exorcismo da violência, do qual só a censura parece não saber, como aponta Silviano, está presente em toda a obra de Rubem Fonseca. Ele traz um automatismo de todas as frentes, menos do indivíduo. A morte é automática, a violência é automática, o Estado é automático, mas o indivíduo, que muitas vezes é o próprio narrador, invariavelmente de nome José, pensa. E é esse seu pensar um dos trunfos de Rubem. Mesmo os mais canalhas, os mais corrompidos, ainda são capazes de elaborar, ainda que minimamente – pois tudo tem gradações, do matador de aluguel dos últimos contos à ética do Cobrador, passando por Mandrake e o delegado Mattos –, a sua condição humana que é uma descondição social ascendente.
A animalidade social, que reflete uma forma de, poder-se-ia dizer, continuum involutivo apontado por Gilberto Velho (1996) nas últimas décadas do século 20, contrapondo “padrões amistosos” à rotina da violência física, revela não só uma forma de literatura, mas um Brasil. Ler Rubem Fonseca é ainda constatar com espanto não a violência em seu grau mais puro ou desarmado de roupagens sociais que o brecariam – luxo dos estéreos, tevês coloridas, carrões na garagem, para ficarmos com Silviano Santiago –, mas justamente a violência que não pareceu ter regredido. Aquela violência que galgava os degraus da margem social, de fora para dentro, nos quase sete anos que separam Os prisioneiros de Lúcia McCartney, escancarou os limites e rompeu a moldura que a fixava em um campo restrito a partir de O caso Morel, compondo uma tríade com Feliz ano novo, o caso mais famoso, e O cobrador. Tudo o que veio depois, seja a paródia internalizada de A grande arte e Bufo & Spallanzani ou a seriedade da pesquisa rigorosa e memorialística de Agosto, é um decalque desse processo estabelecido ao longo de uma, chamemos assim, hexalogia do desespero.
Os seis primeiros livros de Rubem Fonseca não apenas fundam sua literatura e criam a forma como ela será lida até hoje. Eles parecem trazer em seu bojo o melhor de Luís Martins, Lima Barreto e Machado de Assis para a segunda metade do século XX, por excelência o século das mudanças, dos avanços irrefreáveis na comunicação, na ordem social, para o bem e para o mal.
O estabelecimento de uma cultura de massas cada vez mais pulverizada com a popularização da televisão e da “cultura jovem”, a partir dos anos 1950, não deixa de ser captada por Rubem. Seu retrato de Lúcia McCartney é perfeito também porque narra uma mulher sem as estereotipias e tiques de que seus narradores masculinos frequentemente usam e abusam – pensemos nos embates de Mandrake e Bebel em A grande arte, a cena de Simone de Beauvoir é um belo exemplo –, mas acima de tudo porque sabe capturar uma liberdade jovem que é o último grito de um movimento – e nisso Rubem foi perspicaz em perceber, seis anos antes de Feliz ano novo, seu livro-profecia por excelência – que seria estrangulado por uma marcha da realidade, incapaz de aceitar um sonho como o dos hippies. Há em sua obra o jogo do real-literário, em que dois mapas sobrepostos parecem indicar pontos que convergem tanto quanto iluminam as zonas de sombra de um e de outro. O próprio início de Feliz ano novo, com a perambulação e a constatação das lojas vendendo televisores “adoidado”, opõe sonho e materialidade na lógica urbana. Enquanto seus personagens pensam e evocam para si destinos menos duros, mesmo que por meio da violência – afinal matar os ricos e esnobes é também uma forma de diminuir os ricos e esnobes –, do lado de fora da narrativa, mas sempre ainda dentro do texto, Rubem opera um sofisticado jogo de descrença.
Em planos gerais, é preciso ler sua produção tendo-se em vista esta operação metalinguística: a realidade literária pega os traços mais agudos de uma hiper-realidade – algo que James Ellroy elevará ao perturbador no final do século –, de uma “imitação da experiência sensível da vida terrena”, para ficarmos com Erich Auerbach (2021: 201), tanto quanto faz crer que o que está nas páginas é o que está do lado de fora. Lado de fora este cujo remédio é a literatura, que carrega em seu interior o signo de uma salvação que não virá pela transcendência, mas sim pelo texto, ele próprio transcendental. Até o fim, sua produção brutalista, nas palavras de Alfredo Bosi, não vai conseguir enxergar possibilidade de redenção para uma sociedade cada vez mais doente. Em vez da paranoia de Thomas Pynchon, outro autor enciclopédico como ele, há aqui um elogio da literatura como único espaço possível de uma transcendência do esmagamento – para nós, “animais de sangue quente”, que estamos aqui fora no formigueiro do real, lendo-o, e sabemos que um dia tudo vai acabar. Ou seja, abrir buracos pela via do texto, ainda que sangrentos, é, ideal ou não, o respiradouro que nos cabe.
O resto é censura.
Nota
*Mateus Baldi é mestre e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio). Foi colunista da revista Época, para a qual organizou 3 edições literárias. Colabora com jornais como Estadão e O Globo. Autor de Formigas no paraíso (Faria e Silva, 2022).
Referências
AUERBACH, Erich. (2021). Mimesis. São Paulo: Perspectiva.
AUGUSTO, Sérgio. (2011). Estreia consagradora. In: FONSECA, Rubem. Os prisioneiros. Rio de Janeiro: Agir.
FIGUEIREDO, Vera Lucia Follain de. (2016). Cotidiano e anonimato nas cidades: a enunciação peregrina de Rubem Fonseca. Scripta, Belo Horizonte, v. 20, n. 39, pp. 148-161, jun.
FONSECA, Rubem. (2010). A coleira do cão. Rio de Janeiro: Agir.
FONSECA, Rubem. (2009). Lúcia McCartney. Rio de Janeiro: Agir.
FONSECA, Rubem. (2023). O caso Morel. Rio de Janeiro: Agir.
FONSECA, Rubem. (2011). O cobrador. Rio de Janeiro: Agir.
FONSECA, Rubem. (2011). Os prisioneiros. Rio de Janeiro: Agir.
FONSECA, Rubem. (2011). Pequenas criaturas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
FONSECA, Rubem. (2010). Feliz ano novo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
LAZZARETTI, Lucas. (2021). A causalidade fraca na narrativa contemporânea. Capitolina revista, post online em 29/08/2021. Disponível em: https://www.capitolinabooks.com/post/ensaio-lucas-lazzaretti. Acesso em: 28 abr. 2023.
MARTINS, Wilson. (2011). Tendências. In: FONSECA, Rubem. Os prisioneiros. Rio de Janeiro: Agir.
SANTIAGO, Silviano. (1982). Errata. In: Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, pp. 57-63.
VELHO, Gilberto. (1996). Violência, reciprocidade e desigualdade: uma perspectiva antropológica. In: VELHO, Gilberto & ALVITO, Marcos (org.). Cidadania e violência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ e Editora FGV.
A imagem que abre o post é de autoria de Lena Bergstein, Série Galáxias, 2018. Fotografia e superposições