
No oitavo post da Série Nordeste BVPS, Karim Helayel (UFRJ) compartilha sua aula “Nordeste, de Gilberto Freyre”. A aula discute o lugar da obra Nordeste (1937) no pensamento de Gilberto Freyre, marcado, segundo Elide Bastos, pela articulação entre patriarcalismo, interpenetração de etnias/cultura e trópico. Nesse sentido, Freyre aponta para os problemas concernentes à estrutura fundiária na região, baseada na monocultura e na escravidão, e para as mudanças sociais promovidas pelo surgimento das usinas, em lugar dos engenhos, o que acarretaria precariedade das condições de trabalho e novas formas de dominação.
A aula será ministrada amanhã, dia 12 de maio, na Graduação de Ciências Sociais do IFCS/UFRJ, e está sendo divulgada no Blog da BVPS como parte do experimento que relaciona ensino e comunicação pública das ciências sociais.
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Boa leitura!
Nordeste, de Gilberto Freyre
Por Karim Helayel (UFRJ)
1. Introdução[1]
– O livro Nordeste se encontra inscrito em um contexto mais amplo da produção intelectual de Gilberto Freyre durante a década de 1930. Podemos destacar os famosos livros do intérprete pernambucano intitulados Casa-grande & senzala, publicado originalmente em 1933, e Sobrados e mucambos, de 1936, que compõem com Ordem e progresso, de 1959, o conjunto por ele denominado “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil”, que contaria ainda com Jazigos e covas rasas (Bastos, 2006). Nordeste é publicado pela primeira vez em 1937, constituindo um dos trabalhos mais importantes de Freyre no período (Araújo, 1994), podendo ser, inclusive, considerado como um livro pertencente ao conjunto da “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil”, embora não fosse a intenção original do autor (Bastos, 2006).
– Conforme discute Elide Rugai Bastos (2006)[2], a unidade explicativa do pensamento de Gilberto Freyre consiste na articulação existente entre “patriarcalismo”, “interpenetração de etnias/cultura” e “trópico”, configuração que surge em Casa-grande & senzala, o primeiro livro que integra a “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil”. Tendo em vista o conjunto, pode-se dizer que Nordeste seria um livro que mostra, de acordo com Bastos (2006: 12), “como as regiões tropicais abrigam formas sociais harmônicas, indagando, ao mesmo tempo, sobre o grau de modernidade a que nelas se pode aspirar”.
– Mas vale a pena pensar um pouco mais detidamente Casa-grande & senzala, antes de adentrarmos a discussão substantiva de Nordeste. Como observa Elide Rugai Bastos (1999: 217), Casa-grande & senzala foi publicado três anos após a instauração do Governo Provisório de Getúlio Vargas, inserindo-se em um quadro no qual o debate sobre a formação nacional comporia “um cenário político em que a centralização administrativa altera o lugar não apenas das regiões como dos grupos que exercem o poder local e regional”. Neste cenário, Casa-grande & senzala responde, ainda seguindo o raciocínio de Bastos (1999: 217), a questões fundamentais à época, dentre elas: “quem é o povo brasileiro? Podemos falar de uma unidade nacional? Podemos pressupor a existência de uma cultura brasileira? Esse perfil corresponde às exigências da civilização ocidental e, portanto, o Brasil pode figurar no concerto geral das nações?”. Estas seriam indagações que estavam sendo colocadas e que circunscrevem também a formalização do livro Nordeste, publicado no mesmo ano de ascensão do Estado Novo.
– Não constitui movimento ocioso recuperar, nesse sentido, a hipótese delineada por Bastos (2006: 15), em seu livro As criaturas de Prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira, que se refere ao fato de que a interpretação de Freyre teria sido “um elemento fundamental no equacionamento político daquele período [a autora se refere à década de 1930], sem esquecer que esse arranjo acabou por marginalizar vastos setores da população nacional”.
– Segundo Bastos (1999), ainda que a interpretação do Brasil forjada por Gilberto Freyre estivesse orientada para a análise da formação nacional, tomando como ponto de partida o desenvolvimento da região Nordeste, particularmente o estado de Pernambuco, sua explicação ganha amplitude em nível nacional. Freyre recupera o diálogo com autores inscritos no passado e em seu presente – especialmente Oliveira Vianna e Paulo Prado – “estabelecendo uma polêmica a respeito da questão racial, do determinismo geográfico e sobre o papel desempenhado pelo patriarcado na configuração da sociedade brasileira, temas sempre presentes nessa bibliografia” (Bastos, 1999: 217). Freyre reconstrói minuciosamente, desse modo, a vida íntima dos grupos sociais que integram a sociedade patriarcal, ao procurar se debruçar sobre o cotidiano vivenciado no complexo agrário-industrial do açúcar, fundando sua concepção sobre a formação social brasileira, como discutimos a partir do trabalho de Bastos (2006), no que se refere à articulação entre “patriarcalismo”, “interpenetração de etnias/cultura” e “trópico”.
– Dois eixos explicativos surgem na interpretação de Gilberto Freyre: “de um lado, a discriminação entre os efeitos da herança racial e os da influência social, cultural e de meio; de outro, o peso do sistema de produção econômica sobre a estrutura da sociedade” (Bastos, 1999: 219).
– Duas forças que operam na reflexão de Freyre: (1) do modelo econômico teria resultado uma dominação patriarcal que se imporia não apenas sobre a família e sobre as pessoas escravizadas, mas também sobre o conjunto dos agregados e dos homens livres; (2) da escassez de mulheres brancas teria resultado a ocorrência daquela “confraternização entre vencedores e vencidos”, que teria permitido a geração de filhas e filhos dos senhores com as escravizadas, com a miscigenação operando, nesse sentido, para Freyre, como o aspecto que corrigiria a distância social entre polos opostos (Bastos, 1999).
– Bastos (2006:13) ressalta que foi através do “patriarcalismo” que teria se constituído a “garantia da interpenetração de valores sociais de caráter diversificado; através dele operou-se a síntese não conflituosa que impediu rupturas”. A tese do patriarcalismo na reflexão do sociólogo pernambucano diz respeito ao papel assumido pela família patriarcal brasileira na estruturação da sociedade. Nas palavras de Bastos (2006: 86):
Resumindo, para Gilberto Freyre, a família patriarcal brasileira formou-se de modo original, produto da colonização portuguesa no trópico e não como forma transplantada de Portugal. Ela será, segundo o autor, o núcleo gerador de todas as relações sociais, que, no Brasil, assumem caráter amistoso afastando o risco dos conflitos resolverem-se por rupturas trazendo transformações estruturais à sociedade. A tese dos ‘antagonismos em equilíbrio’, ponto central da interpretação desenvolvida em Casa-grande & senzala, e posteriormente em outros textos, já aparece desde o início de sua formulação, quando coloca a família patriarcal como objeto privilegiado de sua análise.
– Ou seja, seguindo a leitura de Elide Rugai Bastos (2006), na proposta de Gilberto Freyre, o patriarcalismo teria sido o elemento que garantiria a unidade nacional do país, uma vez que seria através dele que a convivência supostamente harmoniosa e pacífica entre culturas se tornaria viável.
– A casa-grande seria, para Freyre, símbolo de status, o polo da dominação, enquanto a senzala seria o polo da subordinação ou da submissão (Bastos, 1999). O & que conecta os dois termos seria representativo da interpenetração, ressaltando, para Freyre, certa dinâmica democratizante, que corrigiria a hierarquia estabelecida (Bastos, 2006: 12). Em síntese, no Brasil, os extremos possuem forte tendência à conciliação, uma vez que aquela articulação entre “patriarcalismo, etnias/cultura e trópico” seria o que permitiria que “aquelas situações típicas de domínio e submissão, extremas em sua configuração, não levem a uma ruptura no seio da sociedade. Assim, por essa ausência de realização extremada dos tipos, no Brasil se combinam tradição e modernidade, rural e urbano, sagrado e profano, o velho e o novo” (Bastos, 2006: 12, grifos da autora).
2. Uma sociologia do meio ambiente avant la lettre?
2.1. Em primeiro lugar, ao adentrarmos Nordeste, cabe ressaltar que a problemática referente ao meio ambiente é parte constitutiva da explicação mais ampla sobre a formação do Nordeste e da sociedade brasileira, inscrevendo-se na dimensão do trópico. Ao opor o trópico ao determinismo geográfico, Gilberto Freyre procura chamar a atenção para a capacidade de agência de homens e mulheres no sentido de modelar o clima e a natureza, o que seria uma das componentes da tese culturalista de Franz Boas, cujas formulações enfatizam a precedência da cultura sobre a raça e o clima (cf. Bastos, 1999). No prefácio à primeira edição de Nordeste, o sociólogo pernambucano destaca que seu empreendimento tem em vista a realização de uma espécie de “estudo ecológico” da região Nordeste do Brasil. Freyre se debruça diretamente sobre os efeitos sociais decorrentes do tipo de estrutura agrária sedimentada no Nordeste, que teria como base a monocultura da cana-de-açúcar, o latifúndio e a utilização do trabalho da população escravizada. Em suas palavras, o “critério ecológico” teria como
centro de interesse o homem, fundador de lavoura e transplantador e criador de valores à sombra da agricultura, ou antes, da monocultura da cana. O homem colonizador, em suas relações com a terra, com o nativo, com as águas, com as plantas, com os animais da região ou importados da Europa ou da África (Freyre, 1961: XI).
2.2. Ênfase na monocultura: Freyre ressalta a centralidade da monocultura em seu esforço de interpretação social sobre o Nordeste. A articulação entre monocultura, escravidão e grande propriedade de terras cumpre papel decisivo no tipo de formulação proposta por Freyre em Nordeste. A monocultura e o latifúndio gerido tendo como base o trabalho das/dos escravizadas/os teria deformado, argumenta Freyre, ainda no prefácio à primeira edição de Nordeste, o perfil da região, que teria sido esterilizada tanto nas suas fontes de vida quanto de alimentação, bem como pela devastação de suas matas e degradação de suas águas (Freyre, 1961: XII).
2.3. Nordeste e a relação entre humanidade e natureza: de acordo com a fortuna crítica, Nordeste pode ser qualificado como um trabalho dedicado às relações do “homem com a natureza”, ao tomar “como ponto de partida a análise da ‘influência da cana’, base daquela sociabilidade aristocrática da casa-grande, ‘sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil’” (Araújo, 1994: 155).
2.4. Sobre o triângulo rural (engenho, casa e capela): este se impôs à paisagem da região Nordeste, subordinando a água dos rios e dos riachos ao sistema de relações estabelecido “entre o homem e a paisagem embora conservando-se cheia de curvas e até de vontades” (Freyre, 1961: 21).
2.5. Empobrecimento do solo em decorrência da monocultura: “Devastando as matas e utilizando-se do terreno para uma cultura única, a monocultura deixava que as outras riquezas se dissolvessem na água, se perdessem nos rios” (Freyre, 1961: 22). A destruição das florestas tanto pela utilização do recurso às queimadas quanto pelo machado foi, de acordo com o intérprete, um aspecto constitutivo fundamental para o estabelecimento da monocultura.
2.6. Difícil relação entre o grande proprietário de terras e a água dos rios: segundo Gilberto Freyre, o latifundiário teria estabelecido uma relação predatória com os rios da região, tornando-os verdadeiros “mictórios”. Nas palavras de Freyre (1961: 35): “Um mictório das caldas fedorentas de suas usinas. E as caldas fedorentas matam os peixes. Envenenam as pescadas. Emporcalham as margens. A calda que as usinas de açúcar lançam todas as safras nas águas dos rios sacrifica cada fim de ano parte considerável da produção de peixes no Nordeste”. Freyre ressalta que haveria poucos rios no Nordeste que não teriam sofrido com a poluição da produção da cana-de-açúcar, o que teria afetado, inclusive, a construção das casas, que não seriam mais alicerçadas de frente para o rio. Não à toa, Freyre (1961: 35) afirma enfaticamente que os “rios secaram na paisagem social do Nordeste da cana-de-açúcar”.
2.7. Monocultura como “drama”: a história da região Nordeste seria uma “história de desequilíbrio” (Freyre, 1961: 46). Tal desequilíbrio teria sido gerado, argumenta o autor, pela marcante presença de uma estrutura fundiária concentrada e monocultora, que teria gerado a destruição das matas, da vida animal, alterações no clima e no regime das águas da região. Ou seja, de acordo com Freyre, teria sido profunda a cisão entre “o homem e a mata”, bem como com os animais e as águas dos rios, uma vez que a monocultura teria contribuído decisivamente para inviabilizar a reciprocidade de tal relação.
2.8. Relação entre as/os escravizadas/os e a natureza: ainda que a/o escravizada/o tenha desenvolvido uma relação mais próxima e afetiva com a natureza, o sistema de exploração da cana-de-açúcar a/o teria tornado mero instrumento a serviço da construção da civilização do açúcar. Gilberto Freyre recupera o Quilombo dos Palmares como exemplo emblemático de contraposição à monocultura, uma vez que sua população teria se voltado para a policultura, estabelecendo uma relação distinta com a natureza.
3. As relações sociais do complexo canavieiro
3.1. A monocultura e o latifúndio teriam, argumenta Freyre, aristocratizado o branco e degradado os indígenas e, particularmente, a população negra. A monocultura da cana teria engendrado, discute Freyre (1961: 94), os atores sociais que compõem o mosaico do complexo agrário da Zona da Mata nordestina, mais especificamente daqueles que seriam os “dois tipos de homem regional: o aristocrata e o homem do povo”.
3.2. Déficit alimentar nos engenhos, uma vez que, sobretudo na família dos grandes proprietários de terras, a alimentação se dava com base em consumo açucarado, o que teria levado Gilberto Freyre a chamar a atenção para a imagem das “pirâmides de açúcar”.
3.3. A monocultura teria inviabilizado culturas subsidiárias, o que teria impactado diretamente na alimentação senhorial e da população escravizada. O autor lembra que, no Brasil oitocentista, acreditava-se nos benefícios da cana-de-açúcar contra o escorbuto, doença recorrente à época, e que não acometia somente os viajantes marítimos, fazendo-se presente em consequência dos efeitos da monocultura, pois “quando finda a safra de cana, faltavam frutas e legumes verdes aos engenhos mais descuidados dos ‘mantimentos’ e dos pomares; das culturas ancilares” (Freyre, 1961: 98).
3.4. Freyre chama a atenção para a exportação do “gosto do açúcar” pela população negra do extremo Nordeste que conseguiu retornar à África, uma vez que teriam levado para “as aldeias africanas muita coisa do complexo da cana-de-açúcar” (Freyre, 1961: 99). Sendo assim, Freyre ressalta insistentemente que a população negra teria sido parte constitutiva do complexo canavieiro e que, sem ela, a “civilização do açúcar” não teria sido possível. Nas palavras do autor, aquela que seria a “civilização brasileira do açúcar, que culminou em Pernambuco teve de depender do escravo negro de modo absoluto” (Freyre, 1961: 100).
3.5. Formação da família entre os canaviais de Nova Lusitânia: o engenho de Duarte Coelho seria emblemático para Freyre em sua reflexão sobre os matrimônios contraídos entre pessoas pertencentes à mesma família, o que teria levado ao desenvolvimento de uma aristocracia, na visão do autor, “quase feudal” (Freyre, 1961: 102). Assim, ressalta o intérprete, a civilização forjada através da produção açucareira teria criado “juntamente com o tipo de casa nobre, característica dos engenhos, o seu tipo de aristocrata, o seu tipo de escravo, o seu sistema regional de relações entre senhores e escravos” (Freyre, 1961: 104).
3.6. Visão idílica e edulcorada do passado senhorial: ao efetuar a comparação entre os engenhos açucareiros e outros complexos agrários que se formaram no país, Freyre tece uma visão idílica do passado, pois, para ele, no Nordeste, as relações teriam sido mais “doces” nos grandes engenhos, uma vez que as/os escravizadas/os seriam parte da família. Contudo, Freyre não deixa de citar a experiência de desenraizamento vivenciada pela população escravizada, uma vez que ela teria sido violentamente sequestrada de seu meio para ser submetida a um tipo de lavoura que se encontraria em flagrante oposição às suas práticas agrícolas, como foi o caso da “monocultura latifundiária” (Freyre, 1961: 134).
3.7. A supressão de distâncias entre senhores e escravizadas/os teria sido tão exitosa no Nordeste que não teria havido espaço, argumenta Freyre, para uma espécie de ódio da população escravizada contra seus senhores, inviabilizando, a seu ver, a ação coletiva, que teve lugar, por exemplo, nas Antilhas. Se nos voltarmos para o caráter idílico e edulcorado da visão de Gilberto Freyre a respeito da relação entre senhores e escravizadas/os, poderemos perceber que suas raízes se encontram, de acordo com sua interpretação, na suposta “doçura” do tipo de colonização levada a cabo pelo português, marcada pelo “hibridismo”, que contrastaria com os empreendimentos inglês e francês nas Antilhas. A guerra contra os holandeses teria contribuído para uma suposta confraternização entre negros e brancos, que teria favorecido, inclusive, argumenta Freyre, a população negra. O tipo de política portuguesa teria abrandado as contradições entre negros e brancos no Nordeste, ao possibilitar, discute o intérprete pernambucano, certa “elevação social do mulato”, permitindo “amolecer o antagonismo entre a população mulata livre, tão numerosa no extremo Nordeste e no Recôncavo desde o século XVII, e os aristocratas quase feudais dos engenhos” (Freyre, 1961: 113). Podemos lembrar, aqui, da centralidade que tem a noção de “antagonismos em equilíbrio” para o tipo de interpretação do Brasil confeccionada por Gilberto Freyre, formulação que foi amplamente estudada por sua fortuna crítica (Araújo, 1994; Bastos, 2006). A miscigenação no Nordeste teria sido uma marca não apenas dos portugueses, mas de grupos nórdicos que aportaram na região (Freyre, 1961: 127-128).
3.8. Gilberto Freyre registra elogios aos trabalhos do intelectual negro Antônio Pedro de Figueiredo, que se debruçou sistematicamente, dentre outras interpretações forjadas ao longo do século XIX, sobre os problemas da monocultura, do latifúndio e da escravidão. No entanto, Freyre se mostra crítico ao prognóstico delineado por Figueiredo, referente à necessidade de uma reforma agrária que viabilizasse a ascensão de uma classe média, considerando-a romântica quando pensada em um contexto “meio feudal” (Freyre, 1961: 117).
4. Conclusões
– Os grandes males identificados por Gilberto Freyre, em seu livro Nordeste, não residiriam na miscigenação, como havia sido apontado por intelectuais da época, como Nina Rodrigues, mas, sim, no tipo de estrutura fundiária calcada no latifúndio monocultor e na escravidão.
– Usinas e mudança social: Freyre chama a atenção para as precárias condições de salário, de alimentação e de vida do proletariado em algumas usinas, uma vez que, em outras, poder-se-ia notar a assistência patriarcal do usineiro – que conservaria caracteres de senhor de engenho – ao trabalhador. Percebe-se que a continuidade do patriarcalismo na ordem industrial em ascensão, personificada pelas usinas, na visão de Freyre, poderia contribuir para dirimir a precariedade da vida dos trabalhadores. Contudo, a metamorfose do engenho em usina teria acarretado o arrefecimento do patriarcalismo, deixando os trabalhadores, argumenta Freyre, em condições de vida extremamente precárias. Se, como argumenta Elide Rugai Bastos (2006), na proposta de Gilberto Freyre, o patriarcalismo teria sido o elemento que garantiria a unidade nacional do país, uma vez que seria através dele que a convivência harmoniosa e pacífica entre culturas se tornaria possível, a usina moderna surgiria, para Freyre (1961), como um grande fator de desequilíbrio. De acordo com a leitura de Araújo (1994: 157-158), “é como se a transição da casa-grande para a usina conseguisse prolongar e ressaltar apenas o lado despótico da primeira […], descartando totalmente a intimidade, a relativa confraternização que ela também estimulava”.
– “Despersonalização do senhor de açúcar”: a usina encerra formas de dominação impessoais, que contrastam com os contatos diretos e pessoalizados vigentes no complexo dos antigos engenhos. Nos termos de Freyre (1961: 156-157): “A industrialização e principalmente a comercialização da propriedade rural vêm criando usinas possuídas de longe, algumas delas por Fulano ou Sicrano & Companhia, firmas para as quais os cabras trabalham sem saber direito para quem, quase sem conhecer senhores, muito menos senhoras”. Ou seja, conforme discute Araújo (1994), em um contexto de decadência do patriarcalismo, emergem “novas forças” que, além de incluírem relações eminentemente capitalistas, características da usina, impõem às casas e ruas de Recife um padrão rigoroso e coerente, alterando a paisagem.
Notas
[1] Agradeço a leitura atenta e generosa do Prof. André Botelho, cujas sugestões foram fundamentais para a construção da aula proposta.
[2] Remeter-me-ei com frequência, no âmbito da introdução desta aula, à interpretação construída pela Profa. Elide Rugai Bastos, em alguns de seus trabalhos, a respeito das formulações de Gilberto Freyre.
Referências
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. (1994). Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Ed. 34.
BASTOS, Elide R. (1999). Gilberto Freyre: Casa-grande & senzala. In: MOTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. São Paulo: Editora Senac São Paulo.
BASTOS, Elide R. (2006). As criaturas de Prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira. São Paulo: Global.
FREYRE, Gilberto. (1961). Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio.
Imagem: Joana Lavôr, colagem da série Dei Normani, Sicília. Para a disciplina/série Blog da BVPS Nordeste Autopoiesis.