Resenha | “Enciclopédia negra”, por Mário Augusto Medeiros da Silva

O Blog da BVPS publica hoje, na coluna minas mundo, uma resenha inédita do livro Enciclopédia negra – Biografias afro-brasileiras, de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz. O texto do sociólogo Mário Augusto Medeiros da Silva (UNICAMP), escrito sob o impacto do massacre do Jacarezinho, destaca a importância do projeto da Enciclopédia negra de recuperar a memória coletiva, as experiências de luta e as narrativas de vidas individuais em uma sociedade marcada historicamente pela eliminação física e simbólica de pessoas negras.

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Boa leitura!

Resenha de Enciclopédia negra – Biografias afro-brasileiras, de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz

por Mário Augusto Medeiros da Silva

Este é um país que mata negros.

Vivemos sob um Estado nacional e numa sociedade que legitimam o assassinato de pessoas negras, em tempo real, a olhos vistos, de todas as idades, de distintas classes sociais, independente do gênero, em contextos variados, por serem pessoas negras. Ou acrescido por esta condição. No momento que escrevo este texto, a mais recente tragédia é a ocorrida na Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, 06 de maio de 2021, em que inicialmente foram noticiadas 25 pessoas assassinadas[1]. Um dia após o ocorrido, a única pessoa identificada e com profissão foi um policial civil, não negro. Os outros, 24 homens negros, suspeitos de tráfico, não tinham identificação. Sem nome, família, ocupação definida. Apenas eram homens negros e suspeitos, sem provas. A agência Notícia Preta informou que corpos das vítimas deram entrada no Hospital Evandro Freire com as seguintes identificações: “Homem Negro”, “Homem Negro II”, “Homem Pardo I”, “Homem Pardo II” e assim em diante[2]. Dias depois, o número se elevou para 28 pessoas assassinadas e somente na sexta, 07 de maio, parte das vítimas começou a ser identificada, pela listagem da OAB[3]. Em comum, a/por princípio: Todos homens, majoritariamente negros, o mais jovem com 18 anos, pobres.

Esta é a mais recente e entrará para o rol de estatísticas oficiais, como as do Mapa do Violência e de Observatórios em universidades, levantamentos independentes de pesquisadores e organismos internacionais. Provocará algumas hashtags, tweets ou stories, notas de repúdio, comoção nas redes sociais e alguma mobilização, como a da Coalizão Negra Por Direitos em 13 de Maio, num momento adverso para aglomerar e sair de casa. É ilusório o mito da passividade ou de ausência de protestos pelas vidas negras no Brasil, mobilizado por aqueles que sofrem na pele a ausência de democracia e direitos neste país enquanto houver racismo. O protesto assume historicamente diferentes formas. E também, historicamente, é ouvido por poucos comprometidos com a democracia e o antirracismo.

Mesmo que aquelas pessoas do Jacarezinho tenham sido mortas em suas casas. Mesmo que tenhamos visto pessoas negras serem mortas na frente de suas casas, a caminho de seus bairros, desaparecendo diante de seus portões, fuziladas brincando de bonecas e carrinhos. Assim temos nesse panorama um músico negro assassinado com 80 tiros em via pública; uma criança negra que recebe um tiro de fuzil no peito; um outro menino negro que cai de um prédio por negligência da empregadora branca de sua mãe, negra; jovens negros que “somem” após abordagem policial; outro que é vítima de um espancamento mortal, gravado em câmera de celular, por seguranças de supermercado, enquanto as pessoas ao redor assistem; outros que desaparecem, também por ações de seguranças, e seus corpos são reencontrados entregues em caixões fechados. Mulheres negras alvo de feminicídio e racismo, pessoas trans negras sistematicamente atacadas por transfobia e assassinato. E isso apenas no último biênio. Temos nos acostumado, como sociedade, historicamente, a ver pessoas negras desaparecer e morrer, nas circunstâncias mais desumanas. Importa? Eram negras, negros e só(s).

Não virarão nomes de ruas ou praças. Não haverá – como não existiu – comoção para além da esfera familiar e do ativismo antirracista. As autoridades públicas não manifestaram qualquer pesar, especialmente na seara política em que nos encontramos. Algumas defendem “atirar na cabecinha” ou reafirmam a ideia de que “só morre bandido”. Vale lembrar que este período também se inaugurou com o assassinato da vereadora negra Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, em via pública carioca. A vida negra, portanto, está em risco no Brasil, independente do cargo ocupado na instituição republicana. Não é uma novidade, mas a escalada dos fatos deveria ser mais surpreendente.

Neste contexto, qual a importância da Enciclopédia Negra, publicada pela Companhia das Letras? Organizada pelo historiador Flávio Gomes, a antropóloga Lilia Schwarcz e o artista plástico Jaime Lauriano, ela acompanha, em minha visão, um antigo desejo ora difuso, ora mais organizado, de diferentes experiências de pessoas anônimas e do ativismo conhecido de intelectuais negros brasileiros de fazer valer alguns dos direitos da modernidade ocidental e burguesa. O direito à vida e da biografia, de figurar na narrativa da recordação nacional. O direito à memória coletiva e do pertencimento aos quadros de referência da memória social coletivamente partilhada. Isso não é pouco. Num cenário de tanta luta social, morte e desaparecimentos, de um lado; e doutro, num país racista e que pratica socialmente a discriminação étnico-racial como forma de relação social histórica, com efeitos de eliminação física e simbólica, ter os direitos de viver, de ter sua história contada, partilhada e passada adiante para gerações futuras é um desafio.

Ao acompanhar esse desejo por direitos, a Enciclopédia Negra com seus 417 verbetes e 550 pessoas biografadas em 687 páginas, várias ilustradas por artistas contemporâneos, se alinha a outras experiências conhecidas e narradas na introdução dos trabalhos. Os valorosos trabalhos semelhantes que a antecederam, dentre outos como os de Haroldo Costa, Oswaldo de Camargo, Clóvis Moura, Nei Lopes, Eduardo Assis Duarte, Emanoel Araújo, Schuma Schumaher e Érico Brazil, Giovana Xavier, Juliana Farias, Eduardo de Oliveira, Luiz Simas, Márcio Barbosa, Cuti, Petrônio Domingues e dos próprios autores – Gomes e Schwarcz – compõem um panorama que se completa na forma de um mosaico com algumas insuficiências, que podem ser notadas, com olho próximo, aqui e acolá – sempre se apontará que faltou um nome, uma organização, uma experiência etc. – mas que à distância e na esteira da memória da luta antirracista se inteiram, compondo um todo de partes muito difíceis de serem realizadas sozinhas. É uma obra coletiva, num projeto coletivo, que recompõem experiências coletivas. Abuso da reiteração para evidenciar a importância do trabalho num país que insiste historicamente em negar, como parte da nação, a experiência daquelas pessoas que a ajudaram a construir e que a moldam cotidiana e contemporaneamente. As insuficiências, que sempre existirão, são enredadas nos esforços parceiros dos outros trabalhos mencionados. E os organizadores e organizadora desta Enciclopédia Negra já anunciam na introdução um trabalho vindouro, com a instigante continuidade com pessoas vivas, do tempo presente. Além da exposição em andamento na Pinacoteca do Estado de São Paulo.

A ideia da enciclopédia, como os organizadores e organizadora nos recordam, é também um projeto moderno e que compõe um momento de luta por direitos na experiência humana, de conhecimento e memória. Uma narrativa de humanidade conquistada em lutas sociais por diferentes pessoas negras em história transnacional. A Enciclopédia Negra, assim, opera de fato como um quadro de referência de memórias individuais e coletivas, complexas e contraditórias, com tomadas de posições de sujeitos com os quais podemos ou não concordar no presente, compreender e aferir aspectos dos sentidos embutidos em suas ações. Mas só podemos fazer isso tendo-os conhecido. Agora, junto daqueles outros esforços, podemos. Até mesmo esse direito foi algo sistematicamente negado na experiência negra brasileira: ter a narrativa da vida.

Descobrimos ou somos relembrados, por esses 550 verbetes, da experiência negra nacional, em todas a regiões do país, que se articularam com redes de solidariedade e alianças, por vezes, internas e internacionais. Há verbetes que tratam de associações, de um conjunto de sujeitos ou mesmo, classicamente, individuais. Há aqueles que possuem nomes e referências completas e outros não mais que uma sugestão ou uma “pista” histórica de quem poderia ter sido aquele biografado, mencionado em fontes, sempre citadas pelas pesquisadoras e pesquisadores que assinam as informações. É de se destacar também a importância da pesquisa, pelas referências bibliográficas, acervos consultados e colegas que têm produzido, há décadas, a despeito das adversidades, conhecimento científico sobre a experiência negra brasileira e internacional. Isso precisa ser ressaltado aqui, pois a Enciclopédia Negra é herdeira de um projeto iluminista, com o que de melhor as universidades nacionais e estrangeiras têm produzido há anos, em termos de conhecimento e compromisso ético. E que vem a público em mais um momento de obscurantismo e postura obtusa anti-científica em nosso país.

Verbetes mais completos ou compostos por pistas: longe de ser um equívoco, revelam um método e um acerto. Os indícios, caso seguidos, podem abrir novas perspectivas de pesquisas ou informações. Mas precisam ser mencionados e jamais menosprezados, como comumente podem ter sido. À margem da história, a experiência negra brasileira tem aspectos lacunares, mas é plural em suas formas de apresentação. Os indícios de existências daquelas pessoas são como rastros sulcados na superfície do tempo, que os enciclopedistas do presente desafiam os consulentes a percorrer.

Já escrevi em outro momento, inclusive para este espaço da BVPS, que no Brasil as pessoas negras morrem pelo menos duas vezes. Além da morte física, geralmente brutal, o anonimato da memória e o vilipendiar da experiência é algo sistemático. Morreu um/a negra/o. Qual a novidade? Tão importante quanto recuperar a dignidade ao passado – as pessoas nos verbetes são falecidas – é apontar os sentidos para o tempo presente e o futuro. Além do potencial de consulta e pesquisa, esta Enciclopédia Negra tem um ponto distintivo em sua composição, ali pelos intervalos das letras “N” e “O”: o trabalho de arte realizado por um conjunto de artistas plásticos dos mais representativos da cena contemporânea. Fabularam ou recriaram rostos, corpos, expressões, sentimentos especialmente para o volume, em personagens que emergem dos verbetes históricos. E assim temos visadas de Ambrosina, Zumbi, Aqualtune, Acotirene, Malunguinho, Francisca Luiz, Mandingueiro de Luanda, Liberata, Emiliano Mundrucu, Rosa, Prata Preta, Rufino e muitas outras e outros sujeitos, além de Afra Joaquina e Chico Rei que interpelam altivamente os consulentes na capa e contracapa do livro. Dentre vários pontos altos no projeto, esse é um cume.

A Enciclopédia Negra apresenta um mosaico de vidas breves ou mais longevas, conturbadas ou mais sossegadas, com experiências vitais dignas de notas e ponderações, que em comum compartilham o direito coletivo de não ser esquecidas. A memória é um direto social. Interessa ao tempo presente, àqueles e àquelas que, no aqui e agora, criam, enfrentam, reivindicam e transformam a modernidade. A memória social não interessa ao passado: ela é uma fonte de poder e mudança social para os sujeitos do presente e do futuro, que os consulentes desta Enciclopédia Negra poderão acessar.


[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-07/chacina-do-jacarezinho-cano-estourado-porta-com-40-buracos-de-tiro-poca-de-sangue-no-chao-e-desolador-ver-isso-no-seu-espaco.html

[2] https://noticiapreta.com.br/vitimas-da-chacina-do-jacarezinho-sao-identificados-como-homem-negro-ii-e-iii-em-boletim-medico/

[3] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-07/maioria-dos-mortos-na-chacina-do-jacarezinho-nao-era-suspeita-em-investigacao-que-motivou-a-acao-policial.html

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