BVPS recomenda | Clarice Lispector: a coragem do medo, de Silviano Santiago

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O Blog da BVPS convida todas e todos para a leitura do ensaio “Clarice Lispector: a coragem do medo”, do escritor e crítico literário Silviano Santiago, publicado hoje no site do Suplemento Pernambuco.  No texto,  o autor trabalha, em um diálogo com Roland Barthes e Thomas Hobbes, o tema do medo na literatura de Clarice.

Abaixo reproduzimos os primeiros parágrafos do ensaio e convidamos os/as leitores/as a terminarem no site do Suplemento Pernambuco.

Boa leitura!

 

Clarice Lispector: a coragem do medo

Por Silviano Santiago

Na inveja do desejo, meu rosto adquiria a nobreza inquieta de uma cabeça de cavalo. Cansada, jubilante, escutando o trote sonâmbulo. Mal eu saísse do quarto minha forma iria se avolumando e apurando, e, quando chegasse à rua, já estaria a galopar com patas sensíveis, os cascos escorregando nos últimos degraus. Da calçada deserta eu olharia: um canto e outro. E veria as coisas como um cavalo as vê. Essa era a minha vontade.

Clarice Lispector, Seco estudo de cavalos

 

O “medo” é conceito capital na filosofia contratualista do século XVII, na Inglaterra. Em meados do século XX, transborda para a literatura brasileira e ganha parceira, a coragem. No ano de 1973, a crítica literária francesa desconfia do título de cidadão que fora oferecido ao medo no século XVII. Três figuras se agigantam em cena aberta. Thomas Hobbes, o filósofo anglo-saxão, autor do Leviatã. Clarice Lispector, que estreou na literatura com o romance Perto do coração selvagem. E Roland Barthes, o francês estudioso da linguagem literária, a ganhar destaque por assinar o ensaio O prazer do texto.

Na exposição sobre o medo, sigo a lição do saudoso mestre em literatura espanhola, José Carlos Lisboa, e inverto a ordem cronológica. Aqui e ali, como ele, me divirto com as arapucas em que me obrigam a cair.

Para epígrafe de O prazer do texto, Roland Barthes elege uma frase de Thomas Hobbes. Cito-a: “O medo foi sempre minha grande paixão”. Especialista em Hobbes, Renato Janine Ribeiro esclarece que a frase, tal como citada por Barthes, é certamente apócrifa. Não está nas obras inglesas do filósofo, nem em seus manuscritos da British Library. Segundo o estudioso paulista, tudo faz crer que a frase é produto doméstico francês. É apócrifa, ou melhor, resultado da reelaboração do clássico Leviatã pela memória de leitura de Barthes. Autêntica, garante Renato Janine, é uma frase semelhante e controvertida que está na autobiografia do filósofo: “minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo”. Parir gêmeos, um deles humano e o outro o medo, não é coisa do Demo brasileiro?

Tanto é coisa nossa, que Roland Barthes poderia ter retirado sua frase da trama de Esaú e Jacó, conhecido romance alegórico de Machado de Assis. Um dos gêmeos, Pedro, poderia tê-la sussurrado à mãe na subida do Morro do Castelo por onde caminha Natividade, grávida de gêmeos, em busca da cabocla vidente. Pedro, o futuro monarquista, teria pensado e sussurrado: Mamãe está a parir gêmeos, eu e o medo.

Profético, o sussurro de Pedro se concretiza no final do século XIX. O medo passa a rondar as sucessivas e definitivas transformações por que passa o Brasil monárquico e escravocrata. De um ano para o outro, a princesa Isabel decreta o trabalho livre e os marechais querem a nação republicana e liberal. Por que o medo de Pedro não poderia figurar-se no romance, como aliás vai figurar, no desastre republicano do Encilhamento?

Desbaratado o relógio financeiro da nação, as fortunas tradicionais, na boa companhia do jovem Estado, entram em ruína, enquanto os novos empreendedores se locupletam. Naquele novo e esperado Eldorado, anota Machado de Assis com a ajuda de Voltaire, negócios e contratos só na bacia das almas. “Tem que vender essa porra logo” – diz o ministro de Estado, enquanto um ministro vizinho aproveita o clima de decadência para “mandar tocar a boiada”.

Pensam que estou a inventar? No capítulo 26 de Esaú e Jacó, intitulado “A luta dos retratos”, o jovem Pedro se dirige à mãe e diz: “Mamãe, Paulo é mau. Se mamãe ouvisse os horrores que ele solta pela boca fora, mamãe morria de medo”. Responde-lhe Natividade: “Meu filho, não fales assim, é teu irmão”. Mais ao final do romance, se lê que quem crê no Tempo acaba por vê-lo “pintado como um velho de barbas brancas e foice na mão, que mete medo”.

Lembra-nos Renato Janine que Hobbes nasce de parto prematuro e durante o “grande medo” de 1588, na Inglaterra. Dadas as circunstâncias do nascimento de Clarice, não seria imprudente aproximar a mescla de dado familiar a dado histórico. A escritora foi concebida em família judia a fugir da Ucrânia, logo depois da Revolução Russa. O bebê nasceu quando a família caía no oco do mundo. Nasce numa desconhecida Tchetchelnik (“Ali apenas nasci e nunca mais voltei”), ao meio de longa e dramática viagem de exílio ao Novo Mundo. “Minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo”.

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