
Na atualização de hoje do blog da BVPS publicamos um simpósio especial sobre o livro Os aprendizes do poder, de Sérgio Adorno, professor titular da Universidade de São Paulo (USP). A obra, originalmente publicada em 1988 e que ganhou nova edição em 2020, recupera a formação dos bacharéis de direito de São Paulo no século XIX para discutir os caminhos e impasses do liberalismo no Brasil. Na quinta-feira (04/03) publicaremos um texto inédito do próprio Sérgio Adorno sobre a pesquisa para sua tese de doutorado, que resultou na obra hoje clássica, com reflexões, a partir do presente, sobre alguns de seus argumentos.
O simpósio foi organizado por Maurício Hoelz, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que também assina a apresentação, e contou com as respostas de:
André Botelho, professor do departamento de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Autor, entre outros, de O retorno da sociedade: política e interpretações do Brasil (2019) e República e democracia: impasses do Brasil contemporâneo (2017, com Heloisa Starling).
José Murilo de Carvalho, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor, entre outros, de Jovita Alves Feitosa Voluntária da Pátria, Voluntária da Morte (2019) e Clamar e agitar sempre: os radicais da década de 1860 (2018).
Lilia Moritz Schwarcz, professora titular do departamento de antropologia social da Universidade de São Paulo (USP) e Global Scholar e professora visitante na Universidade de Princeton (EUA). Autora, entre outros, de A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil (2020, com Heloisa Starling) e Sobre o autoritarismo brasileiro (2019)
Marco Aurélio Nogueira, professor titular da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Autor, entre outros, de As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo (2013) e Potência, limites e seduções do poder (2008).
Wanda Capeller, professora catedrática emérita da SciencesPo-Toulouse, pesquisadora no Centre de Théorie et Analyse du Droit da Universidade Paris X-Nanterre e pesquisadora associada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Autora, entre outros, de Homage à André-Jean Arnaud (2019) e Relire Giddens: Entre sociologie et politique (2011)
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Teoria sociológica do medalhão, por Maurício Hoelz
Os aprendizes do poder é um magistral estudo de sociologia política sobre a formação cultural – liberal – dos políticos profissionais da sociedade brasileira sob o regime monárquico. Mas é bem mais do que isso. Em texto elaborado especialmente para a edição deste simpósio em que reflete sobre o horizonte de expectativas do livro ontem e hoje – o futuro passado de suas duas edições –, Sérgio Adorno formula como pergunta (que liga e baralha as distintas temporalidades, por meio do processo histórico-social mais amplo) o anacronismo do Brasil contemporâneo: “Como explicar que, embora à frente dos negócios públicos, liberais houvessem contribuído para sedimentar o conservadorismo e o autoritarismo na sociedade brasileira? O liberalismo justamente não se opunha à tradição, ao escravismo, ao patrimonialismo?”. Analisando as formas de socialização de seus portadores sociais, Adorno flagra os fundamentos e a dinâmica conservadora do liberalismo no Brasil, encarnado em práticas e na forma de organização do poder e da dominação. O aparente paradoxo, portanto, se revela um conluio: o liberalismo é, desde a independência, sócio do conservadorismo, e em nenhum momento apoiou os movimentos populares que poderiam ter estabelecido as bases sociais da democracia. Assim, a investigação histórica de Adorno sobre a cultura política dos bacharéis em direito que detinham tradicional monopólio nas carreiras das burocracias civil e estatal acompanha a constituição das nossas classes governantes e seus artifícios. E a ascensão desses mandarins brasileiros lhe permite capturar, numa espécie de teoria sociológica do medalhão (para jogar com o célebre conto de Machado de Assis), a gênese de um ethos autocrático, sombra sempre à espreita da democracia, que a assalta em situações de crise do poder burguês.
Esse livro sobre a “difícil síntese entre igualdade e liberdade no pensamento e na vida dos contemporâneos”, como resume Sérgio Adorno no posfácio à nova edição, nos ajuda, portanto, a ganhar perspectiva para entender a persistência de um princípio autoritário de controle da mudança na sociedade brasileira e os dilemas e as reviravoltas na espiral da nossa frágil democracia. O lugar de Os aprendizes do poder é não só na estante ao lado dos melhores clássicos de interpretação do Brasil, mas sobretudo nas mãos de estudantes, docentes e cidadãos desafiados pelo perene aprendizado social da democracia. O que esse livro agora reeditado, escrito como tese de doutorado na USP em 1984 e publicado em 1988 à luz das promessas emancipatórias inscritas no retorno ao estado de direito após duas décadas de regime ditatorial, nos ensina no nosso opaco momento presente de escalada autoritária, em que o uso aparentemente ritual ou instrumental das instituições democráticas serve para colocar a própria democracia na berlinda, sob ameaça e ataque? É isso que os convidados do simpósio buscaram e nos ajudam a responder.
1. Como foi o seu contato com Os aprendizes do poder?
Andre Botelho: A primeira vez que li Os aprendizes do poder terá sido entre 1995 e 1996, logo no início do meu curso de mestrado em Sociologia, na Unicamp, mas já não me recordo se por indicação da minha orientadora Elide Rugai Bastos ou de Octavio Ianni. Lembro-me de conversar com os dois professores a respeito do livro. O certo é que o livro foi muito importante para a formulação e o desenvolvimento da minha dissertação, defendida em 1997 e, após ampla revisão, publicada em 2002 pela Editora da Unicamp sob o título Aprendizado do Brasil: a nação em busca dos seus portadores sociais. Ao pesquisar a obra ensaística e paradidática de Manoel Bomfim, precisei discutir esse fenômeno social central surgido na Primeira República que é a defesa da educação como redenção do atraso brasileiro, para o qual concorreram tanto os critérios liberais e conservadores como, sobretudo, os positivistas. O livro de Sérgio Adorno me ajudou a dimensionar o quanto o debate sobre educação envolvia – e envolve – ideais mais amplos e concorrentes de sociedade e modernidade; além de caracterizar uma das posições mais importantes em questão, a dos bacharéis em direito como portadores sociais de um projeto de modernização liberal da sociedade brasileira.
José Murilo de Carvalho: O livro, cuja primeira edição é de 1988, tocava em dois temas sobre os quais eu vinha trabalhando. O primeiro, objeto de minha tese de doutorado, publicada em parte em 1980, era a presença avassaladora dos bacharéis em direito, primeiro dos coimbrões, depois dos formados nas duas academias criadas no Brasil, a de São Paulo e a do Recife, na estruturação e na gerência do Estado brasileiro (entre 1840-1853, 65% dos ministros eram formados em direito). O segundo, em que começara a trabalhar, era o pensamento político no Império, quase todo ele produzido também por juristas. Por essa razão, o livro, embora sem haver diálogo com o meu, pareceu-me familiar e bem-vindo: expandia e aprofundava o estudo do papel dos bacharéis, dando à análise um viés mais sociológico do que político, como fora meu caso.
Lilia Moritz Schwarcz: A edição de Os aprendizes do poder que tenho em minha biblioteca data de 1988. Nessa época eu já havia publicado o meu mestrado, chamado Retrato em branco e negro, e estava cursando o doutorado, cujo resultado seria o livro Espetáculo das raças. Penso ter sido a minha orientadora, Manuela Carneiro da Cunha, quem destacou como seria importante ler a obra de Sérgio Adorno, uma vez que ele tratava da Academia de Direito de São Paulo no mesmo contexto por mim abordado. A minha pesquisa versaria, em um de seus capítulos, sobre as Faculdades de Direito no Brasil, e, portanto, a leitura desse texto de Adorno representava, segundo ela, um ótimo ponto de partida. Mas foi muito mais: virou ponto de partida e de chegada. Em primeiro lugar, pois me permitiria entender não apenas as ideias e teorias que por lá circulavam, mas também os agentes e suas manipulações. Segundo, pois, como meu tema era a questão racial, foi possível avaliar de que maneira no Brasil combinaram-se dois modelos em princípio (mas não na prática) opostos: o liberalismo como teoria do indivíduo e o racismo enquanto teoria dos grupos em suas potencialidades – positivas e negativas. Os aprendizes do poder foi fundamental para que eu explorasse essa perspectiva que se revelou central para a minha própria tese.
Marco Aurélio Nogueira: Li Os Aprendizes assim que foi publicado, em 1988, alguns anos depois da conclusão da minha pesquisa de doutoramento, defendido em 1983 na USP. Como eu ainda estava impregnado de interrogações sobre o liberalismo de Joaquim Nabuco, objeto da tese, recebi o livro de Sérgio como um alento, algo que mostrava, com foco e competência, o acerto das escolhas que eu havia feito. Nabuco fora aluno da Faculdade de Direito de São Paulo, onde adquiriu parte relevante da bagagem intelectual com que seguiu em frente. O “bacharelismo”, porém, não aderiu por inteiro à pele de Nabuco, que enveredou pela diplomacia, sem por isso, no entanto, deixar de trilhar com determinação os caminhos do jornalismo e do publicismo, comuns a seus colegas de escola. Durante a campanha abolicionista (década de 1880), Nabuco fez uma inflexão rumo a um liberalismo democrático, de perfil social, o que o afastou naqueles anos do liberalismo brasileiro típico, de corte conservador e juridicista. Tudo isso ficou mais claro para mim com o livro de Sérgio Adorno.
Os Aprendizes não é um livro dedicado a Nabuco, evidentemente. O olhar de Sérgio segue outra direção, não se debruça sobre trajetórias individuais, mas sim sobre o peso que tem as instituições de ensino (no caso a Faculdade de Direito de São Paulo) na modelagem das mentalidades políticas e intelectuais. É um estudo de caso feito com uma grande angular sempre ativada, que permitiu à pesquisa trafegar por diferentes nuances da vida brasileira no correr do século XIX e do período monárquico. Foi o que mais me seduziu nele.
O livro me cativou, também, pela linguagem fluida e bem elaborada, com a qual o rigor sociológico se afirmava de modo pedagógico, didático. Há passagens muito bonitas em Os aprendizes, trechos que nos sensibilizam para ir além e nos conectam a um passado que insiste em não passar, mostrando a força que têm, na sociedade brasileira, práticas que se esparram pelo tempo e grudam como cola em nossa experiência nacional.
Wanda Capeller: A obra Os aprendizes do poder veio iluminar o universo obscuro e incerto dos aprendizes de sociólogos do direito que, durante os anos sombrios da ditadura militar de 1964-1985, teimavam em interrogar o ensino positivista, dogmático e conservador das Faculdades de Direito que, afastado das questões políticas e sociais, reproduzia um ideário fundado em ficções jurídicas que encontravam seus limites na realidade sócio-política brasileira. Minha geração, ainda não libertada da violência do Direito (Benjamin, 2011) e da legalidade do terror encontrou, nas páginas desse livro, elementos essenciais para refletir sobre a força do Direito (Bourdieu, 1986) na sociedade brasileira. Um século após o período estudado por Sérgio Adorno, percebíamos que éramos formados da mesma maneira, com o mesmo moralismo e crenças liberais, olhando de cima a realidade nacional.
Os aprendizes do poder foi obra de escavação. Ela trouxe à luz as raízes em que se cruzaram, no Brasil, as ideologias liberais com as práticas autoritárias de poder. Ao traçar a genealogia das relações entre o campo jurídico e o campo político na sociedade brasileira do século XIX, a teoria de Adorno reconstrói a trajetória da ação dos atores jurídicos que delinearam os contornos do político, ambas esferas sendo portadoras de ambivalências e contradições, formadoras do Estado liberal brasileiro.
No final da década de 80 do século passado, ainda muito inquietos com os destinos da emergente e frágil democracia, encontramos nesse estudo o espelho de nossas próprias ambiguidades e limitações. Como desconstruir o “senso comum teórico dos juristas” (Warat, 2010)? Como construir uma nova “ecologia dos saberes” (Santos, 2007) jurídicos? Como elaborá-la a partir das dimensões infra-jurídicas que se situam nos espaços do “antes-de-dizer-o-direito” (Arnaud, 1981)? Nessa época, a adoção de uma atitude epistemologicamente insurgente no seio das Faculdades de Direito permitiu o surgimento de movimentos críticos e alternativos ao Direito estatal que perderam sua força no debate acadêmico atual.
Assim, ao revelar aos juristas suas próprias angústias, Adorno obrigou-os a um exercício de auto-reflexividade. Afinal, de que lugar falávamos? Do interior ou do exterior do Direito (Capeller, 2015)? Essas questões pautaram, na época, muitas trajetórias de vida. No meu caso pessoal, foi preciso sair do Brasil para melhor enxergá-lo, o que levou-me a um exílio voluntário na França, onde desenvolvi um estudo sobre a engrenagem da repressão no Brasil (Capeller, 1995), trabalho de afinidades com a obra de Sérgio Adorno. De fato, com ele muito aprendi, e seus estudos tiveram um grande impacto na minha produção científica, principalmente os dedicados à área do crime e do controle.
2. Como pensa a contribuição do livro de Sergio Adorno paras as ciências sociais brasileiras?
Andre Botelho: Eu vejo Os aprendizes do poder como uma análise exemplar de sociologia política e o incluo em meus cursos sobre o tema. Primeiro porque Adorno põe efetivamente Estado e sociedade em relação como unidade da análise, rejeitando, portanto, tanto uma abordagem institucionalista centrada apenas no Estado e nas práticas institucionais, quanto uma análise culturalista, centrada nos ideais de educação dos bacharéis. Segundo, pela forma como também articula valores culturais e políticos com práticas sociais na explicação da mudança social, qualificando as representações como parte das relações sociais e do processo histórico. Terceiro, pela atenção a que confere ao problema crucial, do ponto de vista sociológico, da socialização dos atores, da formação dos portadores sociais de um ideal de Estado e de sociedade nele implicado. Reunidos, esses fatores colaboram decisivamente para uma compreensão renovada do debate sobre o bacharelismo e seu papel na construção e reprodução do poder na sociedade brasileira, articulando dimensões macro, meso e micro. Não se trata, portanto, de uma análise restrita sobre profissionalização, mas, a partir dela, das relações de poder constituídas entre sociedade e Estado e como implicam numa forma de orientação ética das condutas que se fazem presentes no cotidiano, nos comportamentos mais rotineiros, da socialização profissional à estruturação das relações sociais e das instituições políticas como um todo.
José Murilo de Carvalho: O livro teve o grande mérito de combinar teoria e empiria. Num momento em que nossas ciências sociais, sobretudo em São Paulo, ainda eram muito marcadas por grandes teorias, em geral de base estruturalista, Sérgio esmerou-se em sustentar sua tese sobre sólida e cuidadosa pesquisa empírica. Quanto à pesquisa em si, teve a boa ideia de recorrer amplamente à imprensa. Tratava-se de fonte indispensável, sobretudo porque as legislaturas duravam apenas quatro meses. A análise apenas de discursos parlamentares, das atas do Conselho de Estado e de livros não teria dado conta da tarefa. Na parte teórica, identificava e reconhecia a importância de fatores em geral desprezados como o impacto do treinamento e da atuação de frações dentro de categorias mais amplas como as classes sociais. Foi importante contribuição.
Lilia Moritz Schwarcz: Esse não foi o primeiro livro sobre ideias liberais no Brasil, mas é o primeiro a mostrar a correlação entre esses modelos e as classes dirigentes nacionais e, sobretudo, paulistas. Nesse sentido, revela não só as teorias debatidas nas famosas Arcádias, mas como elas eram relidas a partir da socialização desses estudantes numa São Paulo oitocentista, quando a cidade assumia nova importância no cenário nacional. A obra introduz questões fundamentais para as ciências sociais brasileiras ao analisar, digamos assim, “ideias em ação e movimento”: a tradução desses modelos para a realidade histórica e política daquele contexto. Também inova ao realizar uma sociologia histórica, impactada pelos documentos de época. É muito original, ainda, ao revelar como o liberalismo no Brasil poderia estar muito distante da democracia, até porque nas mãos de jovens bacharéis que faziam do espaço da política um lócus da classe dominante. Adorno mostra as ambivalências da sociedade e do Estado, tendo como campo de ensaio e experimentação o ambiente gestado no Largo de São Francisco. Por aqui, e num sistema imperial e escravocrata, liberdade não vinha junto de igualdade. Muito pelo contrário.
Marco Aurélio Nogueira: É uma contribuição significativa, que se insere na vertente pioneira que buscava interpelar as ideias políticas e sociais no Brasil. O pioneirismo do livro associa-se ao fato de Sérgio enfrentar com sucesso uma agenda estratégica: num país de bacharéis, como o liberalismo ajudou a plasmar a mentalidade política e cultural? O liberalismo “bacharelesco” viabilizou ideias liberais, mas também as encapsulou num caixote juridicista que, ao menos em parte, travou sua interação com a sociedade, modelando-as pelos valores das elites dominantes. Foi, como mostrou bem o livro de Sérgio, um liberalismo conservador, que deixou pela estrada a questão democrática e a participação social – um liberalismo ajustado às circunstâncias da formação do Estado e da correlação de forças existente no País, assim como à cultura das elites dominantes, entre as quais as políticas e intelectuais. Os liberais, ao se afastarem da sociedade, buscaram refúgio nas cercanias do Estado, donde terem sido “aprendizes do poder”. Na segunda metade do século XIX, um liberalismo mais arrojado florescerá, especialmente quando a questão do trabalho ganhou preeminência na agenda pública. Mas não terá particular força em São Paulo, berço do bacharelismo e do republicanismo civil. Poucos paulistas estiveram na linha de frente da luta abolicionista, por exemplo.
Tudo isso precisa ser questionado com critério. O liberalismo tem várias faces e, no Brasil, elas sempre responderam a circunstâncias muito concretas, que dificultaram sobremaneira a evolução da face democrática da doutrina. Na minha própria pesquisa, chamei esse processo de “desventuras do liberalismo”, expressão que empreguei para caracterizar a tentação que os liberais sempre tiveram pelo conservadorismo ou pela moderação. Essa foi uma marca persistente, mesmo que, no correr do século XX e em especial durante a fase de redemocratização do país (de 1970 a 1988) os liberais tenham não somente dado importante contribuição, como chegaram mesmo a ensaiar a consolidação da visão democrática em seu próprio interior. Mas, ainda assim, o que tem prevalecido no Brasil, chegando aos dias atuais, é a versão conservadora do liberalismo.
Wanda Capeller: Nas últimas linhas de apresentação do livro Os aprendizes do poder, Célia Galvão Quirino refere-se à aproximação feita por Sérgio Adorno entre o mundo dos cientistas sociais e o universo dos bacharéis de Direito (Quirino, 1988: 18). Também Marcos César Alvarez sublinhou a relevância dessa obra para as novas gerações de pesquisadores voltados para a análise do Direito – eu diria o campo jurídico – como um espaço fundamental de formação dos modos de entendimento da sociedade brasileira, e suas possibilidades de intervenção (Alvarez, 2014: 14). Nesse sentido, a obra de Sérgio Adorno forneceu um quadro teórico essencial para a construção da sociologia jurídica no Brasil.
O diálogo das ciências sociais com o Direito, evice-versa, nunca foi tarefa fácil. Na França, essas incompreensões têm sido objeto de muitos debates, dos quais não se furtou a Revue Droit et Société, que publicou dois dossiêssobre esse tema: o primeiro, em 2008, observou como as ciências sociais percebem as questões metodológicas ligadas à pesquisa socio-jurídica; o segundo, em 2010, considerou as relações do Direito com as ciências sociais a partir de suas próprias dificuldades internas. Esse jogo de espelhos mostrou quão complicadas são as relações que se estabelecem entre essas diferentes comunidades científicas[i].
Na realidade, essas mútuas impertinências revelam suspeitas partilhadas: as ciências sociais não se aproximam do objeto jurídico porque desconfiam da própria natureza do direito, saber normativo à serviço do poder; as chamadas “ciências jurídicas” receiam que a sociologia seja saber subversivo, que, quando crítico, interroga o poder. Ao peregrinar por esses espaços conflituais, híbridos e complexos, Adorno criou as condições para a desterritorialização desses paradigmas rivais e competitivos.
Observar a ação jurídica, política e social dos bacharéis na época da formação do Estado liberal brasileiro, suas maneiras de agir, pensar e sentir (Durkheim, 1947: 5), desvendou o habitus jurídico enraizado na mentalidade de uma sociedade colonial, patriarcal e autoritária. A abordagem do mundo jurídico feita por Adorno, inovadora à época, hoje se integraria perfeitamente nos law and society studies, notadamente os que buscam apreenderas manifestações da legal consciousness (Commaille & Lacour, 2018), tal como existe nas diferentes sociedades.
Sem hesitação podemos afirmar: Sérgio Adorno deu-nos as ferramentas necessárias, históricas e teóricas, para a construção da sociologia jurídica brasileira. Minha geração pode, assim, dar o salto epistemológico que permitiu distanciar-nos do Direito para melhor apreendê-lo, e perceber a amplitude do fenômeno jurídico em nossa sociedade, onde a produção e interpretação normativas constituem somente uma das várias dimensões da ação jurídica.
Em 1986, quando Bourdieu observou, em seu texto “La force du droit. Eléments pour une sociologie juridique”, as lógicas e formas de justificação e legitimação dos juristas, essa reflexão já tinha sido realizada no Brasil por Adorno, cuja tese de Doutoramento sobre o tema foi defendida em 1984. Como o autor francês, ele mostrou a existência de um fenômeno singular: a autonomia do campo jurídico limita-se à sua abertura ao campo político.

3. Duas questões, entre outras, receberam destaque na recepção do livro. A primeira, a relação entre a formação cultural e profissional dos bacharéis de direito (em São Paulo entre os anos de 1827 a 1883) com a consolidação do liberalismo econômico e político na sociedade brasileira. A segunda, a distinção e o contraste feitos entre os ideais liberais e os ideais democráticos na formação desses bacharéis. Como você vê a relevância dessas teses para pensar as relações entre sociedade, política e cultura?
Andre Botelho: Como disse anteriormente, a meu ver, as diferentes dimensões da vida social e do poder são vistas de modo articulado em Os aprendizes do poder. Isso permite ao autor retomar noutro patamar um debate clássico na sociologia brasileira que aparece, por exemplo, em Sobrados e mucambos (1936), livro em que Gilberto Freyre analisa a ascensão do bacharel no contexto de urbanização da sociedade brasileira marcado pelo declínio dos setores agrários tradicionais; ou em A integração do negro na sociedade de classes (1964), de Florestan Fernandes, no qual as inovações institucionais e a liberalização jurídico-política da Primeira República são vistos em confronto com a adaptação da grande empresa agrária ao regime de trabalho livre e às relações de troca no mercado de trabalho que ela, ao menos em tese, pressupunha; para não falar da significativa rotação de olhar operada sobre o problema do patrimonialismo tal como formulado na influente análise institucionalista da segunda edição de Os donos do poder (1975), de Raymundo Faoro. Não quero sugerir exatamente uma filiação direta, mas quero ressaltar aqui a afinidade da análise de Adorno com a de Florestan, justamente por conta da afirmação, em ambos os autores, de um caráter conservador do liberalismo visto do ponto de vista da promessa democrática que ele, paradoxalmente, pressupõe numa sociedade escravocrata como a brasileira do século XIX. Cada um a seu modo, lembram Florestan e Sérgio Adorno que para que a ordem social competitiva em construção pudesse consolidar-se numa direção “liberal-democrática” seria preciso uma ruptura e não um mero ajuste entre ela e as estruturas de poder tradicionais persistentes. Com isso, a porosidade das hierarquias sociais revela-se compatível tanto com níveis extremos de desigualdades quanto com a reiteração de formas de socialização autocráticas e avessas a uma filosofia democrática de vida, à legitimidade do conflito e à abertura universal do princípio da competição.
José Murilo de Carvalho: São duas questões centrais à história do pensamento político brasileiro no século XIX. O Estado formava sua própria elite que, além de o sustentar (caso dos juristas), podia também voltar-se contra seus principais sustentáculos (caso dos advogados). Os juristas, sobretudo os conservadores, construíram, dentro do Estado, as estruturas do poder e justificaram suas características, tarefa que durou até a década de 1850. Os advogados, por sua vez, cada vez mais numerosos, propunham reformas liberalizantes, como a descentralização, as eleições diretas, a liberdade de comércio, de religião, de ensino. Mas só enfrentaram um tema que afetava as bases sociais do sistema, a abolição. Não tocaram, nem os liberais radicais o fizeram, na regulamentação da propriedade da terra, que, aliás, até hoje não está completa. A tese de um liberalismo socialmente conservador é um ponto forte do livro.
A segunda questão, que tem a ver com a relação entre liberalismo e democracia, pode-se dizer que perdura até hoje. A única grande reforma feita pelos liberais no século XIX foi a da eleição direta. Mas deram um passo atrás ao proibirem o voto do analfabeto. Poder-se-ia acrescentar, ao lado do liberalismo e da democracia, a ideia de república, surgida na segunda metade do século e vinda dos liberais radicais. Os republicanos, muitos deles advogados liberais, usavam os termos democracia e república como sinônimos, mas, na prática, a república não teve povo (democracia) até a década de 1930. Até hoje, um de nossos dramas consiste na incapacidade de fazermos com que a democracia política, existente, possa gerar, pelos mecanismos da representação, a democracia social, mantendo um catecismo liberal ortodoxo. A República, na conotação de bom governo, não sabemos por onde anda. Não duvido de que as questões levantadas por Sérgio Adorno em seu livro ainda estão conosco, com alguma mudança de roupagem.
Lilia Moritz Schwarcz: Conforme expliquei na resposta anterior, a obra se preocupa em sublinhar as contradições do liberalismo no Brasil, sobretudo à luz desses verdadeiros enclaves dirigentes. Explora também as implicações do conceito de liberalismo num país tão desigual, governado por um Imperador e largamente pautado na mão de obra escrava. Assim, deixa evidente o grande “mal-entendido” – muito explorado por Adorno nesse contexto social e político privilegiado – que é a Faculdade de Direito de São Paulo. Era difícil compatibilizar o modelo jurídico-liberal com o Estado monárquico, com o Poder Moderador e o patrimonialismo. Não era igualmente óbvia a correlação entre a cidadania liberal dos modelos europeus e a realidade de um país em que esse era um valor restrito a poucos. Os aprendizes do poder traz assim um belo “tratado da ambiguidade” e ressalta como é necessário adequar a lupa quando se pretende entender a introdução de teorias importadas de uma determinada realidade social em outra.
Marco Aurélio Nogueira: É difícil imaginar um país em que se estabeleçam relações virtuosas entre sociedade, política e cultura sem que se tenha uma clara centralidade da questão democrática e social. Entre nós, há como que uma dissonância entre essas esferas, que se articulam de maneira “torta”: as ideias democráticas circulam entre liberais, social-democratas, socialistas e comunistas, mas nunca chegam a se completar. No caso do liberalismo, o contraste chama atenção porque a democracia é em boa medida a casa em que podem se abrigar ideias liberais bem compreendidas em termos doutrinários. Mas não é um contraste exclusivamente do século XIX brasileiro. Mesmo no berço do liberalismo, sempre existiram (especialmente depois da Revolução Francesa) cisões entre liberais mais conservadores ou menos, mais democráticos ou menos.
No caso do Brasil, a política tem sido avessa à participação cívica da população. A cultura a isso associada despreza a formação de uma comunidade de homens e mulheres educados, civilizados, conscientes, capazes de compreender as distinções e os ruídos entre vida pública e vida privada, famílias e Estado. A política somente busca o povo em momentos eleitorais: o cidadão, para ela, é o eleitor. Trafega pelas margens da sociedade, com os olhos fixos nas disputas por poder. Em decorrência, a cultura política fica propensa ao populismo, valendo-se bastante da ignorância política da população e de sua tendência a procurar lideranças salvadoras. A rica cultura nacional não chega, assim, à dimensão propriamente política. Como, para agravar, a escolaridade e a educação são precárias, os quadros políticos, ficam encharcados de despreparo técnico, de pobreza intelectual.
Os bacharéis estudados por Sérgio foram, em boa medida, uma quebra parcial nesse padrão, ao menos até a década de 1930. Não foram propriamente treinados para “buscar o povo em seus mocambos”, dedicando-se antes a “perscrutar o pensamento esotérico do Imperador”, como falou o abolicionista Nabuco. Em contrapartida, frequentaram uma escola que prezava a dialética discursiva e a densidade intelectual, ainda que seletivas. Levaram para o Estado (o poder) alguns ingredientes valiosos, além de hábitos retóricos e protelatórios típicos da “bacharelice”. Apesar disso, deixaram-se cooptar sem muita resistência pelos governos e pelo Estado político e administrativo. Depois, com a massificação do ensino de Direito e a proliferação dos cursos, já mais para o final do século XX, a formação jurídica ficou escravizada pela miséria intelectual. Por mais que existam notáveis exceções no mundo jurídico e na advocacia, o bacharelismo atual somente se presta a adornar o discurso político predominante.
Wanda Capeller: Em todos os lugares o liberalismo jurídico estabeleceu a “regra do jogo na paz burguesa” (Arnaud, 1978). Sendo o Direito o pilar da construção da paz burguesa, a burguesia brasileira lançou a uma posição dominante os bacharéis, seus filhos, homens de letras, que não cessaram de intervir no mundo social e político. A intimidade de suas ações com o mundo político permitiu na época – e permite ainda hoje – uma cumplicidade com o poder, que os transformou em aliados das estratégias políticas de delimitação dos espaços destinados ao mercado, e aqueles, internos, que mantém o status quo das desigualdades sociais.
Mas o liberalismo econômico e político brasileiro da época, tanto quanto o neoliberalismo atual, confrontam os atores jurídicos com suas próprias incoerências, que refletem as contradições estruturais do sistema cultural, político e social brasileiro. No Stimmung (Abensour, 2018) no qual viviam e ainda vivem, os juristas continuam a reproduzir mitos jurídicos que se acomodam a práticas anti-jurídicas autoritárias. Mas como o Direito é co-constitutivo dos liberalismos (Foucault, 2004: 165-190), esses atores se adaptam facilmente às lógicas neoliberais. O que seria uma simples acomodação torna-se uma tropicalização dos modelos neoliberais (Capeller, 1995: 26-31), o que permite a emergência de uma democracia selvagem no Brasil. Esses brutalismos (Mbembe, 2020)democráticos são muito visíveis no campo penal brasileiro, em que historicamente produziram-se sensibilidades bárbaras (Chies, 2020).
Em arrière fond, encontra-seaquestão daimportação de modelos pelas elites intelectuais de países colonizados, que adotam princípios políticos e jurídicos inadequados às sociedades em que vivem. A compreensão importada de suas realidades leva a mudanças de “aparato e não de substância”, como afirmou Sérgio Buarque de Holanda (1987: 134). Frantz Fanon (1979: 181-182) lembrou a atitude do intelectual colonizado, que vai às sociedades centrais buscar reconhecimento e legitimação para suas intervenções no âmbito do Estado. Isso lembra os atuais bacharéis brasileiros acríticos, que ficam eufóricos em participar das solidariedades das democracias neoliberais com lógicas totalitárias (Agamben, 1997: 18). Se no século XIX, os bacharéis visionavam um “liberalismo positivo” (Foucault, 2004: 138), apto a promover a justiça social, deixaram no passado seus ideais.
4. A sociedade brasileira é tão complexa que faz alguns livros e ideias rejuvenescerem. É o que se passa com Os aprendizes do poder quando levamos em conta a judicialização da vida política e social brasileira em curso. Comente a atualidade do livro.
Andre Botelho: Sim, considero muito oportuna a reedição de Os aprendizes do poder e o contato que ela permite das novas gerações de cientistas sociais e bacharéis em direito com as ideias potentes de Adorno. Num presente tão estranho, tão cheio de passado, como o que estamos vivendo, porém, não devemos recorrer ao passado com a ilusão de que a história é uma repetição linear. Nesse sentido, justamente pelas qualidades anteriormente lembradas, penso que o livro em questão oferece parâmetros cruciais que ajudam a imaginação e a reflexão sociológicas a se acenderem em meio ao obscurantismo do presente. Reler Os aprendizes do poder me ajuda a perceber como, mais uma vez, os bacharéis, por seu peso político e simbólico na estruturação da sociedade brasileira, são um setor estratégico para a análise das reviravoltas da democracia em curso na sociedade brasileira. Sua atuação na Justiça do Estado que, de instituição que deveria proteger os cidadãos do uso discricionário do poder, corre o risco de se tornar corresponsável por conduzir uma situação autoritária oculta por véu de normalidade constitucional, se mostra ainda mais preocupante se lembrarmos da expansão das fronteiras do Judiciário sobre os demais poderes, o Legislativo e o Executivo. Isso tem criado um perigoso desequilíbrio nas funções dos poderes para a democracia, a que temos assistido nos últimos anos no Brasil.
José Murilo de Carvalho: A atualidade das ideias expostas no livro é gritante. Nossa incapacidade em tornar eficaz a representação no sentido de produzir políticas redistributivas levou-nos à judicialização da política que delega a agentes não eleitos a solução de problemas que caberia ao Congresso enfrentar e resolver. O Judiciário intromete-se em tudo, os juízes do STF escrevem na imprensa, dão entrevistas, envolvem-se em bate-bocas, desmoralizando seu papel e enfraquecendo as práticas democráticas. No século XIX, a política controlava a Justiça, e com razão os bacharéis lutavam pela independência do Judiciário. Hoje, a Justiça, com seus juízes-bacharéis, quer controlar a política, fazendo política. Ao mesmo tempo, o funcionamento do Judiciário em seu próprio terreno, falha miseravelmente em criar uma justiça rápida e igual para todos. É esta, aliás, uma das preocupações das pesquisas de Sérgio Adorno posteriores à tese que giram em torno da violência, da desigualdade na prestação jurisdicional e das violações dos direitos humanos.
Lilia Moritz Schwarcz: Neste contexto contemporâneo em que o judiciário tem se agigantado, e assim ameaçado a democracia brasileira, o livro nunca foi tão atual. Além do mais, nunca foi tão importante qualificar a nossa democracia. Se hoje vivemos numa República e se o sistema escravocrata foi abolido, a desigualdade é ainda uma realidade. Isso sem esquecer que no momento presente experimentamos um claro obscurantismo político e uma espécie de cotidiano do “um golpe a cada dia”. Entender o poder dos bacharéis, ontem e hoje, é não só estratégico como absolutamente necessário.
Marco Aurélio Nogueira: A atualidade de um livro depende de sua capacidade de continuar a nos provocar, a dar pistas sobre quem somos, que trajetos seguimos, como compusemos nossa bagagem cultural, qual é nosso perfil intelectual. No Brasil atual, estamos em uma fase na qual foram perdidos alguns fios que davam sentido ao nosso passado, ao processo que nos trouxe ao presente e, quem sabe, nos levará ao futuro. O esforço de autoconhecimento da sociedade (conhecimento da sociedade sobre si própria) cedeu às manobras pretensamente patrióticas de recuperar um Brasil que nunca houve. Estamos mais ignorantes, mais carentes de “grandes narrativas” coerentes e de conhecimentos concatenados, mais perdidos em nossos labirintos mentais.
Livros como Os aprendizes do poder nos ajudam sobremaneira a refazer os caminhos que ficaram para trás e investigar como eles foram incorporados à experiência coletiva. Especialmente porque o bacharelismo continua vivo, agora combinado com a judicialização geral e o ativismo judicial. Advogados são produzidos anualmente aos milhares. Continuam a ser indispensáveis, e é bom que sejam multiplicados. Não sei se temos instrumentos para avaliar a qualidade técnica e intelectual dessa massa de novos advogados. Mas penso que o problema principal aparece quando eles invadem exageradamente a esfera do político, roubando o protagonismo dos cidadãos e fazendo com que a linguagem da política se torne cifrada.
Wanda Capeller: No século XIX, a formação do Estado de Direito deixou crer em uma possível democratização das sociedades, que poderiam opor-se aos excessos do despotismo do Estado e ao Estado Policial (Foucault, 2004: 174). Essa “forma singular de construção estatal” (Chevallier, 1994: 8) se baseia em duas premissas essenciais: limitar o poder do Estado pelo Direito, e investir o Estado da missão de proteger as liberdades individuais e satisfazer as necessidades dos indivíduos e grupos sociais. Com o advento do “anarcoliberalismo” (Foucault, 2004: 166), e sua afirmação na passagem do século XX ao XXI, impuseram-se lógicas globais de mercado, que fragilizam o Estado de Direito. No contexto de uma democracia de baixa intensidade, os juristas brasileiros parecem não se constrager com a emergência de democracias iliberais e autoritárias, nas quais o Estado de Direito coabita com o estado de exceção, fenômeno que caracteriza o constitucionalismo de exceção (Ferreira, 2019).
Quando examinou o lugar dos juristas na formação do liberalismo à brasileira,e os efeitos de sua atuação na sociedade do século XIX, Adorno deu-nos as chaves para entender a ansiedade com a qual os bacharéis se comprazem, na atualidade, com a judicialização do político; se outrora eles contribuíram para construir as instituições, agora são indiferentes a sua destruição. A fragilização do Direito e de suas instituições evidencia a emergência, em nosso país, de novas formas de conivência dos juristas com o poder, agora mais belicosas com a utilização do lawfare. Com a ajuda dos bacharéis, as hibridações entre legalismos e ilegalimos jurídicos permite eliminar os adversários políticos daqueles que estão à frente do Estado.
A partir da (re)leitura da obra de Sérgio Adorno, podemos perguntar: que desafios o político coloca aos juristas brasileiros? Esse desafio deve conduzir a uma reflexão sobre as condições de possibilidade de sobrevivência da democracia brasileira. A progressiva desconstrução das premissas do Direito moderno, notadamente as relativas às garantias penais, empurra as democracias garantistas em direção às democracias punitivistas. As análises de Adorno sobre liberalismo e democracia, e o desempenho dos bacharéis nesses espaços de interlocução, permite-nos revisitar suas hipóteses explicativas para melhor entender o Brasil atual.
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Nota
[i] Ver os dossiês Quelles méthodes pour la sociologie du droit te de la justice?, Droit et Société, n. 69/70, 2008; e Sciences sociales, droit et science du droit: le regard des juristes, Droit et Société, n.75, 2010.
* A imagem que abre este post é uma fotografia da Academia de Direito de São Paulo, atual Faculdade de Direito da USP, situada no Largo de São Francisco. via Wikimedia Commons.