Coluna Primeiros Escritos | Dossiê Futebol e Sociedade (IV)

O Blog da BVPS publica o quarto e último texto que compõe o dossiê Futebol e Sociedade, organizado por Rennan Pimentel (PPGSA/UFRJ) e João Mello (PPGSA/UFRJ). O texto de hoje, assinado por Karim Helayel, pesquisador de pós-doutorado no PPGSA/UFRJ, nos convida a reler Os gênios da pelota: um estudo do futebol como profissão, dissertação de mestrado de Ricardo Benzaquen de Araújo.

dossiê Futebol e Sociedade faz parte da nova coluna do Blog, Primeiros Escritos. Para saber mais sobre a iniciativa, basta clicar aqui. Ao longo dessa última semana da Copa do Mundo, publicamos outros textos sobre futebol que podem ser acessados no Blog.

Boa leitura!


O erudito e o futebol: notas sobre Os gênios da pelota

                 por Karim Helayel

Não me parece exagerado afirmar que, pelo menos no campo de estudos denominado “pensamento social brasileiro”, a relação entre futebol e sociedade carece de reflexões mais sistemáticas. Ainda que os estudos sobre esportes e, mais especificamente, sobre futebol, venham ganhando espaço através da criação de grupos de trabalho e núcleos de pesquisa (HELAL, 2018), com uma já considerável produção bibliográfica (GIGLIO & SPAGGIARI, 2010), por muitos anos, o déficit parece ter sido a marca desse campo de debates entre boa parte dos intelectuais. Em seu belo livro intitulado Veneno remédio: o futebol e o Brasil, José Miguel Wisnik (2008) chamava a atenção para o fato de que o público de seu trabalho não poderia ser considerado óbvio. De um lado, grande parte das pessoas que vivem intensamente o cotidiano do futebol não se encontraria interessada em ler mais do que notícias publicadas em jornais ou revistas; de outro, quem se volta para a leitura de livros e interpretações de longo alcance tenderia a não ter uma vivência íntima com o futebol (WISNIK, 2008). Contudo, Wisnik (2008: 12) lembra da existência de intelectuais que vivem o futebol com demasiada intensidade, a despeito de não refletirem sobre ele com sistematicidade, resistindo a admiti-lo na “ordem do pensamento”. Levando em consideração o raciocínio de Wisnik, talvez seja possível assinalar certo divórcio entre a intelectualidade e o tema do futebol, malgrado o impacto desse esporte para as relações sociais em nosso país, sobretudo em períodos de Copa do Mundo, como o que estamos vivendo enquanto confecciono essas linhas.

De certo modo, podemos dizer que a percepção de Wisnik foi o ponto de partida da dissertação de mestrado de Ricardo Benzaquen de Araújo (1952-2017), intitulada Os gênios da pelota: um estudo do futebol como profissão, defendida em 1980 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação de Gilberto Velho. Ao iniciar seu texto, Benzaquen afirma que, ao entrar em contato com a literatura sobre futebol, até então existente nas ciências sociais, constatou que ela era, além de exígua, pouco volumosa, tratando o futebol, em sua maior parte, de forma marcadamente genérica (ARAÚJO, 1980). Se a distância entre a intelectualidade e o futebol foi assinalada por Wisnik, em seu Veneno remédio, livro publicado originalmente em 2008, tal separação seria ainda mais sensível na virada dos anos 1970-1980, período no qual Benzaquen se debruçava sobre a relação entre futebol e sociedade.

De acordo com Ronaldo Helal (2018), nos anos 1970, a escassez teria sido a marca dos estudos sobre futebol no país, havendo uma negligência das ciências sociais em relação ao tema. Helal (2018) cita Os gênios da pelota como uma das boas exceções do período, pois, além de seu pioneirismo junto a outros esforços analíticos, o trabalho de Benzaquen não teria reificado certas visões recorrentes, que tendem a qualificar o futebol como “ópio” ou “narcótico” da população. Os gênios da pelota parece configurar, portanto, trabalho exemplar do benfazejo encontro entre a intelectualidade e o futebol, em um contexto no qual a valorização da temática ainda era extremamente precária.[i]  

Neste sentido, parece-me pertinente apontar que um intelectual como Ricardo Benzaquen, cuja erudição, não sem razão, é frequentemente celebrada (GONÇALVES, 2017; JASMIN, 2017; SOARES, 2017), inicia sua trajetória como pesquisador no campo da antropologia, abordando um tema até então flagrantemente negligenciado pela intelectualidade. Contudo, ao nos debruçarmos sobre os trabalhos de Benzaquen, podemos observar que sua dissertação costuma ficar em segundo plano, figurando como uma espécie de passo em falso em sua produção intelectual. E isso se deve a inúmeros fatores, como, por exemplo, o fato de que Benzaquen é autor de uma das mais densas e influentes interpretações sobre a obra de Gilberto Freyre (cf. ARAÚJO, 1994), bem como por ter se notabilizado como um importante estudioso de nosso pensamento social. Não à toa, Elide Rugai Bastos (2017) aponta a importância da contribuição de Benzaquen para a área de pensamento social, destacando-o como um dos pioneiros da abordagem que visa a articulação entre texto e contexto. Seus estudos sobre o integralismo, bem como Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30, seriam representativos de seus esforços para dar conta das duas dimensões de forma combinada (BASTOS, 2017).

Portanto, procurarei argumentar que, além do marcante pioneirismo das contribuições de Benzaquen para o pensamento social, conforme discute Bastos (2017), sua dissertação de mestrado pode ser entendida como uma potente contribuição para reflexões em torno da relação entre futebol e sociedade, tema do presente dossiê. Suas formulações permitem vislumbrar questões fundamentais que interpelam tanto a teoria sociológica quanto nosso pensamento social, área na qual Benzaquen viria a atuar. Concederei ênfase, desse modo, a alguns dos principais pontos de sua dissertação, de modo a aquilatar a maneira pela qual o autor constrói sua reflexão sobre a relação entre futebol e sociedade, encaminhando-a desde o processo de construção da subjetividade dos jogadores de futebol a suas relações institucionais com os dirigentes dos clubes.

Foto de Ricardo Benzaquen de Araújo

A ética protestante e o “espírito” do futebol: a construção da subjetividade

Ao adentrarmos Os gênios da pelota, podemos notar que Benzaquen analisa, em seu trabalho de campo, as representações dos jogadores de futebol com os quais manteve contato em relação à sua profissão. O autor busca compreender e explicar, em diálogo com as proposições clássicas de Max Weber (2004), em A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, o sentido da ética profissional que informa o grupo de atletas entrevistados durante o período da pesquisa. A noção de “profissão”, que aparece no subtítulo de seu trabalho, cumpre papel decisivo em sua análise sobre o futebol. A escolha profissional de seus entrevistados, em detrimento de outras carreiras, teria sido balizada pelas oportunidades de auferir ganhos materiais extremamente vantajosos. É importante ressaltar que os jogadores entrevistados por Benzaquen se autoidentificaram como membros originários dos estratos médios da sociedade e, nesse sentido, o futebol teria surgido em suas vidas como uma possibilidade factível de “enriquecimento e ascensão social que se tornava uma opção profissional praticamente irresistível” (ARAÚJO, 1980: 7).

A escolha profissional de seus entrevistados, argumenta o autor, pode ser considerada representativa da dimensão do “cálculo”, uma vez que eles, tendo em vista os riscos da profissão – como, por exemplo, aqueles decorrentes de lesões graves que pudessem colocar em risco suas carreiras -, teriam procurado maximizar constantemente seus rendimentos. Com isso, procuravam se diferenciar daqueles jogadores que qualificavam como “esbanjadores”, cuja vida dispendiosa constituiria sério limite para sua estabilidade financeira após a carreira, ou daqueles que viam como “avarentos”, que apenas guardavam o que ganhavam, sem procurar efetuar investimentos rentáveis. Sendo assim, os jogadores analisados por Benzaquen (1980: 9) destacam “o privilégio dos bens móveis, da riqueza sob a forma de mercadoria […], o que dá um colorido extremamente individualista e moderno ao seu pensamento”. A escolha do futebol como profissão codifica, desse modo, uma orientação racional da conduta, que se encontraria lastreada por uma “perseguição sistemática da maximização dos lucros, para garantir a concretização dos seus objetivos” (Araújo, 1980: 11). Haja vista que, para Weber, a racionalidade enquanto um valor se encontra imbricada à rentabilidade, posto que o objetivo precípuo do indivíduo na modernidade seria adquirir cada vez mais bens e dinheiro (VILLAS BÔAS, 2006), os discursos dos entrevistados mostram que a escolha profissional realizada em virtude das chances de independência financeira e de ascensão social exigiria, sobretudo, a “adoção de uma conduta estritamente racional e calculista em relação à ‘administração’ do dinheiro que o jogador ganha, utilizando-o sempre para gerar mais dinheiro” (ARAÚJO, 1980: 13). Benzaquen dialoga ainda com as formulações de Georg Simmel, pois, a despeito dos limites elencados pelo intelectual alemão, ao tratar da onipresença do dinheiro como meio de troca universal na cultura moderna, por outro lado, o dinheiro apresentaria como “consequências peculiares a ampla abertura de espaço para a individualidade e o sentimento de independência interior” (SIMMEL, 2013: 336).  

A maximização dos ganhos auferidos através da prática do futebol como profissão seria decisiva não somente por materializar a autonomia desejada pelos entrevistados, mas por permitir a oportunidade de estudar, de modo a se prepararem para o exercício de outra atividade profissional após o fim de suas carreiras. Não por acaso, a noção de “projeto” ganha importância na análise de Benzaquen, uma vez que os discursos analisados codificariam categorias implícitas que a ela dizem respeito. No projeto dos jogadores, discute o autor, a riqueza teria surgido em um sentido estritamente moderno e individualista, tendo como base sua contínua maximização, já que o dinheiro seria encarado através de sua utilização eminentemente racional e calculada, afinada, portanto, com a lógica moderna, oposta, como discute Simmel (2013), ao caráter impulsivo e emocional de contextos históricos anteriores. Contudo, a noção de “projeto” apresentaria ainda a dimensão do “prazer”, pois, além de proporcionar ganhos materiais consideráveis aos jogadores de futebol, sua profissão propiciaria a autorrealização.

Neste sentido, Benzaquen trabalha com duas dimensões da noção de “projeto” delineada por seus entrevistados, que permitem a qualificação do sentido do individualismo ensejado. Ainda conversando com Simmel, Benzaquen enfatiza que a primeira diria respeito ao “individualismo quantitativo”, erigido no século XVIII, cuja base reside nas ideias de liberdade e igualdade, privilegiando a economia como a mais significativa das esferas sociais. Já a segunda se encontraria relacionada à sua dimensão emocional, qualificada como “individualismo qualitativo”, que teria se desenvolvido ao longo do século XIX, estando referida às potencialidades singulares e originais dos indivíduos. Portanto, teríamos, de um lado, o “individualismo quantitativo”, orientado pelo cálculo e pela acumulação e, de outro, o “individualismo qualitativo”, norteado pelas ideias de singularidade e autorrealização (ARAÚJO, 1980).

 Assim, a noção de autorrealização seria, argumenta Benzaquen, o aspecto constitutivo central da dimensão emocional do projeto dos jogadores, podendo tanto ser confinada aos indivíduos quanto, até mesmo, englobar a nação em um sentido mais amplo. Essa perspectiva de longo alcance diz respeito ao fato de que essa autorrealização somente se efetivaria em sua plenitude se a convocação para a seleção brasileira fosse alcançada. Para Benzaquen, a autorrealização teria a capacidade de articular o talento singular de cada jogador, convertendo-o no “futebol-arte” característico do Brasil, transmutando, dessa maneira, o prazer particular de sua prática, ao unir “numa linguagem comum contextos tão diferentes quanto o do craque festejado e o anônimo torcedor, o do clube e o da seleção” (ARAÚJO, 1980: 20). Se, por um lado, a componente racional do discurso dos jogadores foi constantemente enfatizada, por outro, a dimensão emocional do projeto também seria frequentemente acionada, através do desejo de integrarem a seleção brasileira. Assim, segundo Benzaquen, a articulação entre cálculo e prazer, duas dimensões aparentemente antagônicas, compõe as percepções e representações que os jogadores entrevistados têm sobre o futebol como profissão.

Entretanto, o interesse de Benzaquen não se confina ao movimento de qualificar o projeto individualista dos jogadores, voltando-se para aquelas que seriam, na visão de seus entrevistados, as qualidades requeridas para que um jogador de futebol logre êxito em sua carreira. O primeiro aspecto seria o “talento”, característica que diferenciaria aqueles que dispõem de qualidades para jogar futebol profissionalmente e aqueles que não teriam condições para atuar em um contexto de alta performance. O talento diferenciaria ainda as “estrelas” e aqueles que são qualificados como “coadjuvantes”, propiciando uma outra característica fundamental, que seria a sua “extrema singularidade”, uma vez que “se todas as estrelas diferenciam-se em bloco dos coadjuvantes, cada uma delas vai possuir um talento específico, uma habilidade singular, inteiramente distinta da dos outros” (ARAÚJO, 1980: 32). Assim, o talento encerraria uma diferenciação entre os grandes jogadores, sendo entendido por seus entrevistados, como um “dom natural, raro e inato” (ARAÚJO, 1980: 33, grifos do autor), que não poderia ser transferido ou herdado por outra pessoa. O talento parece conduzir a uma forma de solidariedade muito específica, próxima à definição conferida por Durkheim (1999) à “solidariedade orgânica”, em seu clássico Da divisão do trabalho social, posto que os entrevistados representariam “o time de futebol como uma unidade essencialmente ‘orgânica’, onde ‘todo jogador tem que ter uma função específica para desempenhar’, funções basicamente diferentes, embora complementares” (ARAÚJO, 1980: 34). Ou seja, a solidariedade fundamentada na divisão do trabalho e na complementariedade de distintas funções em uma equipe de futebol residiria na ideia da “especialização do talento” (ARAÚJO, 1980: 35, grifo do autor).  

Entretanto, se o talento tem em vista o primado da diferença, a dimensão da personalidade diria respeito, de acordo com Benzaquen, ao primado da similaridade e do igualitarismo. A “personalidade” constitui aspecto fundamental para que os jogadores de futebol obtenham êxito em suas carreiras, de modo a lograrem performances de alto nível, evitando uma outra emoção que poderia vir a prejudicá-los, mais especificamente, o “abatimento”. Ao acometer o jogador, discute o autor, o abatimento poderia vir a aprisionar o talento, posto que um determinado atleta sem ânimo e nem disposição para performar jamais teria condições de expressar sua capacidade criativa. O jogador que atua em um grande clube poderia vir a ser acometido pelo abatimento ao ser, por exemplo, questionado, vaiado ou xingado pelos próprios torcedores, bem como uma difícil interação com a imprensa, lembra Benzaquen, contribuiria para tal sensação. O abatimento seria uma emoção tão poderosa quanto destrutiva, cuja única forma de moderá-la seria através da “autocrítica”, entendida pelos entrevistados como a única forma de conter seus males. Ou seja: “Tanto as pressões da torcida, quanto as críticas da imprensa, podem ser superadas, desde que o jogador confie basicamente no seu próprio juízo” (ARAÚJO, 1980: 43). 

Mas, ao lado da autocrítica, haveria uma valorização da autoconfiança, que permite, diferentemente do abatimento, que o jogador tenha coragem para arriscar jogadas ousadas e criativas, que poderiam contribuir para desequilibrar uma partida em favor de sua equipe. Benzaquen sublinha a existência de dois sentimentos conflitantes, o “abatimento” e a “confiança”, bem como a existência da categoria “autocrítica”, que teria a capacidade de limitar o primeiro e potencializar o segundo. Contudo, o autor alerta para o fato de que a autoconfiança exacerbada constitui um sério limite, haja vista que a crença demasiada nas próprias qualidades poderia, de acordo com o jargão futebolístico, levar o jogador a se “mascarar”, descuidando, por exemplo, de sua preparação física – que seria entendida pelo “mascarado” como desnecessária, por conta de seu suposto talento diferenciado -, ou a se exibir com jogadas de efeito em detrimento do jogo em equipe, o que desestabilizaria a especialização de funções.

Dessa forma, surge a importância do controle como sentimento crucial, que garantiria, segundo Benzaquen, uma certa contenção da “máscara”, permitindo uma mobilização do talento atenta à performance e ao desempenho competitivo, o que leva a outra categoria, a “autodisciplina”. O autor aponta que, caso a autodisciplina consiga controlar efetivamente a confiança, a personalidade ideal do jogador de futebol apresentaria um quarto sentimento, que seria a “humildade”. Ainda que o jogador possua autoconfiança em seu talento, o jogador humilde trataria tanto seus companheiros quanto adversários como iguais, respeitando a margem de incerteza e de imponderável que o jogo apresenta.

Benzaquen sistematiza a personalidade do jogador, destacando quatro sentimentos que aparecem de forma marcante nos discursos de seus entrevistados: o “abatimento”, a “humildade”, a “confiança” e a “máscara”. O abatimento e a máscara são qualificados recorrentemente como sentimentos opostos que demandariam algum grau de moderação. De um lado, argumenta o autor, o abatimento seria controlado e moderado pela confiança, evitando um estado de prostração por parte do jogador; de outro lado, a confiança excessiva, geradora da “máscara”, seria controlada pela humildade, fazendo com que o jogador permaneça atento aos princípios competitivos do esporte. Benzaquen destaca, portanto, a necessidade de contenção das emoções, a qual seria garantida tanto pela autodisciplina quanto pela autocrítica, categorias indispensáveis no processo de construção da subjetividade do jogador.

No entanto, o esquema delineado por Benzaquen não se esgota nas componentes emocionais discutidas até aqui. O autor lembra da “raça”, que implica na “disposição que todo jogador precisa ter para lutar o máximo possível pela vitória das suas ‘cores’, quaisquer que elas sejam” (ARAÚJO, 1980: 51, grifo do autor). O jogador comumente qualificado como “raçudo”, por conta de sua entrega dentro de campo, atingiria o limite do heroísmo, não hesitando em arriscar uma contusão séria, colocando em risco, inclusive, sua própria carreira em prol da vitória de seu time. A raça se encontra vinculada “à coragem necessária para se enfrentar as disputas corporais com os adversários, de entrar ‘nas bolas divididas’, correndo o risco de se quebrar a perna, mas sem ‘fugir da raia’” (ARAÚJO, 1980: 52).  

Contudo, a raça corre o risco de se metamorfosear em comportamentos violentos, os quais podem se tornar destrutivos para a carreira de um jogador de futebol, gerando graves problemas, o que exigiria, dessa maneira, a mobilização do autocontrole para que seja mantida dentro de limites toleráveis. Benzaquen discute o sentimento da “frieza” como complemento perfeito da raça, posto que ele ocupa lugar fundamental em momentos que não poderiam ser resolvidos através da paixão, como, por exemplo, em um pênalti decisivo. No entanto, caso a frieza não seja calibrada, o jogador demasiadamente cerebral correria o risco de se tornar um “pipoqueiro”, deixando de disputar as bolas divididas e de entrar em disputas físicas mais ríspidas. Assim, até mesmo a frieza, adverte Benzaquen, precisaria ser disciplinada, para que o talento não seja bloqueado pela ausência de coragem.

Em suma, o “medo”, a “frieza”, a “raça” e a “violência” são quatro sentimentos frequentes nos discursos dos jogadores entrevistados. A frieza e a raça seriam, a despeito de precisarem ser temperadas, sentimentos positivos para a constituição do self do jogador, enquanto o medo e a violência seriam sentimentos eminentemente destrutivos. Benzaquen ressalta que o exagero de qualquer uma dessas emoções é que seria o grande problema, demandando, novamente, a autodisciplina e o autocontrole como recursos cruciais. Além disso, a autodisciplina seria fundamental ainda para conter certos exageros, de modo a controlar a forma física, evitando álcool, drogas, cigarros, bem como implicando em um rígido controle sobre a atividade sexual. Assim, Benzaquen identifica uma espécie de “ética corporal” que, por um lado, “regula e proíbe uma série de atividades e, de outro, vai enfatizar sobremaneira a necessidade do treinamento, da educação física, para a construção e o aprimoramento da forma atlética do jogador” (ARAÚJO, 1980: 56).

 O processo de transformação do corpo do jogador em um instrumento de trabalho afinado ocorreria, segundo Benzaquen, através da ênfase em um “trabalho duro e anônimo”, que se realizaria mediante o treinamento físico e do veto a vícios e prazeres que, porventura, pudessem prejudicar sua forma atlética. A instituição do casamento surge, nesse sentido, como um aspecto valorizado, pois, além de regular as atividades sexuais, influiria no equilíbrio emocional do jogador, levando-o a investir, sobretudo, após a chegada de filhas(os), em uma atitude mais circunspecta e madura.

Entretanto, a personalidade não seria uma qualidade inata, mas sim construída e aprendida ao longo do processo de socialização pelo qual passa o jogador. Portanto, Benzaquen assinala a existência de um conjunto de representações, por parte de seus entrevistados, que tende a valorizar um certo ideal calcado no ascetismo, em um sentido muito próximo ao conferido por Weber (2004). Aspectos como a autodisciplina, a vocação profissional, a rejeição aos vícios e prazeres e a atenção com a preparação física conformariam um ideal ascético. Em outras palavras, a maximização dos lucros, característica do caráter racional do individualismo quantitativo, seria complementada tanto pela adoção de um “código de emoções” quanto por uma certa “ética do corpo”, na qual a autodisciplina e o trabalho duro, anônimo e cotidiano seriam fundamentais para garantir o preparo físico e, em um sentido mais amplo, a carreira profissional do jogador (ARAÚJO, 1980).

Jogadores e dirigentes: uma relação difícil

No entanto, a despeito de os jogadores entrevistados enfatizarem a ética profissional, os dirigentes dos clubes tenderiam a ter uma atuação que contribuiria para um certo esvaziamento dessa dimensão. Benzaquen se debruça sobre a relação entre jogadores e dirigentes, chamando a atenção, com base nos depoimentos que coligiu, para o seu caráter conflituoso. Os dirigentes seriam representados, nesse sentido, como obstáculos para a realização dos projetos dos jogadores, ao encararem o futebol de uma forma nada profissional. A relação estabelecida com o clube seria marcada fundamentalmente por seu caráter passional e, muitos dos dirigentes, segundo os entrevistados, não reconheceriam a atividade dos jogadores de futebol como um trabalho. Benzaquen assinala que os dirigentes geriam o clube com base em relações primárias, mobilizando uma lógica familista, sendo pouco afeitos ao caráter impessoal e abstrato exigido pelo capitalismo moderno. Dado o tradicionalismo dos dirigentes, a lógica do clube como uma família codificaria uma dinâmica pessoalizada, que, ao invés de tratar os jogadores como profissionais, atribuía-lhes a condição de agregados ou dependentes.

Por outro lado, os dirigentes também operariam por meio de uma lógica entendida como calculista e manipuladora, já que mobilizariam o clube para atingir objetivos em suas possíveis carreiras políticas, bem como para lograr interesses financeiros. Ou seja, o dirigente pode ser qualificado, seguindo a análise de Benzaquen, como uma figura entre a tradição e a modernidade, pois, se de um lado criticariam “aristocraticamente” os jogadores que visavam o lucro em suas carreiras, qualificando-os como “mercenários”, por outro, seria “uma figura extremamente utilitarista, fria e calculista, capaz de manipular a todos, clubes e jogadores, para realizar os seus interesses econômicos e políticos” (ARAÚJO, 1980: 74).

O prognóstico defendido pelos jogadores entrevistados, para a resolução desses problemas, refere-se à profissionalização dos dirigentes e à construção de uma mentalidade que entendesse o clube como uma empresa (ARAÚJO, 1980). A própria compra e venda de jogadores não seria procedida com base em considerações racionais, valendo-se de “critérios puramente emocionais, que acabam por prejudicar a própria possibilidade de independência financeira do jogador” (ARAÚJO, 1980: 76). Não por acaso, o “passe” sacramentado pela Lei nº 6.354, de 02 de setembro de 1976 era questionada pelos entrevistados, posto que, até então, ao jogador de futebol se encontraria vedada a possibilidade de procurar um contrato que melhor pudesse remunerá-lo (ARAÚJO, 1980), atrelando diretamente o atleta ao clube, o que seria alterado, posteriormente, no plano internacional, com o caso do jogador belga Jean-Marc Bosman, e, no plano nacional, pela Lei Pelé (COELHO, 2009).  

Tendo em vista os problemas enfrentados pelos jogadores de futebol, os entrevistados afirmavam ter o interesse na fundação de um sindicato dos jogadores profissionais do Rio de Janeiro, valorizando a ação coletiva para lidar com os obstáculos com os quais lidavam para realizar seus projetos, o que não necessariamente, enfatizam, era respaldado por boa parte dos jogadores. Não à toa, Benzaquen ressalta que seus entrevistados se colocavam como um segmento diferenciado entre a maioria de seus colegas de profissão, ao valorizarem o estudo e o trabalho, possuindo projetos coletivos bem delineados, como é o caso do sindicato.

***

Obviamente, meu objetivo não foi esgotar o debate em torno de Os gênios da pelota, mas conclamar a leitura desse trabalho, que, a despeito de ter sido confeccionado entre os anos 1975-1980, parece capaz de nos interpelar na nossa contemporaneidade, trazendo elementos para uma reflexão em torno da relação entre o futebol e a sociedade brasileira. Além de intérprete dos mais sofisticados no que se refere à obra de Gilberto Freyre, podemos dizer que o trabalho de campo efetuado pelo jovem Benzaquen elabora uma interpretação do país a partir dos discursos de seus entrevistados, permitindo a entrada em um terreno, que era, até então, pouco explorado pela intelectualidade. O autor efetua uma análise que se encaminha da construção dos projetos dos jogadores de futebol, bem como de suas subjetividades, à tensa dinâmica institucional que os coloca em contato com os dirigentes dos clubes na virada dos anos 1970-1980. O tema do futebol assume caráter heurístico, permitindo uma inteligibilidade sociológica renovada e consistente para lidar com o debate clássico a respeito das tensões do processo de individualização em um contexto no qual as relações sociais foram forjadas com base em uma lógica familista, discussão recorrente em nosso pensamento social. Ou seja, além de suas contribuições para o pensamento social brasileiro (BASTOS, 2017), compartilho da ideia de que Os gênios da pelota constitui trabalho pioneiro (HELAL, 2018), ao desestabilizar, nos anos 1970-1980, o acentuado divórcio entre a intelectualidade e o futebol, por muito tempo vigente em nosso país.     


Nota

[i] Como podemos consultar em seu currículo cadastrado na Plataforma Lattes, Benzaquen cursa o mestrado entre os anos 1975-1980. Link para o seu currículo: http://lattes.cnpq.br/1936292018521131

Referências

ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. (1980). Os gênios da pelota: um estudo do futebol como profissão. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.

ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. (1994). Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Editora 34.

BASTOS, Elide Rugai. (2017). Sobre os princípios: Ricardo Benzaquen e o pensamento social. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 557-578.

COELHO, Paulo Vinícius. (2009). Bola fora: a história do êxodo do futebol brasileiro. São Paulo: Panda Books.

DURKHEIM, Émile. (1999). Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes.

GIGLIO, Sérgio S. & SPAGGIARI, Enrico. (2010). A produção das ciências humanas sobre futebol no Brasil: um panorama (1990-2009). Revista de História, n. 163, p. 293-350.

GONÇALVES, José Reginaldo. (2017). Um amigo do mundo. Sociologia & Antropologia. Rio de Janeiro, v.7. n. 2., p. 545-556.

HELAL, Ronaldo. (2018). O campo acadêmico do futebol Brasil: breve história. Ludopédio, v. 106, n. 12.

JASMIN, Marcelo. (2017). Ziguezagueando com Ricardo Benzaquen no Departamento de História da PUC-Rio. Interseções. Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 20-25.

SIMMEL, Georg. (2013). O dinheiro na cultura moderna. In: BOTELHO, André. (Org.). Essencial Sociologia. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, p. 330-350.

SOARES, Luiz Eduardo. (2017). Ricardo Benzaquen de Araújo, breve homenagem à sua memória. Interseções. Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 26-32.

VILLAS BÔAS, Glaucia. (2006). A recepção da sociologia alemã no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks.

WEBER, Max. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.

WISNIK. José Miguel. (2008). Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.

A imagem que abre o post é de autoria de Eduardo Zaraté/Flickr

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