Hospedagem Vale Quanto Pesa | Silviano Santiago, farol e texto coagulado, por Eduardo Coelho

O Blog da BVPS publica hoje o texto “Silviano Santiago, farol e texto coagulado”, de Eduardo Coelho (UFRJ), que se hospeda no ensaio “Liderança e hierarquia em Alencar”, de Silviano Santiago.

O post dá continuidade à Hospedagem Vale quanto pesa, um experimento intelectual e estético inspirado na categoria de “hospedagem” de Silviano Santiago, voltado para as comemorações do seu segundo livro de ensaios, Vale quanto pesa, de 1982. Propomos um exercício de comentário, repetição, suplementação, hospedagem dos 18 textos nele reunidos. Autores e autoras de 40 anos ou menos comentam Vale quanto pesa em seus 40 anos ou mais.

É uma alegria proporcionar esse encontro, ainda mais porque, como espaço de formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes, o Blog da BVPS aposta sempre na conversa entre diferentes gerações.

Acompanhe as postagens da Hospedagem, sempre às segundas e quartas-feiras. Para saber mais sobre a iniciativa, clique aqui.

Boa leitura!


Silviano Santiago, farol e texto coagulado

Por Eduardo Coelho (UFRJ)

Para nosotros, la teoría literaria no es neutral, o sea, no es una reflexión científica completamente separada de lo que podrían ser ciertos debates o enfrentamientos filosóficos, políticos, ideológicos, etc. En el interior de la teoría y desde la teoría se plantean todo tipo de enfrentamientos, debates y luchas: el campo cultural es un campo de enfrentamientos, polémicas, estrategias y peleas por la dominación.

Clases 1985: alguns problemas de teoría literária, de Josefina Ludmer.

Em 18 de dezembro de 1977, o “Suplemento Cultural” d’O Estado de S. Paulo publicava o ensaio “Liderança e hierarquia em Alencar”, de Silviano Santiago, que viria a fazer parte do seu livro Vale quanto pesa (1982). Segundo o editorial do suplemento, esse ensaio estava sendo publicado no contexto das “comemorações em torno do centenário da morte do escritor”, que motivavam “uma revisão dos estudos sobre o romancista, visto agora não só à luz da crítica tradicional, mas de acordo com os novos rumos da crítica moderna”. E que “novos rumos” podem ser observados nesse ensaio de Silviano? Como seu posicionamento se diferenciava da fortuna crítica vastíssima dedicada a um dos autores mais notáveis da literatura brasileira?

Para buscar respostas, não é de menor importância lembrar que, poucos meses antes, os jornais noticiavam o lançamento de Ao vencedor as batatas, onde Roberto Schwarz considerou a ficção alencariana “uma das minas da literatura brasileira”, listando sua importância: “De Iracema, alguma coisa veio até Macunaíma: as andanças que entrelaçam as aventuras, o corpo geográfico do país, a matéria mitológica, a toponímica índia e a História branca; alguma coisa do Grande-Sertão já existia em Til, no ritmo das façanhas de Jão Fera; nossa iconografia imaginária, das mocinhas, dos índios, das florestas, deve aos seus livros muito da sua fixação social”. Em contrapartida, logo depois Schwarz afirmaria: “Isso posto, é preciso reconhecer que a sua obra nunca é propriamente bem-sucedida, e que tem sempre um quê descalibrado e, bem pesada a palavra, de bobagem”, lançando-se então ao estudo da ficção urbana desse escritor, que resultava “do transplante do romance e da cultura europeia para cá” (Schwarz, 2000: 38-39).

Já em “Liderança e hierarquia em Alencar”, Silviano Santiago adotou estratégias que buscavam justamente “mostrar como Alencar ‘adivinhava’ (…) adequadamente o nosso passado, dava-lhe forma segundo os valores que estavam sendo determinantes de uma posição ideologicamente correta dentro do pensamento conservador e independentista do século XIX” (Santiago, 1982: 99). Nesse sentido, com o intuito de mostrar a calibragem da ficção alencariana referente ao seu tempo, Silviano empreendeu alguns deslocamentos: investigou, no lugar do romance urbano, suas obras indianistas; metodologicamente, o comparatismo não se voltou a livros europeus modelares, como era de costume, mas se concentrou nos textos de quem foi “adotando a nova pátria ou já nascidos nela”, que “procuravam definir a si mesmos e à região em gestos de independência (relativa, é claro) com relação à Europa” (Santiago, 1982: 89). Como esclareceu na abertura do ensaio, seu comparatismo ia mobilizar “textos que temos e que envolvem, de maneira descritiva ou ficcional, este território chamado Brasil e este povo chamado brasileiro”; textos que “sempre serviram de farol, para que, com a sua ajuda e luz, se aclarassem tanto a região quanto os habitantes, no tocante aos valores sociais, políticos e econômicos que seriam determinantes da condição de ambos” (Santiago, 1982: 89). Por meio desses textos, Silviano procurou descortinar uma gênese construtiva de imagens em torno do Brasil, de suas dinâmicas culturais, econômicas, sociais e políticas, descolonizando a leitura sobre a produção indianista de José de Alencar, muitas vezes associada ao modelo europeu, como os romances de cavalaria.

Este movimento crítico exigia, primeiro, que o “caminho” fosse limpo, ou seja, reinventado, apresentando novas rotas de investigação: “Qualquer insistência exagerada no fato de que Alencar bebeu e se embriagou em fontes estrangeiras apenas marca a necessidade que tem certa crítica comparatista em marcar o débito do escritor brasileiro, como se a cultura brasileira (assim como a sua economia) só pudesse ser constituída enquanto massa falida” (Santiago, 1982: 99). Em seguida, adicionou esta passagem à sua problematização em torno do comparatismo vigente: “A impressão que se tem, lendo os nossos comparatistas, é a de que toda possibilidade de escolha de um personagem, de elaboração de uma trama – apesar de serem ele e ela nitidamente nacionais – advém apenas desses ‘alguns modelos a seguir’ que nos chegavam de além-mar e que estavam à disposição dos nossos romancistas, assim como os nossos frutos exóticos estavam dispostos para os olhos europeus” (Santiago, 1982: 99). Por fim, acrescentou: “Suas leituras [de José de Alencar] não eram só as literárias que nossos críticos insistem em repetir: Chateaubriand, Fenimore Cooper, Walter Scott, Herculano, romances de cavalaria, etc. Eram também outras” (Santiago, 1982: 99-100).

Assim, Silviano foi desenvolvendo uma nova leitura sobre a relevância da ficção alencariana, valendo-se não dos seus referenciais europeus já conhecidos, mas de leituras outras que atentavam para a construção textual da complexa realidade brasileira, abordando “os problemas da identidade, da liderança e da hierarquia (…), que não existiam aqui por falta de tradição sócio-cultural” (Santiago, 1982: 89). Outros textos do repertório alencariano de leitura, até então à margem da sua recepção crítica, foram então deslocados por Silviano Santiago para o centro da sua instigante análise: afinal de contas, foi através desses textos luminosos que brasileiros tentavam responder à falta de estatutos indefinidos. Em torno dessa questão, em entrevista a Raphael Meciano, o autor de Vale quanto pesa se referiu “ao descentramento” que, nos anos 1970, ele “operava na noção de formação”, relacionando seu movimento crítico “à desconstrução do etnocentrismo (a carta de Vaz Caminha era o melhor exemplo) e até mesmo do falocentrismo (vide ensaio sobre Iracema)” (Meciano, 2018: 439).

É importante destacar que seus deslocamentos críticos, metodológicos e teóricos, identificados em “Liderança e hierarquia em Alencar”, entre outros ensaios, não consiste num movimento de idealização da produção literária brasileira. Contradições e posicionamentos eurocêntricos da ficção alencariana indianista também foram apontados, como na passagem em que trata do romance Ubirajara: “Na lenda, a sociedade é arcaica e histórica. Isso não impede que Alencar retome suas costumeiras comparações, recaindo em perdoável europeocentrismo romântico, pois o fim óbvio do texto é o de comprovar, pela analogia, o valor ‘nobre’ do selvagem” (Santiago, 1982: 102). Portanto, nesse ensaio, estava em questão não apenas o comparatismo da crítica, mas também as comparações que José de Alencar fez em suas obras, que lhe parecem perdoáveis e que de fato o são, pois havia um contexto específico naquela fase da história do Brasil.

Acerca de O Guarani, Silviano constatou: “A barreira entre o mundo dos selvagens e o mundo aristocrático rui ao mero estabelecimento de uma comparação de valor europeu por aquele que mantém a chefia. É importante salientar como Alencar vai separando os indígenas entre os que são recuperáveis como amigos e os que serão para sempre inimigos e destruídos” (Santiago, 1982: 103). Contudo, nessa separação não há uma hierarquização, porque ela existia “para os homens brancos (ou para os que se aproximam deles)” (Santiago, 1982: 104), como esclareceu. Dessa maneira, há duas instâncias de problematização do gesto crítico de comparar: os de uma “certa” crítica brasileira e os de José de Alencar. Há dois tipos de comparação sendo discutidos no ensaio, que vai, de pouco a pouco, manifestando um novo comparatismo, um novo modo de ler o Brasil e sua literatura, relacionados à desconstrução e aos estudos culturais.

A partir desse momento – de ênfase analítica sobre as comparações –, o crítico se concentrou na hierarquização presente em obras indianistas de José de Alencar, cujo papel consistia em “dar uma organização social ao grupo, de buscar um governo que não seja coercitivo, violentou ou arbitrário”, uma organização realizada sobretudo por meio de comparações “com uma ‘realidade’ europeia” (Santiago, 1982: 104). Estas se tornam responsáveis por firmar divisões e subdivisões. As observações de Silviano Santiago em torno desse aspecto são muito reveladoras da sua crítica instigante e provocativa: “Alencar sempre divide e subdivide para classificar hierarquicamente, estabelecendo relações infinitas de diferença, como se estivesse nos dizendo que não há possibilidade de uma repetição do mesmo dentro de qualquer sistema” (Santiago, 1982: 105). De certo modo, a impossibilidade de “repetição do mesmo dentro de qualquer sistema” pode funcionar, inclusive, como argumento que nega um “certo” comparatismo da crítica brasileira não praticante de leituras pós-coloniais.

Em seguida, Silviano nos lançou à primeira conclusão do ensaio “Liderança e hierarquia em Alencar”: “não existe, no reino dos homens brancos e da natureza que os rodeia, possibilidade de uma organização onde as posições não sejam hierarquicamente definidas”, porque “as possibilidades de transferência, de mobilidade, de ascensão, estão banidas do universo textual de Alencar”. A última frase desse primeiro trecho conclusivo é notável: “E o texto literário serve exatamente como efeito de coágulo” (Santiago, 1982: 105). Ou seja, a ficção alencariana, romântica, aglutinava traços da problemática social brasileira, entre outras questões. No entanto, como o próprio Silviano havia alertado pouco antes através de José de Alencar, alguma diferença sempre se manifesta: “Apenas uma exceção é aberta dentro da sociedade branca. Exceção para o selvagem, seja ele índio, seja ele qualquer elemento da natureza que ainda não tenha entrado em contato com o branco. Ele foge à regra porque é livre”. A ideia de liberdade dos indígenas contém uma explicação no rodapé da página: “A liberdade do selvagem é com relação à sua inclusão na sociedade do branco” (Santiago, 1982: 105). Em outras palavras, eram apenas os indígenas que conseguiam alcançar algum “poder de mobilidade” nas obras de José de Alencar, como O Guarani, concluiu Silviano.

A oportunidade de tratar desse romance se tornou também um meio de desconstruir ideias que, na altura da publicação do seu ensaio, já haviam sido consolidadas pela fortuna crítica dedicada às obras alencarianas. Junto desse movimento desconstrutor vai se descortinando, ainda, alguma fluidez no tratamento dessa hierarquização desenvolvida por Alencar, uma hierarquização nem “sempre social”, nos alertou o crítico. Em O Guarani, a problemática do amor se relaciona à problemática da hierarquia: Peri, enquanto indígena, tinha “poder de mobilidade” e estava consequentemente autorizado a ultrapassar uma “barreira” que Loredano, branco e pobre, não tinha condições sociais de superar, dentro da hierarquia mais rígida do Brasil colonial. Além do indígena, apenas a natureza, como o rio Paquequer, tem o “poder de mobilidade” nesse romance. Ambos, Peri e o rio, apresentam uma “ambiguidade social”, conforme Silviano: ela, a ambiguidade, que “permite (…) Peri ser fidalgo e selvagem”; já o “rio é livre, é suserano dos rochedos, é vassalo do rio Paraíba”. A ambiguidade tornou possível que um mesmo personagem, Peri, contenha duas nobrezas, de onde “sairia o chefe da nação tropical” (Santiago, 1982: 108). Esta ambiguidade participou da própria literatura brasileira que, deslocando-se entre referências culturais, funcionava, também, como um estranho farol.

 Silviano Santiago verticalizou sua dinâmica crítica logo após as primeiras conclusões localizadas ao fim da seção II do ensaio “Liberdade e hierarquia em Alencar”. Agora, na seção III, suas conclusões foram tensionadas com outras “forças discursivas” – o estudo de Augusto Meyer sobre O Guarani e os modos de ler dos cientistas sociais dedicados a “examinar também o passado histórico brasileiro”. A noção de diferença entra mais uma vez em movimento. Em certa medida, a terceira seção desse ensaio condensa um repertório teórico que Silviano Santiago estava desenvolvendo nos anos 1970, um repertório que se mostra através do uso de conceitos como “dependente” – no trecho “o texto colonial no Brasil é o farol que ilumina e codifica os novos valores que vão surgindo de maneira anárquica, mas dependente” (Santiago, 1982: 109) – e “entrelugar” – em “A consciência nacional só pode surgir de formas de compromisso, de um entrelugar que passa a ser definidor não mais do puro exotismo europeu, nem da pura exuberância brasileira, mas da contaminação do exotismo sobre a exuberância e vice-versa” (Santiago, 1982: 110). Trata-se de passagens que remetem indiretamente aos textos “Apesar de dependente, universal”, do mesmo Vale quanto pesa, e “O entre-lugar do discurso latino-americano”, do livro Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural (1978).

O primeiro tensionamento com outras “forças discursivas” trata da “Nota preliminar”, de Augusto Meyer, que antecede o romance O Guarani na edição da Obra completa de José de Alencar. Nesse caso, a força discursiva em análise consiste na estilística espanhola, que ocupou, durante boa parte do século XX, um espaço relevante na crítica da literatura brasileira. Não por acaso, Poesia espanhola: ensaio de métodos e limites estilísticos, de Dámaso Alonso, foi publicado no Brasil pelo Instituto Nacional do Livro, em 1960. Silviano fez o primeiro tensionamento considerando, ainda, o formalismo russo, e se valeu da noção de “série literária” para fazer suas restrições. Torna-se evidente que o posicionamento crítico de Silviano se colocava, então, contra tendências imanentistas da crítica, pautadas na defesa do específico literário, nomeado por formalistas como “função poética” ou “literaridade”. Ambas, “função poética” e “literaridade”, sofriam um processo gradativo mas intenso de desconstrução nos anos 1970, de que participavam, inclusive, figuras importantes relacionadas a tendências imanentistas da literatura, como Mikhail Bakhtin.

Na entrevista com Heloisa Buarque de Hollanda publicada no livro Onde é que eu estou?, ela conta: “Aprendi um monte de teorias literárias na faculdade, mas sempre me recusei a trabalhar apenas com elas. Me guiei sempre mais por uma entrevista dada por Bakhtin à revista Novy Mi, em 1972. Ele dizia, meio que brigando com o formalismo russo: o problema que imobiliza a atual teoria literária é a busca obsessiva do que seria o específico literário quando a real importância da literatura está na sua relação com seu contexto cultural.” (Hollanda, 2019: 37). Já em “Liderança e hierarquia em Alencar”, Silviano escreveu: “Preocupa-se ela [a estilística] em perceber apenas os jogos estilísticos e retóricos dentro da frase, numa busca de definição do texto como pertencente ao gênero prosa ou ao poesia, esquecendo-se de que, como nos alerta Roland Barthes, a frase é também sintaxe, é também estabelecedora de hierarquia” (Santiago: 1982: 111), recuperando, assim, a epígrafe do seu ensaio, onde se encontra uma citação do livro O prazer do texto (1973), desse crítico francês.

Nos anos 1970, Heloisa Buarque e Silviano Santiago eram exceções à regra no cenário crítico brasileiro, experimentando novos modos de ler – reveladores de que apenas a análise minuciosa-formal dos textos literários não bastava para responder a uma diversidade de transformações pelas quais o Brasil e o mundo atravessavam. Assim, não competia à crítica atribuir valor (literário ou não literário, prosa ou poesia, boa ou má literatura), mas “explicitar” um “escalonamento de valores” que a literatura nos apresenta na “frase hierárquica”. Exemplo notável dessa mudança epistemológica pode ser constatada no fato de Silviano ter se dedicado tanto à obra de Machado de Assis quanto à obra de José de Alencar, sem estabelecer a costumeira hierarquização de valor que a crítica brasileira tendia a firmar entre os dois escritores referidos do século XIX.

Nesse sentido, o tensionamento de forças relacionado à estilística espanhola (e a tendências afins) desliza em direção às ciências sociais, que também sofrem um questionamento em torno da valoração, mas de outra natureza. Ao problematizar o discurso das ciências sociais, Silviano Santiago escreveu: “Claro está que antes teremos de levantar certa suspeição quanto à validade de se estabelecer, no processo do Conhecimento, uma identidade entre Ciência e Verdade. Todo discurso sobre a região e seus habitantes (descritivo, ficcional, e acrescentemos: científico) é antes de mais nada uma tentativa de reflexão, de interpretação e de valoração” (Santiago, 1982: 112). Logo depois, recomendou: “Ao analisar práticas discursivas, temos de salientar, primeiro, como cada forma tenta impor os seus valores e quais são estes valores, para em seguida investigar como elas constituem uma concorrência de discursos, um feixe, que será então devidamente avaliado pelo intérprete” (Santiago, 1982: 113). Após as seções I e II, em que se encontram suas leituras críticas, no último segmento do ensaio “Liderança e hierarquia em Alencar”, Silviano enfatizou, portanto, a crítica da crítica, teorizando as suas práticas e as práticas com que se confrontava, respeitosamente.

Nesse processo de teorização, há uma intenção desconstrutivista, voltada para modos da crítica (estilística ou sociológica) compreender a retórica. Por causa disso, ao fazer considerações a respeito de Os donos do poder, de Raymundo Faoro, destacando um trecho desse livro (“o feudalismo brasileiro se reduz em consequência, na palavra de um historiador, a uma figura de retórica”), Silviano escreveu: “Aí está o equívoco. O feudalismo não é apenas uma figura de retórica, se por figura de retórica se entende uma imagem gratuita e bela. É uma figura de retórica utilizada para produzir um discurso onde exatamente se dá poder ao Senhor para que possa questionar os exageros do estamento burocrático. O que Faoro não chega a compreender é que a metáfora pode ser infeliz, mas não é ingênua” (Santiago, 1982: 114).

No lugar da retórica enquanto mero procedimento de linguagem, Silviano buscou analisar a frase como instrumento de poder, de hierarquia, a exigir uma leitura política, desvelando a ideologia implicada na literatura, e também na crítica, obviamente. Trata-se de “uma atividade política que se dá através do discurso”, afirmou Silviano, ao fim do seu ensaio. “É o discurso (o nosso, por exemplo) que avança um presente que se mostra com todo o seu inquestionável desejo de poder, ao mesmo tempo que inventa um passado que lhe serve de profundidade” (Santiago, 1982: 114). Se por um lado em “Liderança e hierarquia em Alencar” há uma reflexão em torno do poder feudal brasileiro, por outro Silviano nos lançou uma série de problemas referentes ao poder da crítica, isto é, ao poder que se manifesta por meio da leitura e da criação de sentidos. E certamente, ao discutir a obra de José de Alencar em tensionamento com outras críticas, a estilística e a sociológica, seu ensaio apresenta um novo farol, a iluminar algumas sendas para além da ideia naquela altura hegemônica de formação.


Referências

HOLLANDA, Heloisa Buarque. (2019). Onde é que eu estou?. Organização de André Botelho, Cristiane Costa, Eduardo Coelho e Ilana Strozenberg. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.

MECIANO, Raphael. (2018). Silviano Santiago e a desconstrução: entrevista com Silviano Santiago. Remate de Males, v. 38, n. 1, p. 437-453.

SANTIAGO, Silviano. (1982). Liderança e hierarquia em Alencar. In: Vale quanto pesa. Editora Paz e Terra, pp. 89-115.

SCHWARZ, Roberto. (2000). Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades / Editora 34.

A imagem que abre o post é de autoria de Lena Bergstein, Série Galáxias, 2018. Fotografia e superposições

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