
O Blog da BVPS publica hoje o quinto post do simpósio internacional Mundo Social e Pandemia, uma parceria com a revista Sociologia & Antropologia e a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). A organização é de Andre Bittencourt (UFRJ e editor do Blog da BVPS) e Maurício Hoelz (UFRRJ e editor de S&A).
No simpósio, sociólogas e sociólogos do Brasil e do exterior responderam a um questionário com 4 perguntas, elaborado com a expectativa de indagar as diferentes dimensões sociais da pandemia e os desafios que ela representa para a sociologia. Mundo Social e Pandemia sai às terças e quintas no Blog da BVPS, sempre com as respostas de 5 colegas. Para ver os outros posts da série, basta clicar aqui. As versões originais das contribuições enviadas em inglês e francês são disponibilizadas nesta página, que será sempre atualizado. Para acompanhar as atualizações do Blog, siga nossa página no Facebook.
Hoje teremos como convidados/as:
Sujata Patel, professora honorária do Departamento de Sociologia da Universidade Savitribai Phule Pune, Índia. É ex-presidente da Sociedade Indiana de Sociologia. Autora, entre outros, de Exploring sociabilities of contemporary India (organizadora) e The ISA Handbook of Diverse Sociological Traditions (organizadora).
Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP). Autor, entre outros, de Amazônia: por Uma Economia do Conhecimento da Natureza e Muito além da economia verde.
Marcelo Alario Ennes, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Autor, entre outros, de Diálogos: processos identitários, meio ambiente, patrimônio e movimentos sociais (organizador) e Dossiê Identidades e Poder (organizador).
Bernardo Sorj, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e do Projeto Plataforma Democrática. Autor, entre outros, de Sobrevivendo nas Redes – Guia do Cidadão (em colaboração) e Ativismo político em tempos de internet (em colaboração).
Jeff Hearn, professor do Departmento de Ciências Sociais e Comportamentais da Universidade de Huddersfield, Inglaterra. É também professor sênior da Universidade de Örebro, Suécia; emérito da Hanken School of Economics, Finlândia, e professsor extraordinário da Universidade da África do Sul. Autor, entre outros, de Revenge Pornography: Gender, Sexuality, and Motivations (em colaboração) e Unsustainable Institutions of Men: Transnational Dispersed Centres, Gender Power, Contradictions (organizador).
Boa leitura!
1. Sociólogos/as e cientistas sociais, em geral, estão se mostrando mobilizados/as para produzir e compartilhar interpretações sobre os efeitos sociais e políticos da pandemia. A teoria sociológica está equipada para enfrentar o desafio de compreender/explicar o fenômeno?
Sujata Patel: Penso que não. Porque a discussão sobre pandemias anteriores se restringiu a regiões mais pobres da Europa (gripe espanhola) ou ao Sul Global (HIV, gripe asiática) e portanto esses debates foram limitados pela análise regional associada a diferentes fragilidades internas dos sistemas de saúde regionais, como a natureza da medicina em questão e as desigualdades na distribuição de pessoal e recursos. Hoje, por outro lado, o que vemos é o alcance global da discussão, que ressaltou as inadequações diferenciais da medicina e dos sistemas biomédicos em várias regiões. Como consequência, temos uma abertura epistêmica para compreender uma questão mais fundamental: como e por que a modernidade neoliberal e seus riscos organizam diferencialmente o acesso à saúde pública passando por geografias específicas no mundo e dentro delas em termos do seu acesso por indivíduos e famílias de diferentes classes, castas/raças, gênero, etnias, afiliações religiosas. Uma análise como essa não só permite o reenquadramento do conteúdo da teoria social, mas também propaga o uso de metodologias que podem analisar essa questão em diferentes escalas e, portanto, fazer uma pergunta muito mais ampla, a do impacto diferencial do antropoceno no mundo. Essa janela epistêmica ajudará no distanciamento em relação às posições eurocêntricas sobre o risco representadas por Beck e outros. Ajudará pesquisadores a usar uma abordagem de economia política comparada para compreender como a pandemia do presente é parte dos processos desiguais de acumulação capitalista que promovem as classes médias e por outro lado se relaciona à criação de aspirações hedonistas, ao consumismo, urbanização e migração dessas classes. No Sul Global essas tendências se interseccionam e criam ecologias precárias e instáveis organizadas por meio de mercados de força de trabalho circular informais e desregulados. Dada a sua associação com sistemas administrativos fracos e o apoio de governos de direita que alvejam minorias esvaziando seu acesso a serviços públicos e benefícios sociais, aprofundam-se assim iniquidades, privações e marginalidades.
Ricardo Abramovay: Quando se trata de medir os impactos socialmente diferenciados da pandemia, a resposta é afirmativa e já existem trabalhos mostrando, nos Estados Unidos e no Brasil, por exemplo, que os pobres, os negros e os presidiários (em sua esmagadora maioria pobres e negros) são as maiores vítimas da pandemia. Há teorias e base de dados que permitem testar hipóteses referentes a esse tema.
Mas a pandemia exige inovações teóricas e metodológicas em duas áreas fundamentais. A primeira é a percepção e a gestão de riscos. É um tema que envolve não só os riscos pandêmicos globais, mas também outros “riscos existenciais” (Toby Ord), como o nuclear, o representado pela crise climática e o da inteligência artificial. Os mais importantes trabalhos sociológicos sobre esses temas vinculam esses riscos aos interesses econômicos e políticos dos responsáveis por seu virtual desencadeamento. A difusão de informações (inclusive a informação que denuncia esses interesses) aparece como o principal meio de promover mobilização social no enfrentamento desses riscos. No entanto, por mais que a informação seja importante e por mais que haja, de fato, trabalho explícito e organizado de difusão de mentiras, o que estudos recentes sobre vacinas, homofobia, agressão a estrangeiros, clima e epidemias mostram é que a informação objetiva é largamente insuficiente como meio de alterar a percepção sobre o mundo social. Se a sociologia até aqui tem lidado com este tema a partir de estudos sobre cultura e ideologia, é fundamental incorporar a contribuição da psicologia evolutiva e das neurociências. No caso recente da pandemia, já são vários os trabalhos, com base nessas disciplinas, que mostram o viés partidário na adesão ou na rejeição ao isolamento social como forma de atenuar seus impactos (ver última pergunta). Uma das mais interessantes explicações vindas da psicologia evolutiva e das neurociências é a tendência a que as informações recebidas pelos indivíduos sejam interiorizadas a partir de referenciais que lhes são oferecidos pelos grupos identitários a que pertencem. É claro que a dependência humana dos dispositivos digitais que fazem parte do cotidiano de cada um de nós torna esses mecanismos identitários ainda mais importantes como base para explicar comportamentos sociais. É fundamental que a sociologia incorpore essa contribuição da psicologia evolutiva e das neurociências em sua interface com os impactos do uso permanente dos dispositivos da revolução digital.
A segunda inovação teórica e metodológica que está emergindo com a pandemia refere-se ao uso dos dados produzidos incessantemente pelos dispositivos digitais em que a vida social contemporânea está mergulhada. Até dez anos atrás, as ciências sociais estudavam os comportamentos ou a partir do acompanhamento detalhado de pequenos grupos pelo trabalho de campo do pesquisador ou a partir de dados massivos produzidos por levantamentos censitários e periódicos. A revolução digital abre caminho, pela primeira vez, a que a vida cotidiana seja acompanhada e os comportamentos detectados de maneira massiva e, ao mesmo tempo imediata, como mostra Alex Pentlad. O rastreamento das pessoas mostra-se como um dos principais caminhos para localizar os portadores do coronavírus, por exemplo. Apesar dos inúmeros exemplos em que a coleta, a análise, a armazenagem e o uso de dados podem ser positivos, já há trabalhos denunciando a emergência de uma sociedade de vigilância que é ameaçadora não apenas aos indivíduos, mas à própria sociabilidade humana. A vigilância tende a suprimir o anonimato nos espaços públicos e, portanto, a fazer com que a interação social seja norteada pelo fato de cada um saber que está sendo permanentemente observado (e julgado em função dessa observação). Mesmo em governos democráticos (para não falar dos autoritários) os perigos para a saúde da vida cívica são imensos.
Marcelo Alario Ennes: Acredito que a mobilização das/os sociólogas/os tem crescido significativamente. Aos poucos os dados sobre pandemia têm sido divulgados e muitos especialistas, inclusive sociólogas/os, passaram a se dedicar à tarefa de sua compreensão. Penso que há uma tendência no campo das ciências humanas de que nossa inserção ocorre de modo retroativo sobre o acontecimento, de modo que colegas aguardam o desenrolar dos acontecimentos para iniciar um estudo mais sistemático da pandemia de Covid-19 no que diz respeito a sua dimensão social e sociológica. No entanto, particularmente, entendo que seria possível nossa inserção também ao longo do período de duração desse fenômeno que é também social e, como tal, é matéria de estudos para a sociologia.
Entendo que a sociologia está equipada para explicar esse fenômeno,seja do ponto de vista teórico, seja no que diz respeito à metodologia. Ademais, há estudos no campo da demografia e da sociologia da saúde, entre outras áreas de conhecimentos vizinhas e subcampos da sociologia, que nos fornecem estudos sobre realidades semelhantes em outros contextos históricos e geográficos o que nos garantiria uma base para pensarmos a atual pandemia.
Bernardo Sorj: Como acontece com tantos fenômenos novos do mundo contemporâneo, a teoria sociológica apresenta instrumentos capazes de explicar certas dimensões, enquanto outras fogem dos esquemas analíticos existentes. A quarentena é um fenômeno inédito para as últimas gerações de sociólogos em boa parte do mundo. Não convivemos nem experimentamos situações-limite de alguma forma similares, como situações de guerra, que desestruturam de forma radical o cotidiano das pessoas e o funcionamento habitual da sociedade. Como acontece com situações inéditas, os sociólogos navegarão entre a tendência a mostrar como padrões pré-existentes se atualizaram mas continuaram presentes durante a quarentena, e a ênfase nos fenômenos inéditos. Como sempre é o caso, ambos terão razão. A quarentena, por exemplo, será vivida de forma diferente de acordo com a situação econômica, mas o convívio prolongado dos casais com seus filhos no lar deverá produzir reações muito variadas do ponto de vista das relações de gênero. O impacto diferenciado do coronavírus em termos de faixas etárias relembrou a sociedade que a idade tem dimensões biológicas, que a cultura da “eterna juventude” (em que tudo depende de fazer esportes e manter uma dieta adequada) tinha um lado de miragem, de uma cultura que vive em estado de negacionismo do ciclo biológico.
Jeff Hearn: A teoria sociológica já esteve em algum momento equipada para entender e explicar fenômenos: bem, provavelmente não. Isso deriva em parte do reconhecimento das limitações da “ciência”, da ciência social, e da sociologia, e é em parte uma questão do trabalho entre barreiras disciplinares. Nesse sentido, eu faria uma recomendação contra o imperialismo disciplinar e um apelo pela humildade disciplinar. Com a Covid-19, a disciplinaridade está problematizada, e a inter- e transdisciplinaridades parecem especialmente apropriadas, conforme ressaltado por muitos estudos feministas e pós-coloniais, e mesmo por nossas preocupações, interesses, especialidades e expertise sociológicos especificamente disciplinares.
A Covid-19 força a atenção não apenas para o social e o societal mas para teorias sociológicas que abordam o macro, global, transnacional, trans-societal. Talvez, acima de tudo, uma sociologia histórica de longa duração que incorpore um entendimento disciplinar da centralidade da crise (Bergman Rosamund, Gammeltoft-Hansen, Hamza, Hearn, Ramasar, Rydström ‘The case for Interdisciplinary Crisis Studies’ [Uma defesa dos estudos de crise interdisciplinares], Global Discourse, 2020) seja necessária para compreender e explicar “o fenômeno”. Pandemias e pragas obviamente já ocorreram antes (e provavelmente ocorrerão novamente), então aprender sociologicamente com a historicidade e os processos históricos, como no caso da pandemia de influenza de 1918 que matou entre vinte e cinquenta milhões de pessoas, é necessário. Três diferenças atuais, no entanto, são: em primeiro lugar, a mobilidade aumentada, ainda que por razões muito variadas; segundo, as tecnologias de informação e comunicação; terceiro, a expansão massiva da ciência e da medicina.
Além disso, o fenômeno da Covid-19 é tão ubíquo que parece favorável à abordagem por um multi-perspectivismo diverso na teoria sociológica, em vez de uma posição teórica particular. A Covid-19 parece levantar questionamentos em todas as esferas da vida e da morte, tanto na sociologia como para além dela. A penetração do fenômeno em sua forma e efeitos abrange, por exemplo, da agência à institucionalização, à invisibilidade do poder, aos direitos humanos, às relações entre humanos e animais e humanos-na-natureza, de maneira que um inacabamento relativo ao que eu chamaria de “sociologia total” se aplicaria ao fenômeno.
Outro problema é que a maioria dos estudos sociológicos não estão direcionados para fenômenos biológicos, como a Covid-19 enquanto vírus, embora alguns abordem suas consequências sociais em diferentes sociedades. Mesmo com o forte desenvolvimento global de sociologias do corpo, da medicina, saúde e doença, e mesmo da HIV-AIDS (do “sexo seguro” à “sociabilidade segura”), não é comum que a teoria sociológica se engaje com o conhecimento detalhado das ciências médicas ou naturais, com o conhecimento aprofundado dessas ciências. Esse é mais um incentivo à transdisciplinaridade.
2. Como a sua área de pesquisa especializada pode contribuir para a reflexão sobre diferentes dimensões desse fenômeno?
Sujata Patel: Eu trabalho na interseção entre as áreas da sociologia dos trabalhadores pobres (quase 90% dos trabalhadores da Índia estão nos setores não-formais da economia), urbanização e migração (entre 45%-50% dos trabalhadores do setor informal são migrantes circulares internos) e seu impacto na formação de cidades e centros urbanos na Índia. Minha pesquisa é focada primariamente na cidade de Bombaim, no oeste da Índia, uma cidade representante do moderno capitalismo indiano onde mais de 50% dos cidadãos vivem em favelas densas e superpovoadas sem direito à moradia ou à terra. Essa cidade articula as várias dimensões da crise que vemos hoje: falta de acesso à saúde pública, pouca ou nenhuma preocupação com psicoses associadas à superpopulação mesmo em períodos de normalidade, falta de acesso à água, ao saneamento básico e à moradia, violência dissimulada e explícita contra idosos, mulheres e crianças, e afluxo de migrantes circulares internos de grupos discriminados que competem por empregos e formas de subsistência. Eu publiquei três volumes em coedição sobre Bombaim e neste momento estou tentando construir uma rede de pesquisadores que possa examinar, no contexto presente, processos específicos que dizem respeito a ecologias urbanas e economias desreguladas em Bombaim e suas periferias. Acredito que isso possa ajudar a reconceituar modos de pensar a “experiência urbana” nessa cidade, mas também na Índia em geral. Também edito uma série chamada Cities and the Urban Imperative (Cidades e o Imperativo Urbano) para a editora Routledge que elabora a forma como o investimento intelectual numa modernidade capitalista baseada em centros urbanos pelo Estado-nação indiano criou novas formas de conflito e expôs a população desse Estado-nação a novos riscos ecológico-sociais e de saúde. Eu vejo esse trabalho como um repensar coletivo para compreender o momento presente.
Ricardo Abramovay: A pandemia trouxe à tona a urgência de que os fenômenos sociais sejam pensados à luz de sua base material, energética e biótica. As ciências sociais se constituíram e evoluíram, desde o século XVIII, dando as costas à natureza: isso é verdade não apenas para a economia, mas também para a sociologia, com a única exceção, talvez, da antropologia cultural. Mas os problemas socioambientais contemporâneos intensificaram mudança de postura (que já vinha ocorrendo, claro) em ao menos três sentidos e a Covid-19 deixou isso ainda mais claro.
Em primeiro lugar, a intensificação das doenças infecciosas emergentes nos últimos quarenta anos e a origem florestal dos vetores de suas mais importantes expressões (HIV, SARS, MERS, Ebola, entre outras) agrega uma dimensão adicional à reflexão (e à percepção social) não apenas sobre o desmatamento, mas também sobre as formas de produção de proteínas animais no mundo contemporâneo. Tudo indica que o desmatamento amplie o risco de multiplicação de doenças infecciosas emergentes e a atual pandemia está revigorando o esforço demonstrativo nessa direção. Mas a vulnerabilidade social à pandemia está trazendo à ordem do dia uma outra discussão, que se refere às grandes criações concentracionárias de animais, responsáveis pela oferta global de proteínas relativamente baratas. A base dessa produção é o consumo massivo de antibióticos pelos animais. Hoje, 70% dos antibióticos produzidos pela indústria farmacêutica são consumidos por animais. Seus rejeitos são lançados no solo e na água e sua detecção pelos sistemas de controle sanitário é nula. O resultado é a ampliação da resistência humana a antibióticos, que já mata, segundo dados da ONU, 700 mil pessoas anualmente. Os instrumentos para controlar um ataque bacteriano de larga escala podem estar seriamente comprometidos.
Esse é um exemplo de um segundo tema fundamental: as maiores ameaças às sociedades contemporâneas não se originam em eventuais catástrofes naturais (asteróides e vulcões, por exemplo) e sim em alguns dos mais importantes resultados de conquistas científicas e tecnológicas. Além do já mencionado tema dos antibióticos, os modelos de produção alimentar que deram origem ao consumo em larga escala de ultraprocessados respondem pela epidemia global de obesidade, que, por sua vez, é um fator de agravamento das condições e das chances de sobrevivência dos atingidos pelo coronavírus. Uma inteligência artificial superior à inteligência humana e que escape totalmente à governança de instituições democráticas é considerada por alguns dos mais importantes especialistas no tema (como Stuart Russel, entre outros) um risco iminente. A pandemia traz à tona a urgência não de se limitar o avanço científico e tecnológico, mas de que haja uma postura mais reflexiva sobre sua dinâmica, seus resultados e seus beneficiários.
O terceiro tema fundamental refere-se à campanha que o maior cientista vivo da atualidade, Edward Wilson, vem levando adiante: a necessidade de que se intensifique a relação entre ciências e humanidades. A reflexão social sobre a ciência e a própria economia e a pergunta decisiva sobre o sentido daquilo que a economia e a ciência oferecem à sociedade só podem ser respondidos pela mobilização sistemática das ciências do homem e da sociedade.
Marcelo Alario Ennes: Minha formação como pesquisador resulta da interseção entre os estudos migratórios, estudos sobre identidades, corpo e minha opção pelo referencial teórico e metodológico oriundos do que se possa chamar de sociologia relacional, em especial, a de Pierre Bourdieu. Nessa direção, penso que é possível refletir e mesmo produzir subsídios para políticas públicas, em três frentes que se articulam entre si. 1) Pensar a pandemia e a dimensão do contágio e das mortes a partir do paradigma do embodiment (Csordas), que contempla os conceitos de habitus e hexis de Bourdieu. Nesse ponto, podemos entender o contágio e a morte dele decorrente como objetivação da mobilidade espacial e da vulnerabilidade social expressas pelas condições de habitação, nível socioeconômico (quem pode suportar o isolamento em termos sobrevivência – alimentação, por exemplo), variáveis que se cruzam com classe social, origem nacional, etnia/raça, sexo/gênero. 2) Como já mencionado, a mobilidade espacial é um componente central da pandemia. Como o vírus chegou até nós, como ele circula entre nós? Aqui há questões de extrema relevância que precisam ser elucidas para, inclusive, combater o preconceito, o racismo e a xenofobia. Seria pertinente perguntar qual a dimensão de classe desta pandemia a partir de modalidades de mobilidade: turismo, migração e refúgio. 3) Essa questão nos remete ao debate sobre alteridades/identidades. A imprensa, bem como colegas da área dos estudos sobre migração, vêmalertando sobre o fato de que narrativas racistas e xenófobas têm sido construídas e disseminadas de modo a associar a pandemia a nacionalidades (chineses) e imigrantes de várias origens. Nesse caso, assistimos à reedição do processo de conversão do imigrante em ameaça e, portanto, em “bode expiatório” do problema.
Bernardo Sorj: [Optou por não responder]
Jeff Hearn: A maior parte das áreas de pesquisa em sociologia pode contribuir para o exame de dimensões da Covid-19. Minhas próprias áreas de interesse incluem idade, gênero, sexualidade, violência, TICs, organizações, processos transnacionais; todas essas e outras são relevantes, além de afetadas e desafiadas pelas consequências da Covid-19.
Vou dar alguns exemplos. Em primeiro lugar, relações etárias são parte central de processos sociais inseridos na Covid-19. É difícil imaginar a análise social de ocorrências globais e/ou locais da Covid-19 sem a discussão sobre idade – não enquanto uma propriedade individual fixa ou “idade avançada”, mas como divisão social e relação social que constrói (alguma autoridade relativa a) adultos e ao poder-adulto. Existem óbvias variações na regulação da idade cronológica (65, 70, etc.) em diferentes países, assim como processos sociais mais amplos, implicados na adoção do distanciamento social ou na valoração diferencial das mortes de diferentes grupos etários. Tendo terminado recentemente o livro Age at work (Hearn and Parkin, Sage, 2020) com minha coautora de 83 anos, Wendy Parkin, esses problemas sociais agora me parecem óbvios, como o da “vida ativa após a morte” [living after life] dos mais velhos, e a organização da morte e do pós-morte. Nós percebemos como o pós-morte, e sua organização, pode ser visto como um vírus metafórico, ativado em “vida” pela própria morte. Idade e relações etárias precisam se tornar uma parte regular, desde que problematizadas, da análise sociológica.
Em segundo lugar, perspectivas feministas e de gênero sobre a Covid-19 são essenciais, talvez de forma mais visível no impacto do isolamento doméstico (nos locais onde as pessoas têm casas) sobre as relações de gênero e a divisão sexual do trabalho no sistema de saúde. São assuntos-chave nessa discussão o peso maior do care, cuidado e trabalhos de cuidado sobre as mulheres, além dos assustadores aumentos na violência contra mulheres e na violência entre parceiros íntimos, e também em diferentes formas do gênero no poder estatal e governança, em termos de liderança nacional e internacional masculina e feminina.
Isso leva a uma terceira área, a sociologia das organizações, na medida em que ambientes de trabalho e outras formas de organização são transformadas pela dispersão de espaços, locações e lugares organizacionais, e a casa se torna um local de organização intensiva em conhecimento. Todas essas áreas precisam ser consideradas sob a dialética entre local e transnacional.
3. A pandemia estaria provocando mudanças sociais, políticas e/ou culturais profundas? Ou acelerando tendências já em curso? Se sim, é possível vislumbrar os contornos das sociedades pós-Pandemia?
Sujata Patel: Sim, para ambas as perguntas. A falta de perspectiva e de informação não permitiram que o governo indiano preparasse uma intervenção de curto ou longo prazo para controlar a pandemia. Por causa do neoliberalismo, o sistema de saúde pública da Índia (exceto o do estado de Kerala) estava em crise. Havia falta de pessoal e subfinanciamento de suprimentos médicos, por um lado, e privatização da saúde, por outro, como parte de uma política neoliberal. Não havia kits de testagem e equipamentos de proteção para os trabalhadores da saúde, ao mesmo tempo em que a privatização dava acesso ao tratamento para pacientes de renda mais alta.
A falta de preparação para lidar com a pandemia como um problema de saúde, e de conhecimento sobre como resolver uma crise de saúde pública (nesse caso, a necessidade de isolar, quarentenar, e conter a transmissão comunitária a partir dos que trouxeram o vírus para o país, especialmente os viajantes internacionais dos estratos sociais mais elevados) e a falta de suprimentos (como kits de testagem) permitiram que o governo fosse otimista no início (enquanto os números eram baixos já que a testagem era mínima) e depois interviesse com duas políticas: o lockdown por todo o país e o distanciamento social, ambos a serem administrados pela polícia sob o comando das autoridades provinciais que, por sua vez, também não estavam preparadas para lidar com a pandemia. O lockdown foi planejado para os proprietários de casas com possibilidade de praticar isolamento (entre 10% e 15% da população) e não para a população urbana densamente disposta (50% a 60% no oeste e no sul da Índia) em favelas superpopulosas cuja maioria é feita de trabalhadores diaristas, eventuais e de empreitada dos quais quase 50% são migrantes circulares de curto prazo. Isso isolou as classes médias e altas dos grupos desprivilegiados rompendo vínculos de confiança, cuidado e atenção que se desenvolveram para organizar redes informais de relações econômicas e sociais que trocavam bens e serviços entre comunidades de diferentes classes. Provocou o agravamento do estigma de casta, do preconceito e discriminação. O lockdown bloqueou as possibilidades de geração de renda dos trabalhadores, deixando-os desassistidos e forçando-os a caminhar por semanas até seus vilarejos de origem, o que causou muitas tragédias. Além de paralisar os sistemas de economia e confiança que os organizam por meio de vínculos econômicos e sociais de cuidado, atenção entre classes e filiações comunitárias.
Ricardo Abramovay: Do ponto de vista político, pela primeira vez, desde o Brexit, a eleição de Donald Trump e de outros governos autoritários, os governantes que enfrentaram a pandemia negando sua importância e dirigindo-se (como de hábito) a suas bolhas de repetição e redundância (é o caso de Trump e de Bolsonaro) ganharam muito menos prestígio que aqueles que conseguiram unidade nacional em torno das orientações vindas das autoridades de saúde pública. A pergunta que essa constatação traz é se esse é um evento passageiro ou se pode marcar a crise de um estilo de comunicação (apoiado no próprio formato das tecnologias digitais contemporâneas) em que a disseminação do ódio e da falsidade abriu caminho ao poder da extrema-direita mundo afora. Ao que tudo indica, os maiores sucessos no combate à pandemia foram obtidos por governantes que inspiraram na sociedade os sentimentos de confiança e solidariedade e não os que reforçaram os ressentimentos e as mensagens de natureza conspirativistas.
Do ponto de vista social e cultural, é óbvio que a vida on-line vai intensificar-se ainda mais. No Brasil esse aumento é especialmente importante em grupos etários com mais de 50 anos e nas classes C, D e E, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva (Valor Econômico, 23/04/2020, p. A16). Como os programas de assistência (tanto oficiais como privados) são on-line, isso forçou que camadas de baixa renda, frequentemente vinculadas a mercados locais e sem condição de estabelecer comparações de preços, entrassem em mercados que até então não faziam parte de seu universo (apesar de suas óbvias limitações de renda para isso). A contrapartida é que, de forma geral, esse pequeno comércio corre o risco de passar por uma trágica fragilização: basta lembrar que 18 milhões de pessoas trabalham em bares e restaurantes no Brasil e que, além do impacto da interrupção de suas atividades, a reabertura será guiada por normas que nem sempre eles terão condições de seguir.
Não há sinais, por parte do mundo corporativo, de que a pandemia seja uma espécie de ensaio geral para que seus investimentos se dirijam a bens e serviços que fortaleçam o desenvolvimento sustentável. Apesar de todo o movimento empresarial (no Fórum Econômico Mundial, por exemplo) para que se enfrentem as mudanças climáticas, na China e nos Estados Unidos não só houve relaxamento da legislação ambiental como, ao que tudo indica, uma retomada de investimentos de longo prazo em setores de alta emissão de gases de efeito estufa.
Marcelo Alario Ennes: O presente e o futuro dependem das disputas e correlações de forças em curso. Portanto, é difícil prever a direção das mudanças sociais. Não obstante, podemos imaginar ao menos dois cenários. Em relação à mobilidade humana, até o momento é previsível que imigrantes e refugiados continuem sendo utilizados como ameaça e sirvam de pretexto para maior seletividade da circulação de pessoas no plano global, o que continuará a resultar no cerceamento de direitos, formas de discriminação e opressão, vulnerabilizando ainda mais aqueles grupos, por um lado, e mantendo o status quo em que forças ultraconservadoras são hegemônicas.Um segundo cenário, que foge ao meu campo de estudos, tem a ver com como e por quem as sociabilidades virtuais serão apropriadas. Darão origem a novas dinâmicas de aproximação e solidariedade entre indivíduos, grupos, nações etc.? Terão o poder de amplificar e potencializar pautas de caráter pós-materiais voltadas a equidade, justiça social e sustentabilidade ambiental, social e econômica? Ou serão apropriadas pelas forças hegemônicas e se converterão em novas formas dominação e exploração?
Bernardo Sorj: A pandemia deverá agravar tendências pré-existentes, com consequências políticas difíceis de prever: 1) Como acontece com grandes crises econômicas, o saldo será o aprofundamento da desigualdade social, e, em particular, o número de pessoas desempregadas e empobrecidas. Além dos efeitos econômicos imediatos, as empresas aproveitarão para fazer cortes de pessoal e salários, e acelerar o crescimento do comércio virtual aprofundando a crise do comércio varejista off-line. 2) Aprofundamento da polarização político-cultural entre setores da sociedade que aderem à produção de conhecimento e informação associado ao campo científico e jornalístico, e aqueles que consideram seus líderes políticos, que promovem uma política de desinformação e intoxicação como única fonte de informação confiável. 3) Deverá aumentar o sentimento de “colapso do futuro” pré-existente. Se por um lado ele pode favorecer uma maior sensibilidade frente a temas como a crise ambiental, também alimentará visões de mundo religiosas e/ou que idealizam o passado, gerando um saudosismo que poderá ser aproveitado por grupos reacionários. 4) Difícil prever como a maior conflitividade social se expressará em termos políticos, mas a crise exigirá dos partidos de centro-esquerda um reposicionamento mais à esquerda ao mesmo tempo em que enfrentarão o dilema de ter que, em muitos países, se unir ao centro-direita para excluir partidos de extrema direita dos pactos de governo. Os contornos e dinâmicas políticas das sociedades pós-Pandemia deverão ser diferentes em cada país e regiões. 5) A eficácia do uso de sistemas eletrônicos para controlar o movimento das pessoas e diminuir a disseminação do vírus acelerou o uso de sistemas de vigilância pelo Estado, e legitima os novos métodos de vigilância da população, inclusive em sociedades democráticas. 6) A crise levará a um aprofundamento do confronto entre a China e os Estados Unidos, desestabilizando ainda mais o sistema internacional, aumentando as pressões sobre o resto dos países para escolherem um dos lados. 7) A maior intervenção do Estado na economia deverá levar a teoria sociológica a rever a visão dominante nas últimas décadas, influenciada pelo impacto do neoliberalismo e da globalização, na qual o Estado foi reduzido a um instrumento dos grupos dominantes. Devemos ter uma visão mais ampla do Estado, que, sem excluir a dimensão dos interesses de classe, considere que as fontes de poder, as funções e a legitimidade do Estado não são redutíveisà promoção de interesses de classes.
Jeff Hearn: Essa questão se relaciona com a primeira. Ela me lembra da importância da historicidade ao mesmo tempo em que nos leva ao mundo da futurologia e da sociologia do futuro. É necessário colocar mais ênfase na orientação para o futuro em sociologia e no pensamento sociológico sobre o futuro, considerando implicações e cenários societais e a velocidade de suas mudanças; passei a ficar mais convencido disso com a idade, mesmo que orientações históricas e para o futuro venham sendo desvalorizadas em algumas tendências sociológicas recentes.
Ao mesmo tempo em que muitas crises (trans)societais levaram a transformações subsequentes, muitas não o fazem. A Covid-19 aprofundou antigas desigualdades, como os impactos maiores sobre os pobres, a classe trabalhadora, os negros, pessoas de minorias étnicas, migrantes e refugiadas, e trouxe outras desigualdades, entre por exemplo: os que podem e não podem se isolar; podem e não podem se mudar; os mais e os menos vulneráveis ao vírus. Essas divisões não desaparecerão facilmente.
Três exemplos de uma mudança mais ampla dizem respeito, primeiramente, a como a pandemia afeta as relações complexas entre nacionalismos (nações) e transnacionalizações (transnações). Tanto o poder dos Estados-nação quanto das corporações transnacionais pode ser simultaneamente fortalecido: no primeiro caso, aparatos de vigilância, (ab)usos estatais da ciência e populismos podem se institucionalizar; no segundo, corporações globais e capitalismo de vigilância (Zuboff, The Age of Surveillance Capitalism, 2019) podem esmagar pequenos negócios. Esses processos promovem elites sociais específicas dominadas por homens, com centros transnacionais dispersos (Hearn, Vasquez del Aguila and Hughson, Unsustainable Institutions of Men, 2019), e formas emergentes de “nacionalismo transnacional” e “transnacionalismo nacional(ista)” nas visões de mundo e sentimentos.
Em segundo lugar vêm a forma, a substância e as contradições da sociabilidade, com o incremento do individualismo e a possibilidade de novas solidariedades. A diminuição do contato físico pode ser acompanhada por um senso maior de communitas, e categorizações com fronteiras menos definidas da/na interação, amizade, vizinhança, sexualidade, casamento, família, organização, política, divisões sociais, e mesmo os sentidos profundos do social e da socialidade. Individualismo privatista e orientação para a família, communitas pública, o Estado e corporações transnacionais podem ser todos estranhamente reforçados.
Em terceiro lugar, e ligada a isso, está a normalização acoplada e generalizada da vida digital. A pandemia pode ser um meio para a tecnologização, automação e descartabilidade do humano. O Hikikomori não é mais uma forma social minoritária, e a turvação de fronteiras entre on-line e off-line não é mais território exclusivo dos mais jovens, mas algo bem conhecido em várias gerações.
4. Que obra(s) da sociologia e das demais ciências sociais podem nos ajudar a compreender e a conversar sobre os desafios em curso?
Sujata Patel: Já que eu argumentei que o momento abre uma janela epistêmica para a compreensão da articulação de processos profundos de desigualdade, uma nova perspectiva se anuncia relativa ao risco e à confiança. Assim, além dos trabalhos de referência sobre confiança (Luhmann, Sztompka, Giddens) e risco (Beck e seus colegas), há uma necessidade de reorientar esses conceitos para os problemas e processos do Sul Global. Para isso, é necessário conduzir oficinas em diversas regiões e localidades a fim de perceber as interseções desses processos complexos que acontecem mundialmente.
Ricardo Abramovay: O mais importante trabalho sobre os limites da informação clara e objetiva como base para a mobilização social no enfrentamento à crise climática é de George Marshall: Don’t even think about it: Why our brains are wired to ignore climate change. O livro de Daniel Kahneman (Think fast and slow) é uma referência importante, sobre a contribuição da psicologia evolutiva ao estudo da percepção social. Esses trabalhos, bem como os de Paul Slovic inspiraram pesquisas realizadas durante a pandemia e que procuram explicar as atitudes dos indivíduos a partir de seus sentimentos identitários de pertencimento. Cito três em um conjunto maior: “Polarization and public health: partisan differences in social distancing during the coronavirus pandemic”, “Risk perception through the lens of politics in the time of the Covid-19 pandemic” e (este com resultados para o Brasil) “More than words: leaders’ speech and risky behavior during a pandemic”. Sobre riscos existenciais (nuclear, pandemias, clima e inteligência artificial) a melhor obra é o recém lançado The Precipice, de Toby Ord. Vale acompanhar os trabalhos do Center for the Study of Existential Risk da Universidade de Cambridge e o Future of Humanity Institute de Oxford. O melhor trabalho para entender por que razão a Inteligência Artificial pode ser considerada um dos quatro riscos existenciais é o de Stuart Russel: Human compatible. São muito importantes também o livro de Brett Frischmann e Evan Selinger, Re-engineering humanity, e o de Shoshana Zuboff, The age of surveillance capitalism.
A reflexão sobre os riscos das criações concentracionárias de animais e seus impactos potenciais no enfrentamento de doenças infecciosas é enriquecida por uma publicação da UN Environment: Frontiers 2017: emerging issues of environmental concern, que contém um capítulo sobre a dimensão ambiental da resistência antimicrobiana. Sobre as ameaças representadas pelo desenvolvimento (e pela autonomização) da ciência e da tecnologia no mundo contemporâneo O princípio responsabilidade de Hans Jonas segue sendo uma referência incontornável. Sobre a relação entre ciências e humanidades, da obra de Edward O. Wilson, eu destaco A criação e O sentido da existência humana.
Marcelo Alario Ennes: Penso que os autores que dialogam com a perspectiva relacional têm muito a contribuir. Por exemplo, Norbert Elias para pensarmos a pandemia como expressão de configuração social. Bourdieu para pensarmos o processo de incorporação, bem como o campo de disputa em que nos encontramos por meio de seu sistema conceitual (habitus, hexis, campo, capita e estratégia) – em obras como Meditações pascalinas, Senso prático e “Notas provisórias sobre a percepção social sobre o corpo”. Já Giddens e Ulrich Beck para pensar a associação imigração, coronavírus e risco. Recomendaria também estudos que tratam do imigrante como ameaça.
Bernardo Sorj: Para entender o momento atual podem ajudar as seguintes leituras: 1) A trilogia de Michael Mann, The Sources of Social Power, que trata o poder do estado como uma dimensão não redutível dos sistemas sociais. 2) Eric D. Weitz, Weimar Germany: Promise and Tragedy, e em geral livros sobre o período entreguerras, pois, apesar de óbvias diferenças, existem também similitudes e lições relevantes para os tempos atuais. 3) Livros sobre economias de guerra, para entender o momento econômico atual e seus possíveis desdobramentos, como o de Alan Steele Milward, War, Economy and Society, 1939-1945. 4) Estudos de psicologia social sobre os efeitos de confinamento individual e impacto da guerra nas populações.
Jeff Hearn: Conforme apontado no que diz respeito à segunda questão, penso que a maior parte das áreas de pesquisa em sociologia podem contribuir para a compreensão e o diálogo sobre esses desafios. O trabalho da sociologia feminista, de/pós-colonial, histórica e orientada para o futuro é especialmente importante, assim como a transversalidade entre disciplinas, seja isso conceituado como pensamento interdisciplinar, transdisciplinar ou pós-disciplinar.
Em termos de textos ou gêneros textuais mais específicos, há muitos que são de utilidade. A pandemia me fez retornar a um interesse de longa duração sobre os debates acerca das relações de produção e reprodução. Em resumo, a frequente priorização, na sociologia, da economia e produção sobre a reprodução e capacidade geradora da sociedade, nos sentidos mais amplos, precisa ser questionada. Compreensões mais dialéticas, e mesmo mais sutis e complexas das relações econômicas, de produtividade e geração e bem-estar são necessárias, como se pode ver durante a pandemia na questão envolvendo a segurança corporal humana e a “segurança produtiva” da economia. Isso me lembra de como esses assuntos apareciam em algumas agendas de diversos textos feministas da antropologia crítica, sociologia e ciência política no final dos anos 1970 e início dos 1980 (como em O’Brien, The Politics of Reproduction, 1981; MacKintosh ‘Reproduction and patriarchy’, Capital and Class, 1977; Edholm, Harris and Young ‘Conceptualising women’, Critique of Anthropology, 1977). No meu modo de ver, essas perspectivas se ligam com muitos textos e debates de/pós-coloniais, de Fanon (The Wretchedofthe Earth, 1961) a Mbembe (‘Necropolitics’, Public Culture, 2003). A abordagem desses tipos de questões complexas precisa de cooperação transnacional “norte-sul” de pesquisa e colaboração entre cientistas sociais e de outras áreas, não de nacionalismo metodológico. Esse não é um ambiente para o comportamento altamente individualista, egoísta, nacionalista e mesmo agressivo, opressor e francamente antifeminista de alguns cientistas (sociais e de outras áreas). O trabalho do International Panel on Social Progress (IPSP) é uma tentativa recente de grande escala de cooperar transversalmente passando por várias disciplinas e tradições de maneira colaborativa, envolvendo mais de trezentos cientistas sociais. Nesse trabalho, a necessidade de lidar com desacordos entre escolas e disciplinas de maneira apropriada, e de humildade, respeito, racionalidade crítica e da possibilidade de concordar em discordar está em primeiro plano (Rethinking Society for the 21st Century: Report of the International Panel on Social Progress. 3 Volumes, 2018).
***Uma versão revisada do simpósio se encontra publicada em Sociologia & Antropologia, n. especial, v. 11/2021, no link: http://www.sociologiaeantropologia.com.br/v-11-n-especial/
A imagem que acompanha este post é:
Piet Mondrian. Composition in line, 1916-1917, Kröller-Müller Museum, Otterlo, Holanda.

* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da BVPS.
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