
O Blog da BVPS publica hoje uma entrevista com a professora e historiadora Martha Abreu (UFF) e com a antropóloga e diretora do Museu do Pontal Angela Mascelani. Na entrevista, conduzida por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves (UFRJ) e Alexandre Pereira (UFRJ), as organizadora do Ciclo de debates “Modernismos, arte e cultura popular” discutem o peso da cultura popular nos modernismos e contam como o ciclo de debates se relaciona com o papel exercido pelo Museu do Pontal e seu acervo. O primeiro encontro do ciclo, também tema da conversa, ocorreu no dia 21 de maio. No dia 11 de junho (sábado) haverá o segundo encontro, a partir das 10h, com a presença de André Botelho, Clarissa Nunez, Frederico Coelho, Lurian Lima, Renata Bittencourt e Vinicius Natal, que ampliarão o debate sobre os modernismos a partir dos campos da literatura, artes plásticas e música.
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Boa leitura!
1) A cultura popular é um dos elementos-chaves para a maturação do programa modernista e sua inserção dentro de um projeto de modernização do país, o que não se deu sem tensões. O ciclo de debates que vocês estão organizando contribui para recolocar algumas dessas questões que permeavam os modernistas naquele momento, mas levando em conta as novas configurações políticas, sociais e econômicas do Brasil contemporâneo. Como pensar passado e presente da cultura popular?
O ciclo de debates que o Museu do Pontal está propondo, sem dúvida, recoloca antigas questões, especialmente ligadas às relações entre cultura popular e identidade nacional brasileira, que permearam a produção dos chamados modernistas ligados à Semana de Arte Moderna de 1922. E procura estabelecer um diálogo com novas configurações e demandas dos artistas identificados com as culturas populares no presente. Essa é também uma das missões do Pontal.
Para pensarmos cultura popular, vale lembrar que sempre foi um tema de interesse dos eruditos. Aliás, o próprio nome emerge de um movimento de intelectuais europeus que buscavam encontrar a alma e a originalidade dos novos Estados Nacionais, a partir do final do século XVIII e ao longo do século XIX, nos cantos, contos, festas e danças dos camponeses. Os populares urbanos, os trabalhadores que se proletarizavam, não eram reconhecidos ou em geral eram vistos como contaminados pela cidade e pela modernidade urbana. Essas concepções sobre a cultura popular atingiram também os eruditos no Brasil, então nação independente em 1822.
Estudos de cultura popular e folclore no Brasil datam do século XIX e demonstram os investimentos intelectuais na construção de uma nação harmônica e mestiça no campo cultural – e não só racial. Nesse sentido, os chamados modernistas da década de 1920 não inovaram tanto assim na temática e inspiração associadas às “vozes da terra”, como dizia Renato Almeida. E mesmo no campo das artes, outros intelectuais, seja na música, pintura ou literatura, já traziam em suas obras referências a produções populares e afro-brasileiras – signos da originalidade nacional. Mas o que raramente se fazia, era assumir e assinalar os protagonismos dos ditos populares como autores, com subjetividade própria.
Precisamos, então, buscar entender o poder delegado aos chamados modernistas de 1922 de definir a partir daí os que seriam considerados expressão do modernismo na arte e o que seria cultura brasileira (sabemos o poder destas versões no mundo acadêmico até os nossos dias). Nossos desafios hoje passam por entender como o campo cultural é um campo de conflitos e de poder em torno de definições e legitimações sobre o que é o popular, o que é tido como arte popular e a própria cultura brasileira.
O Museu do Pontal entra nesse campo como importante interlocutor, afirmando a arte popular brasileira como arte, como artes visuais, plásticas, artes modernas; e os artistas populares como artistas agentes e pensadores de suas próprias vidas e do Brasil. Ainda mais atualmente, com as pressões e demandas dos próprios artistas populares, negros e das periferias, dos detentores de saberes populares e afro-brasileiros que buscam ver reconhecidos seus patrimônios e direitos culturais. Importantes revisões dos cânones artísticos e culturais, ligados ao que é cultura brasileira, estão colocados na mesa.
Evidentemente não é o caso de “cancelarmos” a Semana e seus defensores e propagadores posteriores, como modernamente nos advertiu Angela de Castro Gomes, na primeira palestra, até porque seria impossível desconsiderarmos o movimento de todos os seus sujeitos e propagandistas. Mas precisamos entender toda essa História, reconstruindo outros atores e artistas, muitos populares e negros, preocupados com linguagens sonoras e visuais, também modernas, ao longo do século XX e XXI, que não foram reconhecidos.
2) Como o ciclo de debates em curso dialoga com o papel institucional exercido pelo Museu do Pontal e seu acervo?
O Museu do Pontal reúne um acervo de arte popular que foi construído a partir da década de 1940 e até hoje se amplia com a aquisição de novas peças. Assim, temos trabalhos que representam vários momentos da história dos artistas em diálogo com a História da arte e da própria História do Brasil. O Museu sempre teve o compromisso de se renovar e de reconhecer os artistas, não como entidades coletivas e/ou autênticas, mas como produtores de arte, autores e pensadores de seu ofício e do próprio Brasil. As construções dos chamados modernistas sobre cultura e arte populares estabeleceram durante décadas os cânones dessa produção e, de alguma forma, tem formatado as visões dos ditos eruditos sobre a arte e sobre o popular. O Museu tem acompanhado e incorporado também as discussões recentes que buscam repensar esse pensamento, valorizando outros modernismos, outros artistas e outros cânones. O Seminário então teve o objetivo de sediar no Museu uma importante discussão com especialistas reconhecidos e dar seguimento a uma de suas missões que é contribuir para a formação de professores, interessados e visitantes.
A nossa parceria (de Angela Mascelani e Martha Abreu) tem sido especialmente – e pessoalmente – gratificante e temos organizado outros eventos (com a curadoria de Vinicius Natal também). Duas formações diferentes, ao lado de olhares e vivências complementares de parceria com artistas populares e detentores de patrimônios culturais, têm potencializado nossas reflexões entre arte, antropologia, história e cultura popular.
3) O ciclo foi inaugurado, em seu primeiro encontro, com a mesa “Disputas de memória: Por que debater a semana de arte moderna de 1922?”, um tema urgente para pensar não apenas no legado do movimento modernista em termos estéticos mas também políticos. Na mesa seguinte, vocês tiveram como tema a pertinente pergunta “Qual o papel da cultura popular e de seus agentes nos rumos do modernismo?”. Poderia nos falar um pouco sobre como foi o primeiro dia do evento e comentar algumas das questões ressaltadas nas duas mesas?
Na primeira mesa do dia tivemos Angela de Castro Gomes e Durval Albuquerque. Foi uma ótima oportunidade para entendermos as operações memoriais posteriores que criaram para a história da cultura brasileira a ideia de que a Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922 teria sido um divisor de águas fundamental. Um marco para a produção de uma arte nacional preocupada como o verdadeiro Brasil. Como os palestrantes colocaram, a Semana não trouxe tanta ruptura, nem tanta modernidade, nem só São Paulo. Ambos palestrantes mostraram como a discussão da modernidade encontrava-se em várias outras cidades do Brasil e tinha no Rio de Janeiro, com todas suas modernidades tecnológicas e culturais, um centro fundamental de referência. Como afirmou Durval Muniz, sem dúvida, fica muito difícil acreditar que em um único lugar e momento se produziu o modernismo. Entre as boas explicações para essa produção, os autores mostraram como essas construções se relacionam com movimentos políticos posteriores de consolidação de São Paulo no cenário cultural do Brasil.
Um debate que não poderia faltar foi sobre o papel de Mário de Andrade em toda essa História. Por um lado, um intelectual que tinha um programa de construção de uma arte e cultura brasileiras, a partir de temas e inspirações populares e nativas. Por outro, um intelectual que se encanta com os populares, e não só com suas produções, e passa a abrir um enorme espaço para estimular a pesquisa etnográfica no Brasil. Na apresentação de Maria Laura Viveiros de Castro ficamos conhecemos a importância do trabalho de Mário para a legitimação da pesquisa, até mesmo em termos institucionais, sobre cultura popular no Brasil.
4) Em entrevista ao blog da BVPS, de 2018, Martha ressalta que houve, ao lado do interesse e “celebração” pela cultura da diáspora africana na virada do século XIX para o XX a produção e reprodução de práticas e visões racistas. Esse aparente paradoxo seria resolvido da seguinte forma: “as canções escravas poderiam circular em diferentes ambientes, mas não a população negra e seus músicos”. Qual o papel que a articulação de diversos formatos (iconografia, danças e música) exerce nesse movimento de valorização com estigmatização?
Esta questão é o que apresentei no seminário (infelizmente não foi ao vivo, pois peguei covid e gravei a palestra posteriormente). O interesse pelos ritmos, gêneros musicais e festas identificados com a população negra não foi inaugurado pelos chamados modernistas ou por suas maiores expressões musicais, como Villa Lobos e Luciano Gallet. Desde o final do século XIX, com os maestros Eric Nepomuceno ou Alexandre Levy, por exemplo, composições envolvendo batuques, jongos e sambas despontavam na indústria das partituras e nas salas de concerto. Os produtos musicais populares e negros continuaram a se tornar eruditos para desfrute de outros públicos em outros locais. Mas, além dessa perspectiva, o campo musical também traz vários exemplos de como os músicos negros, que criavam peças populares e eruditas, como lundus, sambas, choros, maxixes, valsas, polcas, canções, cakewalks etc., não tinham reconhecido seu talento, sua inovação e sua modernidade, mesmo quando gravavam na moderna indústria fonográfica, ou quando suas invenções tocavam em salões refinados da capital. Entre eles, podemos destacar Henrique Alves Mesquita, Patápio Silva, Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros, Eduardo das Neves, Donga e Pixinguinha, entre outros….
5) Pensando no título do ciclo de debates, “Modernismos, arte e cultura popular”, haveria, nessa pluralidade do modernismo, modalidades diversas de interesse pela cultura popular e, consequentemente, formas diversas de reconhecimento de seus produtores?
Entendemos que sim!!! Foram muitos modernismos, de diferentes formatos, em variados locais e épocas, da mesma forma que diferentes foram os interesses sobre a produção dos populares e dos afro-brasileiros. Não só músicos eruditos estão entre os interessados. Não podemos esquecer das editoras que vendiam partituras, dos empresários dos teatros e café dançantes, e mesmo da indústria fonográfica que não abria mão de gravar gêneros populares, regionais, sambas e lundus. Os teatros também. Nas primeiras décadas do século XX, não havia peça com sucesso, em várias capitais do Brasil, mas principalmente no Rio de Janeiro, sem muitos maxixes, uma dança moderna por excelência que fazia frisson também em Paris. Mas sua pergunta é direta em relação ao reconhecimento dos produtores. Essa é a questão. Os gêneros afro-brasileiros transitavam e eram aceitos em muitos locais, mas seus produtores, seus músicos e dançarinos, tinham muita dificuldade de entrar no teatro, nem recebiam adequada remuneração e reconhecimento na venda de discos ou nos programas de rádio dos anos 30. Mais ainda, tinham que lidar com diversas representações estereotipadas racistas sobre sua ascendência africana, seus talentos musicais e performances.
Convidamos todxs para seguirem nossa programação dia 11 de junho.