Resenha | “Regional como opção, regional como prisão”, por Weslei Rodrigues

O Blog da BVPS publica hoje uma resenha do livro Regional como opção, regional como prisão, de Eduardo Dimitrov (Editora Alameda, 2022). A resenha, assinada por Weslei Estradiote Rodrigues, doutor em Sociologia pela USP, mostra como o autor aborda o caráter plural do modernismo brasileiro, expondo-o a partir do caso pernambucano.

Boa leitura!


Modernismo pernambucano e o imperativo regional

por Weslei Estradiote Rodrigues

Nove anos depois de defendida, mas em momento que não poderia ser mais oportuno, torna-se livro a excelente tese Regional como opção, regional como prisão, do hoje professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, Eduardo Dimitrov.

Menciono o momento oportuno referindo-me à comemoração do centenário da célebre Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922, revista ao longo deste ano em diversos eventos dedicados a pensá-la e repensá-la no cenário da vida intelectual brasileira. E o que mais se viu a esse respeito foram falas e textos que ponderaram entre, por um lado, recuperar sua relevância como evento e marco memorialístico e, por outro, situá-la no quadro geral do processo de formação nacional, posicionando-a como um evento marcadamente local, paulista, cuja celebração conseguinte tratou de projetá-la como evento de alcance nacional.

Dito isto, o que a tese de Dimitrov traz à tona, agora ao alcance do grande público, abrindo o debate, é justamente o caráter múltiplo e plural do fenômeno estético do modernismo no Brasil, expondo com a análise do caso pernambucano, as manifestações locais e seus modos de articulação com as esferas nacional e global da arte. Dimitrov, desde o título, mostra como se instaura uma lógica posicional e relacional entre artistas e grupos artísticos de Pernambuco, em que o regional é articulado localmente e projetado globalmente através de uma série variada de estratégias de circulação e da construção de conjuntos de relações. Tecer essas estratégias é sempre para os artistas uma espécie de dilema fundamental.

O preâmbulo expõe muito bem as hipóteses e perguntas que guiam o trabalho, bem como o arcabouço analítico que o ampara. E um dos elementos a se destacar neste ponto é a percepção de que Pernambuco integra uma lógica mundializada, mas desde uma posição duplamente desprivilegiada, enquanto periferia de outra periferia (ou seja, em posição marginal em relação aos centros artísticos nacionais – sobretudo o Rio de Janeiro –, que eram, por sua vez, marginais em relação aos centros globais). Há, portanto, formas diversas de produzir posições e engajar esta condição, e que se transmutam sensivelmente entre o início da década de 1920 e o final da década de 1940.

Já no primeiro capítulo, note-se, Dimitrov reconstrói as dinâmicas criadas entre artistas pernambucanos ou que atuaram em Pernambuco no período a partir da análise de obras e documentos, com uma atenção bastante bem dirigida ao aspecto geracional como constitutivo das distinções mobilizadas. Mais do que isso, o autor elabora uma exposição bastante refinada e apurada ao demonstrar que os artistas mais jovens, atrelados ao “Grupo dos Independentes”, não opera uma cisão profunda em relação àqueles a quem chamavam de “acadêmicos”, em tom por vezes pejorativos (como era comum ocorrer nesses embates em diversas outras conjunturas nacionais e internacionais). Essas distinções, realizadas de modo bastante conjuntural, não os impediam de manter certa proximidade e não constituíram embates estéticos (acerca do emprego de técnicas, formas e estilos) notórios e públicos. Nos idos da década de 1930, quem travava os debates sobre forma eram, na verdade, os ensaístas, como no exemplo da oposição entre futurismo e regionalismo tradicionalista, defendidos respectivamente por Joaquim Inojosa e Gilberto Freyre.

O que Dimitrov buscou demonstrar de início é que entre artistas “independentes” e “acadêmicos” havia, em verdade, um “idioma partilhado” que se situava, sobretudo, nos consensos e diálogos estabelecidos em torno das temáticas, ditas regionais. Pontue-se ainda que, a despeito de suas escolhas, os artistas em geral tinham plena ciência dos debates que as vanguardas modernistas encampavam alhures (haja vista sua intensa circulação entre o nordeste, o sudeste e os centros artísticos europeus).

Desde o início, portanto, as rivalidades são matizadas e retrabalhadas, e o final da década de 1940 vai sendo apontado como o verdadeiro ponto fulcral dos embates estéticos em Pernambuco, perpetrados em torno da exposição de Cícero Dias em 1948. Para o autor, foi também a crítica posterior, consolidada nos anos 1950, que criou essa perspectiva sobre os Salões dos Independentes como um ponto de cisão e completa renovação estética.

Feita a ponderação inicial, o segundo capítulo dá um passo adiante na reconstituição do universo artístico pernambucano na primeira metade do século XX ao caracterizar sua Escola de Belas Artes do Recife (EBAR), criada em 1932, inspirada na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, instituída em 1891 como parte das reformas republicanas, mas herdeira direta da Academia Imperial de Belas Artes. Em Pernambuco, no entanto, a Escola de Belas Artes derivou de uma fração do Liceu de Artes e Ofícios, composta por professores ligados aos grupos empoderados pela Revolução de 1930, que colocou Getúlio Vargas na presidência. Para esse grupo, a criação da instituição de ensino artístico era um passo inescapável do “progresso”, um ato “civilizador”.

De todo modo, é destacável que houve a mobilização de parte dos artistas pernambucanos em torno do projeto, ainda que, durante muito tempo, a carreira de professor não tenha sido estruturada e capaz de amparar suas carreiras. Dentre os que se destacaram no ofício está Mário Nunes, reconhecido como pintor de paisagens que pretenderam imprimir certo registro do regional (e, como bem sabemos desde Simon Schama (1996), a paisagem deve ser compreendida como o registro da natureza estética e culturalmente elaborada). Outros artistas, ainda no âmbito da Escola de Belas Artes, se empenharam em produzir cenários, nas palavras do autor, “telúricos, bem caros às elites locais”, dentre os quais Murilo La Greca é extraído como caso emblemático.

No terceiro capítulo, Dimitrov aborda os artistas ligados ao ensaísta Gilberto Freyre. São quatro as partes do capítulo, cada uma dirigida a um artista: Manoel Bandeira, Lula Cardoso Ayres, Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro. Em cada uma dessas partes executa-se um trabalho preciso e objetivo de reconstrução de trajetórias e análise das estratégias efetivadas pelos artistas abordados para construírem para si um lugar, uma posição no conjunto do universo artístico local e nacional. E em cada um dos casos o regional é de alguma forma mobilizado por eles como recurso.

Dimitrov parte da origem social dos artistas selecionados e aponta as possibilidades que se apresentaram para cada um em suas carreiras profissionais: Bandeira, não oriundo das elites açucareiras e tampouco vinculado à Escola de Belas Artes, realizou um percurso profissional atrelado ao ramo gráfico, ilustrando livros,  ligado a editoras, jornais e revistas, alguns trabalhos dos quais derivaram de sua relação com Freyre; Ayres, por sua vez, membro da “açurocracia”, gozou de maior liberdade criativa e teve uma carreira com múltiplas funções e projetos, da ilustração à pintura mural, tudo isso alinhavado em um diálogo tecido muito de perto com Freyre; e Rego Monteiro, membro da elite comercial recifense, não conseguiu viabilizar sua carreira artística em Paris, tendo, por isso, realizado um percurso decadente, que redundou em adesão a pautas da extrema-direita e em um afastamento de seus colegas. Dentre todos, foi ele, segundo Dimitrov, o que mais teve de realizar concessões em sua obra. Dias, por sua vez, é o caso analisado em que mais se explicita o duplo jogo da consagração: a trajetória do artista é exemplo da articulação dos planos e escalas da arte como sistema em processo de mundialização. Sem descolar-se de Recife, sempre executando obras que o conectaram às demandas regionais, Dias se consagrou também em Paris inserido nas vertentes do abstracionismo geométrico.

O quarto e último capítulo arremata o argumento abordando o final da década de 1940, percebida como um período de “efervescência cultural”, tanto pelo arrojo das experimentações formais, quanto pelo surgimento da Sociedade de Arte Moderna do Recife (SAMR), coletivo que deu coesão às inovações propostas, fomentou os debates e dinamizou a produção artística. E o capítulo inicia considerando os fatores políticos que ocasionaram essa efervescência, destacando o fim do Estado Novo varguista, a abertura e os incentivos dados aos artistas, bem como a posição eminente de Gilberto Freyre, cuja obra havia alcançado abrangência nacional e respaldo político.

Dimitrov inicia a demonstração de seu argumento com uma evidência documental bastante contundente, extraída dos trabalhos de Freyre. Ele aponta para uma mudança significativa dos argumentos acerca do regional entre os textos de 1925 e aqueles escritos na década de 1940. Enquanto na década de 1920 Freyre defendia um regionalismo atrelado à economia açucareira, um tradicionalismo saudosista da grandeza econômica pretérita do nordeste, nos textos da década de 1940 começa a emergir uma ideia de “povo” como elemento que precisa integrar os projetos estéticos, e suas manifestações culturais como os temas a serem priorizados (embora os elementos da “brasilidade” e da “regionalidade” já estejam sugeridos nos textos anteriores). Nos textos de 1945, Freyre expõe uma ideia de povo que é permeada pela exaltação da miscigenação e do amálgama de culturas, matriz imprevista da cultura verdadeiramente nacional. Dimitrov sugere, portanto, que há alguma afinidade entre os desdobramentos do ensaísmo de Freyre e das propostas estéticas de certos artistas pernambucanos no final dos anos 1940. Entretanto, aponta também que nesse período o regionalismo se diversifica e bifurca em vertentes não ligadas a Gilberto Freyre.

No trecho inicial do capítulo apresenta-se a emergência de certa ideia de povo que, compartilhada, perpassa as artes e o pensamento social na década de 1940 em Pernambuco. Nos trechos seguintes, no entanto, apresenta e analisa quatro eventos expositivos, três dos quais associados ao Teatro de Estudantes de Pernambuco (TEP, grupo composto por estudantes da Faculdade de Direito do Recife, entre os quais Ariano Suassuna): Lula Cardoso Ayres em 1946, Cícero Días em outubro de 1948, Ladjane Bandeira em dezembro do mesmo ano, e a de esculturas de Adalberto da Hora também em 1948.

Sobre a exposição de Ayres, Dimitrov demonstra como ela representa seu momento de auge e consagração, não apenas porque a crítica o alça à posição de artista do panteão pernambucano, ao lado de nomes como Telles Júnior, mas também porque nessa ocasião Ayres se torna um dos professores da Escola de Belas Artes do Recife, agora federalizada. Já a exposição de Cícero Días dois anos depois demarca a oposição firmada em Pernambuco acerca de sua obra entre a valorização do regionalismo e uma resistência insistente ao abstracionismo com o qual o artista tanto dialogou.

Já a exposição de Ladjane Bandeira é tratada como um acontecimento singular: poemas emoldurados e ilustrações provocaram uma curiosidade benevolente da crítica que permitiram a ela que realizasse, dentro em pouco, uma exposição individual no mesmo espaço da Faculdade de Direito, financiada agora pela recém-criada SAMR. Ainda em 1948, a exposição de Abelardo da Hora teve impacto semelhante pelo caráter inovador que parecia representar, sobretudo ao adotar a fome como grande temática de suas esculturas, em certo veio expressionista. Foi a partir da vereda aberta por Abelardo da Hora que justamente se formou a SAMR, o Ateliê Coletivo e o regionalismo se reinventou em outros registros nas obras de outros artistas, analisados no último trecho do trabalho, tais como José Cláudio, Gilvan Samico e Wellington Virgolino. Em meio a esse contexto insere-se ainda Francisco Brennand, oriundo da Escola de Belas Artes e das elites locais, aluno de Murilo la Greca, que oscilou em suas experimentações entre o tradicionalismo de matriz freyreana e as inovações estimuladas pela SAMR.

Vai se configurando, assim, discursivamente, uma polarização no espaço artístico pernambucano que opõe de um lado os “modernos” da SAMR aos “acadêmicos” da Escola de Belas Artes, ou ainda entre os artistas associados ao grupo de Freyre e ao Teatro de Amadores de Pernambuco, tidos como conservadores, e aqueles ligados ao TEP. Nesse ínterim, os elementos do regionalismo freyreanos são reincorporados e reinventados, esbatidos pela crítica às mazelas sociais introduzidas por Hora e reiteradas por Hermilo Borba Filho no campo do teatro.

Dimitrov encerra o trabalho encetando uma reflexão relevante sobre como o regional se apresentou, de diferentes modos, como um imperativo para os artistas que atuaram em Recife no período do enfoque. Mesmo quando escaparam às representações figurativas e se aproximaram da abstração e de outras modalidades de experimentação estética, a crítica sempre encontrava meios interpretativos de atribuir características telúricas às obras, ignorando seus aspectos cosmopolitas. Essa recepção marcada Dimitrov qualifica como um “entrave estrutural” do sistema artístico pernambucano do período. O “imaginário nativista”, segundo ele, era a “régua” que media a qualidade artística não pela técnica, mas pelo “gênio”. Algo a ser remarcado é que essa lógica não era exclusiva de Pernambuco: esse apreço pela “cor local” e certa aversão aos “estrangeirismos” era uma espécie de regra herdada do naturalismo do século XIX que foi sendo matizada após décadas de rotinização do modernismo nos circuitos e mercados artísticos nacionais.

A ideia de região, portanto, muito presente no debate artístico pernambucano, era, na verdade, parte do que perpassava a constituição de um imaginário estético da modernidade nacional que foi se formando de modo fragmentário e cada vez menos em oposição à nação. Os regionalismos, ditos no plural, acabaram por tensionar de modo ambíguo os projetos de modernidade e os espíritos nativistas e tradicionalistas, reativos à modernização. Portanto, os modernismos, sua recepção crítica e seus artistas, não representaram, afinal, a cisão profunda e fundante que quiseram fazer crer que foram, dado que acabaram, ao fim e ao cabo, repondo as mesmas questões acerca do enigma da identidade nacional de períodos anteriores (em novo termos, é verdade, e produzindo novas saídas e respostas): onde estaria o nacional? Em que fundão intocado? Em que tonalidade? Qual a sua verdade?

As percepções finais são bastante refinadas e conduzem a pesquisa para um enlace interpretativo que esboça articular os planos regional, nacional e internacional. Desse modo, sinto que no aspecto metodológico caberia alguma discussão sobre como essas dimensões, elementos e agentes se integram em um sistema artístico em franco processo de mundialização no início do século XX, de intensificação das transferências culturais (Espagne, 2001), e que opera em diferentes escalas. De todo modo, fosse a única possibilidade, fosse um entrave, o regionalismo era enquadrado, a bem da verdade, como um imperativo que se impunha aos artistas em Recife, dado que a própria condição de integração ao sistema artístico nacional e mundial passava antes pelas assimetrias inerentes à geografia simbólica que correlaciona todas as partes desse sistema, seus centros e suas margens. Mas é válido destacar, por fim, que os modos criativos, originais e mesmo paródicos de produzir arte moderna em Pernambuco na primeira metade do século XX representam modalidades de agenciamento que, não raro, converteram o tradicionalismo em autenticidade, em moeda de troca, e por vezes inverteram as relações de subordinação. Com essa munição, muitos souberam fazer bem o jogo relacional das identidades e rótulos, souberam transitar, embora sempre perseguidos pela alcunha de “regionais”, sempre demarcados pela pecha da regionalidade como um estigma que foi também seu recurso mais valioso.


Referências

CHIARELLI, Tadeu. Naturalismo, regionalismo e retorno à ordem no ocaso do modernismo brasileiro. In: Um modernismo que veio depois. Arte no Brasil, primeira metade do século XX. São Paulo : Alameda, 2012. pp. 33-50.

ESPAGNE, Michel. La notion de transfert culturel, Revue Sciences/Lettres [En ligne], n°1, 2013. pp.1-9.

RODRIGUES, Weslei E. Modernos Arcaísmos. Arte e nação no Brasil e em Portugal no final do século XIX pelas obras dos pintores Almeida Júnior e José Malhoa. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Sociologia. São Paulo, 2021.

SAPIRO, Gisèle. Le champ est-il national? La théorie de la différenciation sociale au prisme de l’histoire globale. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 200, 2013. pp. 70-85.

SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SIMIONI, Ana Paula C.; STUMPF, Lúcia K. O Moderno antes do Modernismo: paradoxos da pintura brasileira no nascimento da República. Teresa. Revista de Literatura Brasileira [14]. São Paulo, pp.111-129, 2014.

THIESSE, Anne-Marie. La Création des Identités Nationales. Europe XVIIIe – XXe siècle. Paris : Éditions du Seuil, 1999.

THIESSE, Anne-Marie. La petite patrie enclose dans la grande”: regionalismo e identidade nacional na França durante a terceira república (1870-1940). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n.15, pp. 3-16, 1995.


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