O político na crônica de Carlos Drummond de Andrade nos “anos de chumbo”, por Henrique Fagundes Carvalho

O Blog da BVPS publica hoje na, coluna minas mundo, uma nota de pesquisa sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade, como forma de celebrar os 120 anos do nascimento do autor, comemorado na última segunda-feira, 31 de outubro. A nota resulta da pesquisa de mestrado em Estudos Literários realizada por Henrique Fagundes Carvalho (UFMG), que se debruçou sobre as crônicas escritas por Drummond durante a ditadura civil-militar brasileira.

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Boa leitura!

O político na crônica de Carlos Drummond de Andrade nos “anos de chumbo”

por Henrique Fagundes Carvalho

Revisitar a obra de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) é percorrer um território tão extenso e diversificado quanto a própria fortuna crítica sobre ele produzida. Causa surpresa, no entanto, que uma parte significativa desse vasto território permaneça pouco explorada. Reconhecido como um dos mais importantes poetas da língua portuguesa, Drummond é também o autor de uma imensa obra em prosa. Com efeito, o autor produziu mais de seis mil textos, entre poesia e prosa, para os muitos veículos de imprensa com os quais colaborou regularmente desde o princípio da década de 1920 até o ano de 1984, quando se despediu dos leitores da coluna trissemanal que mantinha no Jornal do Brasil desde o ano de 1969. A maioria dos textos que compuseram os mais de quarenta livros que publicou em vida chegou aos leitores primeiramente nas páginas de jornais e revistas. A prosa e a poesia de Drummond coabitaram inicialmente as mesmas páginas dos jornais, mas foi sua lírica que recebeu reiterada atenção da crítica, embora uma pequena fração de sua prosa também tenha sido compilada em volumes de “crônicas”[i] que também alcançaram significativo sucesso editorial.

Alguns motivos concorreram para a pouca atenção dispensada pela crítica a sua prosa. Primeiramente, o fato de a poesia desempenhar um papel de maior destaque no conjunto da obra drummondiana, conforme a avaliação do próprio autor que nas introduções e orelhas de seus livros costumava reafirmar a natureza despretensiosa e fundamentalmente lúdica de suas crônicas, às quais se referia como simples “cabriola matutina”. No mesmo sentido, a crítica tendeu a avaliar sua obra em prosa como acessória, como se ela apenas recolhesse de forma mais distendida temas e problemas que foram literariamente trabalhados de forma mais tensionada em sua poesia o que convergiu para uma tendência da crítica de analisar as obras em prosa de Drummond – notadamente aquela reunida nas diversas coletâneas de crônicas organizadas pelo próprio autor – à luz de sua poesia e a partir de um viés de confirmação. Some-se a isso a própria subvalorização da crônica enquanto gênero. Considerado como “tipicamente brasileiro” dada sua aclimatação ao país, a crônica moderna brasileira foi usualmente avaliada como “menor” quando comparada a outros gêneros literários canônicos.

Presumivelmente, esta lacuna da crítica também se deve à dificuldade de acesso a esse vasto material, uma vez que a maior parte da produção em prosa de Drummond permanece “inédita”, ou seja, não republicada em livros. Assim, as crônicas às quais a crítica teve maior acesso foram aquelas organizadas pelo próprio autor, com intencionalidade e motivação próprias, configurando-se uma espécie de “reescrita”, donde cabe a pergunta: que outros aspectos de sua obra, talvez menos conhecidos, poderiam ser identificados em sua imensa produção inédita?

Universo amostral e metodologia:

Percorrer parte desse território pouco explorado foi o que guiou o trabalho que resultou na dissertação de Mestrado: “Diálogo em tempos de silenciamento: o político na crônica de Carlos Drummond de Andrade nos “Anos de chumbo”, de Henrique Fagundes Carvalho, sob orientação do Professor Doutor Roberto Said, defendida dentro do programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais. A pesquisa bibliográfica com fontes primárias foi realizada no acervo da Hemeroteca Digital Brasileira, plataforma vinculada à Fundação Biblioteca Nacional. Contornada a dificuldade de acesso aos escritos inéditos graças ao acervo digital, a pesquisa teve por universo o conjunto de escritos de Drummond veiculados pelo Jornal do Brasil, cerca de duas mil e trezentas crônicas publicadas entre 2 de outubro de 1969 e 29 de setembro de 1984. Após uma leitura inicial desses escritos, com o registro de notas sobre seu tema, conteúdo e estilo, a percepção de certas recorrências deu margem à delimitação temporal e temática do trabalho.

O recorte amostral teve como mote certo estranhamento que emergiu dessa leitura, qual seja, a recorrência de temas relacionados ao campo político nessa porção inexplorada da obra drummondiana, aspecto que chamou a atenção por duas razões: em primeiro lugar, por haver certa ideia bastante disseminada de que a partir de certo ponto de sua trajetória artística Drummond teria recuado do campo de batalha político e se tornado um “observador no escritório”, alguém que assiste ao espetáculo do mundo, algo entediado e desalentado, afastamento que levou a uma guinada em sua lírica, na qual se notou o sucessivo predomínio de uma nota metafísica, experimental e memorialística por oposição à poética social de um momento anterior de sua produção, mais precisamente, à da primeira metade dos anos 1940. Essa imagem “apolítica” está de acordo com um discurso autobiográfico reiteradamente repetido por Drummond e teve ressonâncias em parte importante da crítica. Contrariamente ao que se espera de um autor “apolítico”, em muitas das crônicas do período estudado, uma voz politicamente crítica e, mesmo, engajada do autor se faz claramente perceptível. Em segundo lugar, tal recorrência do político se reveste de particular importância devido ao momento histórico de sua produção e circulação. Como dito, a colaboração regular de Carlos Drummond de Andrade para o Jornal do Brasil ocorreu entre 1969 e 1984, portanto, integralmente durante a ditadura civil-militar implantada com o golpe de 1964, período no qual, como é sabido, houve forte cerceamento da liberdade de expressão com rígida censura aos órgãos de imprensa. Assim, como o aspecto político da crônica drummondiana no contexto da ditadura emergiu com o tema, optou-se por uma delimitação temporal que coincide com período no qual o tensionamento entre o ambiente político e a liberdade de expressão foi mais extremo. Ora, Drummond passou a escrever para o Jornal do Brasil em outubro de 1969, mesmo mês em que havia tomado posse o General Emílio Garrastazu Médici, cujo governo se estendeu até março de 1974, intervalo de maior recrudescimento da perseguição política e da censura no regime ditatorial, conhecido como os Anos de Chumbo. Por essa razão, definiu-se como marcos temporais os anos de 1969 e 1974, sendo que a maioria das 53 crônicas que compuseram a amostra analisada no trabalho pertence a esse intervalo temporal.

Veja-se, por exemplo, o recorte abaixo da crônica Primavera afinal encontrada, de 24 de setembro de 1970:

E há flores distintas pra cada um dos Partidos? – Não. Adotamos as mesmas flores e as mesmas ideias, que se resumem numa só, e olhe que uma já é demais. Apenas, damos preferência a flores inodoras e de colorido suave. Nada de rosas e antúrios violentos. A rigor, não formulamos programas; tecemos ramalhetes para uso dos eleitores e dos poderes constituídos. Nesse particular, sim, distribuímos a primavera. Uma primavera discreta, bem-comportada, sabe? Quem achar insípidos nossos arranjos verbais, não sabe a arte das combinações de flores. Olhe: a Arena especializou-se em ikebana, o MDB em moribana. A diferença de nomes não implica diferença de gêneros. Podemos até usar os buquês do adversá- rio, e ele o os nossos. O jardim é um só.

Nesse trecho nota-se uma ácida crítica ao bipartidarismo que vigorou até 1979, a afirmação de uma igualdade essencial entre Arena e MDB e de que, portanto, não havia uma verdadeira oposição ao regime. Dificilmente se pensaria que esse texto tenha sido publicado sob a vigência do Decreto-Lei nº 1.077, de 21 de janeiro de 1970, que regulamentou o exercício da censura prévia, e ainda que pertença a um autor que fazia questão de se declarar como apolítico. A tematização crítica do político, que nesse trecho aparece de forma mais explícita, em vários outros escritos se disfarça na forma tangencial e alusiva da crônica, modo de expressão conveniente para o contexto de restrição da liberdade de expressão.

Além dos fatores já mencionados (a autodeclarada postura apolítica de Drummond e o contexto ditatorial), um outro elemento ligado às tensões do autor com o campo político reveste de particular interesse a investigação sobre este tema em sua escrita. A relação entre intelectuais brasileiros e o poder, isto é, sua presença em centros decisórios do Estado, foi objeto de importantes análises sociológicas e históricas, como no estudo clássico de Sérgio Miceli, publicado em 1979, Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920 – 1945). O caso de Drummond, por emblemático, esteve na mira de investigações dessa ordem que expuseram as origens familiares do escritor, provindo de uma aristocracia rural decadente e sua presença-chave no importante Ministério da Educação do Estado Novo (1937-1945) num flagrante contraste com sua manifesta proximidade, àquela altura, com ideário do Partido Comunista, como transparece em sua poesia social dos anos 1940, sobretudo em A Rosa do Povo (1945). Em reiteradas ocasiões, Drummond se defendeu da acusação de trabalhar para a ditadura Vargas, alegando que sua atuação como chefe do gabinete do ministro Gustavo Capanema era meramente burocrática e se devia a relações de amizade, sendo desprovida de qualquer alinhamento político ou ideológico com a ditadura estadonovista. Outra feita, sua aproximação e posterior rompimento radical com o Partido Comunista deixou marcas significativas em sua lírica a partir da década de 1950, sobretudo com a publicação de Claro Enigma (1951). Assim o trabalho procurou retraçar, em linhas gerais, o processo por meio do qual Drummond passou do poeta engajado de A Rosa do Povo para o (supostamente) neutro Observador no Escritório[ii], revendo em que termos se dá o engajamento político em sua escrita, o modo como o autor o concebia e, de outro lado, como essa dimensão politicamente ativa transparece em seus escritos do período estudado, mesmo sendo negada pelo próprio autor.

A revisão da fortuna crítica drummondiana evidenciou diferentes acepções do político em jogo na sua obra, ressalva feita ao fato já mencionado de que a crítica analisou, fundamentalmente, sua obra lírica. Evidenciou-se uma polarização entre duas diferentes formas de participação política que variaram ao longo da produção drummondiana, uma dimensão mais ativa da palavra, que pretende produzir uma intervenção na realidade e outra mais passiva, compreendendo a palavra mais como um instrumento de captação de um real histórico. Nesse sentido, Silviano Santiago destaca a relação “fraterna” entre Drummond e o século XX, lembrando que a vida do “irmão mais novo” (1902-1987) coincide em grande parte com seu “irmão mais velho”, o breve século XX cujos marcos temporais foram, para Eric Hobsbawn, a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914) e o colapso da URSS (1991). A essa sobreposição temporal, some-se o atento olhar de Drummond para o mundo, razão pela qual sua escrita se mostra permeada por uma reflexão sobre os principais acontecimentos de sua época. Extrapolando as considerações da crítica sobre sua poesia para sua obra em prosa, embora, ao menos em tese, fosse esperado que, por se tratar de um gênero fortemente caracterizado pela captação do real imediato da experiência cotidiana houvesse em sua crônica a predominância de uma dicção mais passiva da palavra, observou-se, no entanto, uma forte vocação politicamente ativa de sua escrita, manifesta pelo permanente convite ao diálogo e pela promoção de uma reflexão crítica sobre o país e o mundo, a despeito dessa escrita ter sido produzida e veiculada em contexto de forte censura.

Em relação ao papel político do intelectual, observou-se também que em sua prosa há o mesmo tipo de oscilação entre crença e ceticismo quanto à possibilidade de intervenção no real a partir da literatura manifesta em sua poesia enquanto dicção participante ou como melancólica expressão da sua impossibilidade, polaridades que têm por base o sentimento que Roberto Said (2005) conceitua como angústia da ação. Tomemos alguns exemplos dessa oscilação.

Na crônica Hoje não escrevo, de 26 de setembro de 1970, lê-se uma expressão cristalina do ceticismo desalentado do autor:

Ah, você participa com palavras? Sua escrita — por hipótese — transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidas à sua maneira de ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever O Capital é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra. E nem sequer você escreveu O Capital. Não é todos os dias que se mete uma ideia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa escrever e abster-se, no mesmo saco. Vazio, antes e depois da operação.

Mas, a despeito desse ceticismo, no que diz respeito ao aspecto político, o tom dominante das crônicas do período parece ser o da crônica Um cidadão, de 1º de setembro de 1970, na qual o cronista se coloca ao nível de seus interlocutores, identifica-se com eles e faz uma espécie de mea-culpa convocando a uma maior participação política. Vejamos:

Sou dono desta nação. Nem sempre essa propriedade me acode a lembrança, e deixo-a entregue não sei bem a quem, ou a ninguém. Devia tê-la presente no meu cotidiano, mas confesso que sou preguiçoso, omisso, distraído e não sei mais o quê. E como geralmente não se lembram de me lembrar, fica tudo assim mesmo, com o Sr. Acaso fazendo mal e porcamente as minhas vezes de proprietário. Ah, não posso queixar-me. Se eu tivesse mais consciência de meus poderes, de minhas responsabilidades.

Aproximações teóricas

Para deslindar o caráter político da escrita de Drummond, recorreu-se a alguns autores que abordaram as configurações do poder e do político na modernidade. As aproximações teóricas que se procurou fazer não foram gratuitas. Os modos de criação e circulação da crônica e sua originalidade em termos de expressão da cultura brasileira remeteram à discussão sobre a partilha do sensível, proposta por Jacques Rancière. De acordo com esse filósofo, o fenômeno estético é inerentemente político mesmo quando a explicitação das disputas de poder constitutivas do tecido social não são o objeto direto da obra de arte, isto é, quando não há uma temática claramente política. Isso porque a obra de arte sempre remete ao campo das percepções socialmente partilhadas e distribuídas, o que o autor conceitua como “partilha do sensível”. A constatação de que Drummond frequentemente abordou de forma crítica um inelutável avanço das tecnologias e estratégias de controle do ser humano, apontando as repercussões desse processo, levaram à conceituação de Foucault do biopoder e à concepção de Arendt sobre a condição humana, articuladas na discussão de Agamben sobre a vida nua. O contexto histórico da ditadura levou a pensar nas características do estado de exceção a partir de Agamben. Procurou-se indicar alguns pontos de contato entre as crônicas de Drummond e a forma como esses teóricos pensaram o poder e o político na modernidade, embora com isso não se quisesse afirmar que Drummond tivesse em vista alguma construção teórica sobre o poder ou sobre o político, mas apenas que o olhar atento do cronista reconheceu, a partir da experiência cotidiana que alimentava sua crônica, alguns dos traços marcantes da modernidade política que foram teoricamente trabalhados por esses pensadores.

O trabalho procurou evidenciar como, em suas crônicas, Drummond se posicionou politicamente frente a embates de seu tempo sem pretender, contudo, rotular ou enquadrar ideologicamente suas posições. Verificou-se, primeiramente, que o político em Drummond não era balizado por algum viés partidário (em linha com sua autoproclamada postura apolítica). Assim, o caráter político identificado em sua escrita difere conceitualmente da acepção a partir da qual o autor considerava o político. Quando Drummond se declarava “não político”, seu (não) posicionamento dizia respeito principalmente ao campo das disputas partidárias com vistas à ação do e no Estado por meio da máquina governamental. O político identificado em sua escrita remete a uma ação discursiva, política pela abordagem de temas que afetavam os indivíduos e a coletividade e sobretudo pelo convite à discussão dessas matérias. O pacto dialógico que fundamenta a crônica drummondiana virtualiza uma esfera pública que se encontrava severamente cerceada pela ditadura. Nesse sentido, cabe lembrar que o político, tal como o preceitua Arendt, pertence à condição humana da ação e tem como pré-requisito a existência dessa esfera pública, espaço de trocas simbólicas dos seres humanos, colocados em relação de igualdade, mas considerados em sua pluralidade. A crônica de Drummond é política enquanto lugar crítico e reflexivo a partir do qual o cronista convidava o público ao diálogo.

Em segundo lugar, o caráter político de sua crônica não se apresentava de forma ordenada e monotemática, mas se traduzia em uma abordagem a questões pontuais recolhidas a partir do seu dia a dia, da leitura dos jornais, ou ainda dos temas trazidos pelos próprios leitores. O trabalho procurou demonstrar como, em suas crônicas, esse “político” se afigura de uma forma dispersa e radiculada, múltipla como são as próprias disputas de poder no mundo moderno e solidária da diversidade de pensamento que o autor defende, podendo-se, alternativamente, falar em “políticas”, ou seja, em perspectivas diversificadas a partir das quais as relações com o poder podem ser pensadas na contemporaneidade. A crônica, colada ao cotidiano, registra a cadência de um embate político também diário, pelo qual se alinha a uma concepção microfísica das disputas de poder objeto, em linha com a concepção foucaultiana.

No que concerne à ditadura, a atenção do cronista se voltou, principalmente, para a denúncia ao sufocamento da esfera pública pela censura, para uma crítica às manobras político-partidárias de conveniência, para a publicização da inefetividade do sistema bipartidário (dados o silenciamento ou a conivência do MDB, como vimos no trecho apontado anteriormente) e pela reivindicação do voto direto para os cargos do executivo federal e estadual. Localmente, há que se mencionar ainda a defesa do direito de grupos sociais específicos, como as mulheres e os povos indígenas, além da crítica à pauta dos costumes e ao conservadorismo sociopolítico, e da denúncia da hipocrisia das classes dirigentes.

De uma perspectiva mais ampla, na crônica de Drummond se verifica uma consciência crítica da configuração do biopoder no mundo moderno, dos avanços do capitalismo internacional e de uma lógica de organização da sociedade que têm resultado em um progressivo controle do ser humano e em sua objetificação e redução às instâncias do trabalho e do labor, como preceituados por Hannah Arendt. Veja-se, a título de exemplo, este trecho da crônica Um homem, um número de 19 de janeiro de 1971:

Torna-se imperativo substituir pessoas, com suas verrugas, virtudes e vícios, por notações codificadas, que caibam no mínimo de espaço e permitam o máximo de controle sobre a existência outrora individual, já sem direito a este adjetivo, quando os seres pensantes e sentintes chegarem à condição desejável de signos insignificantes, computados eletronicamente. E que será de nossas alegrias personais, como de nossas tristezas muito nossas, se ainda as tivermos, uma vez despojados de prenome e sobrenome, que nos davam consciência de ser um exemplar diferenciado entre milhões, com a prerrogativa de ter reações e atitudes próprias? Como se fará o amor entre números? Que expressão terá o aniversário, a doença de um número? Como é que um número morre?

No mesmo compasso, o cronista mostrou-se preocupado com a degradação do meio ambiente com riscos para a própria existência do ser humano. Assim, além de estar voltado a discussões de seu tempo, Drummond se mostrou, não raro, antecipadamente atento a temas que só mais tarde ganharam destaque no debate público, como, por exemplo, a discussão em torno da redemocratização do país, que somente se tornou dominante entre os intelectuais brasileiros na segunda metade da década de 1970, ou a temática ecológica, cuja importância para a agenda política ainda é crescente em nossos dias.

O alcance e a profundidade da reflexão crítica drummondiana, é preciso lembrar, aparecem na crônica sob uma forma comunicativa e leve, o que amplia seu sentido político dada a facilitação ao diálogo a que o gênero se propõe, uma vez que a informalidade e a coloquialidade tornam a crônica convidativa à interação e potencializam-na como espaço literário da esfera pública.

Há ainda que se mencionar um outro aspecto importante da dimensão política da crônica de Drummond. Sua visão do indivíduo como ponto de resistência ao poder. O político em Drummond aparece como essa reivindicação da liberdade de pensar individual contra a absorção completa por formas coletivas de pensar e agir.

Assim, o caráter político da escrita de Drummond identificado pela fortuna crítica possui dois modos diferentes de participação. Um que guarda relação com o valor histórico do texto e que sugere uma participação passiva, como registro de fatos e de seus efeitos, e outro modo de participação mais ativa, enquanto palavra que quer provocar o pensamento, mobilizar ou sensibilizar para uma reflexão extraliterária, na crônica do período estudado, por suas características linguísticas e pelo papel que desempenha na praça de convites responde, em grande parte, pela dicção-intento-interpelação ativa da escrita de Drummond.

Neste ano em que se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna e no qual se discute o significado do modernismo para a cultura brasileira, parece oportuno revisitar uma parte menos conhecida da obra de um dos nomes associados ao movimento, o autor do polêmico verso No meio do caminho tinha uma pedra. Há cinquenta anos, ou seja, no meio do caminho entre a Semana de Arte Moderna e o seu centenário celebrado em nossos dias, face à pedra antidemocrática imposta com o golpe de 1964, reveríamos um septuagenário escritor empenhando sua palavra num discreto e cotidiano embate político. Reler suas crônicas cinquenta anos depois que foram escritas, contra toda a expectativa de perecibilidade frequentemente apontada no gênero, ainda se mostra uma experiência prazerosa, embora às vezes revestida de uma embaraçosa atualidade. Talvez porque, a despeito das mudanças observadas nesse meio século, certas questões de fundo persistem e se renovam, como um discurso autoritário de base conservadora que o autor criticou e que soa incomodamente atual. Talvez porque vivamos os desdobramentos de processos históricos vislumbrados pelo autor, o que, às vezes, dota sua crônica de um olhar quase profético.

Mas, se a modernidade é marcada pelo uso de estratégias que objetivam submeter o ser humano, reduzindo-o a número apenas, a literatura se mostra como possibilidade de reflexão crítica e de realização de diálogo. A crônica de Drummond é um bom exemplo da exploração dessas possibilidades. Em um período em que vigorava o silenciamento imposto pela ditadura, o autor serviu-se do gênero para propor um lugar de reflexão, aberto à pluralidade e ao diálogo, fazendo da palavra literária uma ação dotada de valor político.


Notas

[i]   Os textos que compõem a produção jornalística de Drummond podem ser classificados em diferentes gêneros, mas adotamos aqui a denominação usada pelo próprio autor que se referia a eles como crônicas, e que Antonio Candido chama de crônicas “entre aspas”.

[ii]  “O Observador no escritório” é o título do livro publicado em 1985 que reúne trechos do diário de Drummond, compreendendo o período de 1943 a 1977, muitos dos quais foram publicados em sua coluna no Jornal do Brasil, entre janeiro de 1980 e maio de 1981.

Sobre:

CARVALHO, Henrique. F. (2021). Diálogo em tempos de silenciamento: o político na crônica de Carlos Drummond de Andrade nos “anos de chumbo”. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/39198. Acesso em: 26 mar. 2022.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. (1970). Hoje não escrevo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano 80, n. 148, 26 set. 1970. Caderno B, p. 8. Disponível em:http://memoria.bn.br/docreader/030015_09/195097. Acesso em: 26 mar. 2022.

ANDRADE, Carlos Drummond de. (1970b). Primavera afinal encontrada. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano 80, n. 146, 24 set. 1970b. Caderno B, p. 8. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/030015_09/194975. Acesso em: 26 mar. 2022.

ANDRADE, Carlos Drummond de. (1970c). Um cidadão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano 80, n. 126, 1º set. 1970c, Caderno B, p. 8. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/030015_09/193489 . Acesso em: 08 jul. 2021.

ANDRADE, Carlos Drummond de. (1971). Um homem, um número. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano 80, n. 244, 19 jan. 1971. Caderno B, p. 8. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/030015_09/202658. Acesso em: 18 ago. 2021.

SAID, Roberto. (2005). A angústia da ação: poesia e política em Drummond. Curitiba: Ed. UFPR; Belo Horizonte: Ed. UFMG.SANTIAGO, Silviano (2006). Convite à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade. In: Ora direis puxar conversa! Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 9-58

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