
No post de hoje, em homenagem ao aniversário de Minas Gerais e antecipando as comemorações dos 124 anos da cidade de Belo Horizonte no próximo domingo, a coluna Minas Mundo publica resenha assinada por James William Goodwin Junior do livro Orbe e encruzilhada: Minas Gerais 300 anos, organizado por José Newton Coelho Meneses (UFMG). Nela, o autor comenta detalhadamente os artigos da coletânea ao mesmo tempo em que refere e tensiona os sentidos de “orbe” e “encruzilhada” do projeto intelectual que orienta a atividade historiográfica registrada no volume. Isso, é claro, sem deixar de lado a dimensão da literatura na interpretação de Minas e na composição do próprio livro, das epígrafes ao título.
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Boa leitura!
MENESES, José Newton Coelho (org.). Orbe e encruzilhada: Minas Gerais 300 anos. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2021. 392 p.
Resenha por James William Goodwin Junior [1]
Este livro foi publicado pela UFMG como parte das celebrações dos 300 anos de fundação da Capitania das Minas Gerais, em 2020; a pandemia atrasou seu lançamento. O título vem de uma frase de Guimarães Rosa; sua definição de que “Minas são muitas” tornou-se quase mágica, ao encapsular tantas coisas em poucas palavras. Carlos Drummond de Andrade, como epígrafe, palmilha as estradas pedregosas de Itabira a Belo Horizonte e daí ao Rio de Janeiro, levando consigo as marcas interioranas mineiras, tensionadas em proposta modernista, com incômodo e genialidade.
Paratextos são importantes. Um título é mais que um nome: é uma promessa, um aviso do que o livro quer ser e compartilhar. Uma epígrafe é mais que uma homenagem. É uma chave hermenêutica, uma clave que dá o tom que se pretende à leitura. As escolhas feitas são mais que ornamentos, são parte já do diálogo que se inicia. Diálogo em duas partes, invertendo Guimarães Rosa. Primeiro a encruzilhada, a região mineradora no século XVIII, com algumas menções ao XIX. As origens históricas da invenção de Minas Gerais unem os 3 primeiros capítulos; outros 4 falam da sociedade mineira, abordando a desigualdade e a alforria, a vivência de pobres e negros em geral; e a oikos mineira – casa, economia, ecologia – na produção técnica da religiosidade e da vida cotidiana de pessoas e animais. Minas é mundo, e a segunda parte traz esse orbe ao longo do século XX e pelo olhar de hoje. Os 3 capítulos iniciais pensam a invenção literária de Minas Gerais desde o século XVIII. Política, economia, ensino escolar e patrimônio cultural são aspectos da sociedade mineira abordados pelos 4 textos finais.
A reitora da universidade, Sandra Regina Goulart de Almeida, apresenta o livro. Seu texto incorpora alguns elementos ufanistas, mas ela o faz com leveza e senso de direção, entremeando-os ao seu texto, sem fazer deles o seu discurso. Invocando Santo Agostinho, Rosa e Drummond, propõe uma tensão central entre a leitura do passado e as propostas para o futuro, ambas construídas no presente. Tensão retomada pelo organizador da obra na Introdução, que apresenta a citação de Guimarães Rosa que dá título ao volume, e o tom ao texto, poético ao explicar a origem, a organização e os limites do livro. A proposta é pensar, a partir de problemas do nosso tempo, o contemporâneo frente ao passado e o passado como reflexão da contemporaneidade. Se nem todos os temas possíveis são abordados, isso não é falha, mas elemento constitutivo e instigante do objeto, conhecido ao longo de 300 anos por homens e mulheres que viveram e estudaram o seu saber sobre Minas. Essa construção coletiva de conhecimento fundamenta a opção pelas duplas (e um trio) na produção dos textos coligidos.
A “Encruzilhada” é demarcada com “A construção cartográfica das Minas Gerais”, de Cláudia Damasceno Fonseca e Júnia Ferreira Furtado. Tomando os mapas como projeções de poder, conveniências e interesses, mostram a variação de informações nele representadas, bem como os próprios parâmetros de organização territorial, parte da construção do território mapeado. A leitura é acompanhada de belas imagens, que mereceriam comentários específicos. Esse texto estabelece e demarca o “chão” a ser trilhado pelos demais. Luciano Figueiredo e Tarcísio de Souza Gaspar nos apresentam “Os palácios e a rebeldia popular: a criação da capitania de Minas Gerais e a (re)definição de sua ‘cabeça’” (1719-1721). Os primeiros tempos da ocupação do território colonial foram de intensas e violentas disputas, da “guerra dos Emboabas” ao levante de Filipe dos Santos, passando por conspirações de escravizados e os esforços da administração colonial, que resultaram na mudança da sede política da recente capitania. Um desses conflitos é o tema de “Morro da Queimada: o lugar e as experiências. Ou ‘o hálito, que a terra de si lança e emite por tantas catas e socavões’”, que Carlos Magno Guimarães e José Newton Coelho Meneses abordam em perspectiva interdisciplinar, a partir de fontes documentais escritas e arqueológicas. O texto pressupõe conhecimento sobre o evento abordado, que passa quase sem ser tratado. Ainda assim, abre várias trilhas a desvendar, num caleidoscópio em que se mesclam temas clássicos da história mineira, cultura material e questões metodológicas. Perguntas ficam em aberto, a incomodar e instigar, como as grotas e escavações nas fotografias que ilustram o texto.
Laura de Mello e Souza e Marco Antonio Silveira revisitam as “Desigualdades e sociedade na Minas colonial”. O tema dialoga com os textos anteriores, na guerra que eclode, mas também pelo estado de conflito difuso, menos visível, nem por isso menos violento. O medo diante dos sem lugar – pobres, indígenas, africanos – cria inimigos internos a combater, ao mesmo tempo em que a “predatocracia” das elites os explora violentamente, reduzindo seus corpos a força de trabalho. Mariana Libânio de Rezende Dantas e Douglas Cole Libby mostram, em “Alforria, formação de famílias e afrodescendência na trajetória da sociedade mineira”, que houve resistência e estratégias contra essa sujeição. Retomando o histórico do projeto de colonização pelo viés violento da escravidão, especialmente no ambiente doméstico, documentam a vivência de pessoas negras, os caminhos abertos pela alforria, os laços de parentesco e a responsabilidade social e o impacto demográfico dessas famílias afrodescendentes em Minas Gerais. Duas histórias familiares dão nome e rosto a essas questões historiográficas; quase dá para sentir o cheiro dessas casas, em Sabará e São José. Num outro tom, “Contribuição ao estudo das igrejas matrizes e de capelas no setecentos mineiro: a fábrica paroquial, as irmandades e as obras artísticas”, de Adalgisa Arantes Campos e Alex Fernandes Bohrer, utiliza a organização político-espacial da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas para pensar o entrecruzamento de doutrina, religiosidade, recursos financeiros, técnica artística e relações sociais representado nesses edifícios, tão marcantes no cenário das localidades de origem colonial. Um glossário de termos técnicos ajudaria na leitura, cuja abordagem deixa para quem lê vincular o tema à história de Minas Gerais como um todo. Regina Horta Duarte e Natascha Stefania Carvalho De Ostos adotam uma perspectiva bem mais panorâmica ao abordar “As Minas Gerais: gentes e bichos”. A partir da história do Caraça e seus lobos, trabalham as tensões entre seres humanos, outros animais – selvagens, domesticados por indígenas, trazidos por europeus – e o ambiente, transformado pelo projeto colonial. Sejam as relações violentas, como a caça e a destruição dos habitats, ou não, como alimento, transporte, força motriz, ou exótica atração circense, e mesmo nas relações acidentais, como as doenças e os parasitas, as autoras defendem que não é possível compreender a constituição dessas Minas Gerais sem ver os animais. Esse olhar desperta sensibilidades éticas, estéticas e ecológicas, e cria novas perspectivas sobre o passado e para o presente e o futuro desse território.
Para começar a pensar Minas Gerais como “Orbe”, e suas relações com o mundo mais amplo, Alexandre Mendes Cunha e Sérgio Alcides Pereira do Amaral apresentam as “Expectativas e frustrações do reformismo ilustrado em contexto colonial”. O trabalho analisa o governo de Dom Rodrigo José de Meneses a partir de duas características entrelaçadas: as relações estabelecidas com as elites letradas de Ouro Preto e arredores, e o investimento realizado na tentativa de conhecer os problemas regionais e buscar soluções efetivas, ainda que em dissonância com a praxe colonizadora. O florescimento literário gravou em letras as expectativas de que a sociedade mineira teria reconhecimento à altura da importância econômica da capitania. As mudanças políticas no Império Português, porém, levaram à frustação dessas possibilidades, sugerindo mais um motivo para a eclosão, poucos anos depois, do movimento de inconfidência. Esse movimento tornou-se um marco na construção da ideia de Minas Gerais, como mostram Eliana Regina de Freitas Dutra e Giselle Martins Venancio. Aos estudarem os “Clássicos do Ouro: Minas nas coleções Brasilianas”, as autoras buscam identificar o lugar que Minas Gerais ocupa nessas coleções que visavam constituir uma identidade intelectual para o país. As obras escolhidas para edição ou reedição, os temas, os autores e as abordagens destacadas constroem tradições, como a rebeldia justa de Filipe dos Santos e Tiradentes; Lagoa Santa como o berço da humanidade americana; a “pátria mineira” como confluência do espírito nacional e da política conciliadora. Mitos que serão lidos e apropriados continuamente, até o ponto de serem naturalizados. Contra essa mitologia, Sabrina Sedlmayer e Roberto Vecchi afirmam que “Nada terá lugar a não ser o lugar: escavações literárias de Minas”. A obra de Cornélio Penna usa a liberdade modernista para reverter ao arcaísmo, na linguagem e na ambientação, das Minas oitocentistas. Naturalista na descrição do ambiente rural, é lacunar e incompleta na narrativa, num incômodo que é forma e efeito da leitura, revelando a violência do silêncio imposto pela escravidão e pelo patriarcado – justamente os elementos que teriam sustentado as Minas Gerais exaltada na mitologia política e histórica. Se a leitura desse artigo exige engajamento e esforço intelectual, traz como recompensa uma proposta radical de “desmitologizar” a violência escravocrata fundante da sociedade mineira – que ecoa em outros textos desse livro, bem como nas relações racistas, machistas e desiguais de hoje. Basta lembrar que Minas Gerais é dos estados que produz mais meninas mortas por feminicídio no Brasil.
As representações e as práticas políticas mineiras construídas ao longo da República são o tema do capítulo escrito por Rodrigo Patto Sá Motta e Cláudia M. R. Viscardi, “Minas, a mineiridade e o quadro político nacional”. A partir do século XIX um discurso com ênfase na política institucional construiu uma identidade conciliadora das diferenças entre os estados federados que fortaleceu a efetiva participação das elites mineiras – brancas, masculinas – na política nacional, com intensa participação em cargos públicos, inclusive a presidência da República. A nova capital construída, com suas ruas que criam um mapa histórico, político e geográfico do Brasil, sintetiza esse simbolismo na Praça e no Palácio da Liberdade. O texto destaca um aspecto dessa identidade, que é o apagamento do passado inconveniente, como na Revolução de 1930, quando as elites mineiras se comportaram como se não tivessem sido protagonistas da “República Velha”. O mesmo poderia se dizer em relação ao golpe que instituiu a República em 1889, ou ainda ao processo de redemocratização em 1985: a mineiridade vai sendo apagada e reinventada, conforme o momento; está sempre atual, portanto. Todavia, no mais longo dos capítulos do livro, Marcelo Magalhães Godoy, Mário Marcos Sampaio Rodarte e Clotilde Andrade Paiva apresentam “O longo caminho da diversidade à desigualdade: um ensaio de interpretação da formação histórica de Minas Gerais”. É um impressionante esforço de síntese de diversas discussões econômicas, no sentido amplo desse termo, abarcando desde a economia fundada na mineração até o enfraquecimento regional de Minas Gerais, periferia de outras polos produtivos. No equilíbrio entre os vários temas a serem mencionados e a busca de um sentido para essa narrativa, o trio constrói um texto estruturado em etapas e ciclos. Esse conceito é polêmico e careceria de melhor definição, considerando seu uso na historiografia. Não obstante, o capítulo funciona como um arcabouço a dialogar com elementos abordados em todos os outros textos, com destaque para a diversificação regional e as relações de poder, especialmente a escravidão, que geram intensa desigualdade socioeconômica entre as regiões e dentro delas. Sua atenção ao século XIX, algo raro no livro, encontra eco no texto de Cynthia Greive Veiga e Thäís Nívia de Lima e Fonseca sobre “Escola e ensino em Minas Gerais”. As autoras abordam as práticas de ensino, especialmente do que se pode chamar de “escola”, desde os tempos coloniais. Ainda que não ignorem todos os problemas e as limitações do ensino em Minas Gerais, enfatizam a importância dada ao aprendizado básico por diferentes grupos sociais, para além das elites econômicas. Diferentemente de outros textos sobre o tema, a legislação não é seu fio condutor, dado pelas concepções de ensino e a vivência de docentes e instituições de ensino nesses três séculos de história. A lista de problemas encontrados é terrivelmente familiar, bem como os processos cada vez mais excludentes, seja de acesso e permanência, seja do tipo de educação que se propõe para diferentes grupos sociais. As autoras indicam, ainda, a necessidade de mais estudos sobre o ensino profissionalizante. Pesquisas realizadas no CEFET-MG têm contribuído nesse sentido, mas ainda há muito o que se explorar. Fechando o livro, Flavio Carsalade e Roberto L. Monte-Mór delineiam questões sobre a “Urbanização e patrimônio cultural em Minas Gerais”. O processo regional de urbanização é apresentado como elemento fundante da identidade mineira, desde as muitas vilas coloniais até a construção de Belo Horizonte – e a atualização do projeto por JK: Brasília. O ambiente urbano mineiro é entendido como central para se entender a concepção de patrimônio construída no Brasil, como mostra o histórico das instituições federais e estadual. Ainda que resvale num discurso ufanista, o texto é desafiador, pois, se patrimônio e urbanidade estão vinculados, há que se pensar como as novas relações e vivências do direito à cidade influenciam e influenciarão a maneira como o patrimônio cultural é concebido e vivenciado.
Esse livro é uma jornada por muitas Minas Gerais, para aludir à citação que se repete ao longo de toda a obra. Ainda assim, os sertões roseanos, o universo de pessoas, animais, lugares e coisas que ele trabalhou pouco aparecem nos trabalhos coligidos, os quais abordam, em sua maioria, os séculos XVIII e XX e a região mineradora central, incluindo Belo Horizonte. Tanto os limites quanto a riqueza desse traçado refletem as características de produção da própria UFMG.
Na introdução, o organizador mencionou o desafio de produzir um livro coletivo em pouco tempo e em meio à pandemia que ainda vivemos. Talvez isso explique os problemas de revisão presentes em muitos textos, os quais não chegam a comprometer a compreensão dos argumentos apresentados em cada capítulo.
O livro não se esgota quando se encerra sua leitura, pois funciona, ao mesmo tempo, como uma apresentação de (parte) de Minas Gerais, e um desafio a avançar no conhecimento desse lugar – em todos os sentidos que esta palavra pode representar. Os capítulos trazem ainda indicações bibliográficas e uma breve apresentação de autores e autoras – nem todos da UFMG, convém destacar. Referências que nos convidam a ir além dos próprios textos, a sair, como num carro de boi, pelas estradas da terra dessas muitas Minas Gerais.
[1] Professor Titular de História do CEFET-MG e doutor em História Social pela USP. É autor de Cidades de Papel: Imprensa, progresso e tradição. Diamantina e Juiz de Fora, MG (1884-1914) (Fino Traço, 2015).