
O Blog da BVPS finaliza hoje a publicação do dossiê Futebol e Sociedade, com uma entrevista com o professor Marcelino Rodrigues da Silva (UFMG), que tem um conjunto de pesquisas dedicadas a compreender o imaginário e a cultura do futebol no Brasil e, especialmente, em Belo Horizonte. A conversa, conduzida pelo pesquisador João Mello (PPGSA/UFRJ), gira em torno dos processos de construção de identidades coletivas do futebol no Brasil e em Minas Gerais, abordando também a especificidade das crônicas esportivas enquanto um gênero da literatura brasileira.
O dossiê Futebol e Sociedade, organizado por Rennan Pimentel (PPGSA/UFRJ) e João Mello (PPGSA/UFRJ), faz parte da nova coluna do Blog, Primeiros Escritos. Para saber mais sobre a iniciativa, basta clicar aqui. Ao longo dessa última semana da Copa do Mundo publicamos outros textos sobre futebol que podem ser acessados no Blog.
Boa leitura!Entrevista – Imaginário e cultura do futebol, com Marcelino Rodrigues da Silva
por João Mello
1) O futebol no Brasil foi introduzido pelas classes mais abastadas, importado da Europa como um símbolo de distinção que ilustra bem o nosso processo de modernização no fim do século XIX e início do século XX. Porém, o esporte foi aos poucos alargando as suas fronteiras no Brasil até se tornar uma prática popular e importante na construção da ideia de um povo. Como que foi a reação inicial da imprensa a esta popularização do esporte? Esses homens de letras contribuíram para a popularização do esporte no Brasil?
Marcelino Rodrigues da Silva: Sim, quando o futebol começa a se consolidar no Brasil, no início do século XX, ele assume mesmo esse caráter de distinção social, de demonstração de sintonia com a cultura europeia como uma marca de status social. Mas tem também um sentido civilizador. O esporte, em geral, era entendido como um meio para o desenvolvimento da sociedade brasileira. Então, isso é um pouco contraditório. Se os jovens e senhores da elite se entusiasmavam com o esporte, emulando os europeus, principalmente ingleses que vieram para o Brasil, muitas vezes para trabalhar em empresas estrangeiras que haviam se estabelecido no país, e os brasileiros que haviam morado na Europa, com a intenção de se distinguirem socialmente, havia também um discurso que defendia a disseminação do esporte pelas diferentes classes, como um instrumento de “aperfeiçoamento da raça”, como se dizia na época, ou seja, de desenvolvimento físico e moral do homem brasileiro. Apesar da aparente contradição, uma coisa alimentava a outra, o sentido civilizador servia para justificar o status dos chamados sportsmen.
Nas duas ou três primeiras décadas do século XX, o discurso da imprensa era, predominantemente, um discurso também elitista, que ajudava a construir e reverberar esses sentidos. Desde a linguagem, repleta de termos em inglês, até as formas de abordagem jornalística do esporte, que enfatizavam o caráter de congraçamento social dos eventos esportivos, a elegância e a distinção da plateia presente aos jogos, o fair play dos atletas e assim por diante. Mas, aos poucos, esse clima foi sendo perturbado pela presença de outros grupos sociais, tanto no público quanto nos próprios times, e pelo acirramento da competição, que provocava, cada vez mais, uma série de episódios turbulentos, com vaias, xingamentos e mau comportamento da torcida e dos jogadores, agressões, brigas e invasões do campo de jogo etc. Eram os chamados “sururus”. Diante deles, a imprensa assumiu um papel claramente disciplinar, condenando seus protagonistas, sobretudo quando eles vinham das classes populares. Em alguns episódios, chegava-se mesmo a propor a exclusão daqueles que tinham mau comportamento e a separação total entre as classes no esporte. Mas, aos poucos, esse clima de paixão e rivalidade vai contaminando a própria imprensa, em textos que reproduzem e alimentam as polêmicas esportivas.
Enfim, de formas variadas e às vezes contraditória, a imprensa certamente contribuiu para a transformação do futebol em fenômeno de massas. Isso fica muito claro, por exemplo, quando vemos as coleções de jornais e revistas da década de 1910, como o álbum de recortes do goleiro Marcos de Mendonça, que hoje está sob a guarda da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. O Campeonato Sul-Americano de 1919, disputado no Rio, deu origem a uma quantidade realmente espantosa de publicações, mostrando que os processos de popularização do esporte e de expansão da imprensa esportiva aconteceram simultaneamente e de maneira plenamente integrada.
2) Junto à crônica, o jornalismo esportivo sempre trouxe consigo as reportagens de cunho informativo, seja o dia-a-dia do clube, suas questões administrativas ou até mesmo o plano tático das partidas de futebol. Temos, porém, uma tradição de cronistas de futebol, como Mário Filho, João Saldanha e Nelson Rodrigues que suspendem o ideal de objetividade jornalística pela literariedade em suas colunas, representando naquele espaço as paixões que são significadas no nosso futebol. Podemos tratar a crônica, mais especificamente a crônica esportiva, como algo que, para além das páginas de jornal, se consolidou como um gênero de nossa literatura?
Marcelino Rodrigues da Silva: Acho que sim. O Antonio Candido, falando sobre a crônica jornalística em geral, já dizia que ela se tornou um gênero tipicamente brasileiro, pela forma como ela se aclimatou no país. Acho que este é bem o caso da crônica esportiva, que produziu uma longa e muito interessante linhagem de cronistas, com abordagens diversificadas do esporte, que deram certamente uma contribuição muito importante para que o futebol ganhasse a densidade de sentidos que ele ganhou no Brasil. Tanto que, nas últimas décadas, tivemos a publicação de um bom número de coletâneas de crônicas publicadas originalmente em jornais e revistas. A publicação desses livros mostra bem como a crônica ultrapassa a efemeridade dos jornais, o sentido meramente ligado ao cotidiano, às circunstâncias em imediatas em que o texto é produzido.
Uma separação mais nítida entre informação, comentário, análise e recriação literária, no entanto, é uma coisa que se estabeleceu mais tarde. Nas primeiras décadas do século, ela não era tão nítida. O caso dos jornais dirigidos pelo Mário Filho, nos anos 1920 e 1930, é exemplar: a própria cobertura jornalística de caráter mais informativo era bastante criativa, explorando os bastidores do esporte, a vida pessoal dos atletas, as cenas pitorescas e cômicas protagonizadas pelos jogadores, dirigentes e torcedores.
De todo modo, até mesmo pela influência do Mário Filho, a crônica de futebol aos poucos se constituiu como um gênero particular, no qual foram explorados os aspectos e significações do jogo que ultrapassavam o campo propriamente esportivo e o ligavam a outras dimensões da vida social e cultural. Além desses nomes citados na pergunta, poderíamos lembrar muitos outros: Coelho Neto, Thomaz Mazzoni, José Lins do Rego, Zé de São Januário, Sandro Moreyra, Stanislaw Ponte Preta, Roberto Drummond, Luis Fernando Verissimo, José Roberto Torero… Sem falar nos inúmeros escritores que escreveram de forma mais esporádica sobre o futebol. Aí, a lista é enorme: Mário de Andrade, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queiroz…
3) Poderia nos dizer algo sobre a crônica no jornalismo esportivo brasileiro atualmente? Ela ainda tem a mesma presença nos noticiários como no passado?
Marcelino Rodrigues da Silva: Tenho que confessar que não acompanho muito de perto a produção da crônica esportiva atualmente. Então, não me sinto muito à vontade para falar sobre o assunto. Mas acho que existem, sim, alguns nomes interessantes, que fazem jus a essa tradição da crônica de futebol no Brasil. Penso, por exemplo, no Xico Sá, no Tostão, no José Trajano, no Juca Kfouri, na Milly Lacombe… Aqui em Minas temos um outro nome interessante, que é o Fred Melo Paiva. Mas, talvez, o mais comum, principalmente nos veículos e canais de maior projeção, sejam mesmo as colunas de opinião, que falam dos aspectos mais objetivos do futebol: a preparação e o desempenho dos times, as estruturas políticas e administrativas do esporte, a cobertura midiática, o comportamento dos atletas etc. Muitos se colocam numa fronteira entre as duas coisas, fazendo textos que pendem às vezes para um lado, às vezes para outro, como alguns dos que citei acima.
Mas acho que faz sentido pensar, também, que as possibilidades abertas pela crônica, de uma abordagem menos objetiva do esporte, com liberdade para a ficção, o lirismo, o humor, se espraiam por outros espaços, como as redes sociais, os canais de vídeos e outros lugares da Internet. Se é mais difícil, hoje, um típico cronista se destacar e se consolidar nos espaços jornalísticos mais tradicionais, temos por outro lado uma produção muito diversificada, com diferentes abordagens dos personagens e acontecimentos esportivos, desde programas de humor, como o Falha de Cobertura, do Daniel Furlan, até sites dedicados integralmente ao esporte, como o Ludopédio, que tem um caráter mais acadêmico mas também publica crônicas e colunas sobre o futebol, e o Crônicas da Copa, que reúne textos de vários autores, entre eles a mineira Clara Arreguy. Sem falar nos memes, nos posts de gente mais ou menos famosa nas redes sociais, nas versões musicais produzidas pelo pessoal do canal FutParódias, no Youtube, e por aí vai… Acho que, mesmo com as transformações no mundo jornalístico, que diminuíram o espaço do gênero cronístico tradicional, existe um impulso de falar livremente sobre o futebol, de interpretá-lo das mais diversas maneiras, que vai continuar existindo enquanto ele for um espetáculo de grande repercussão na sociedade. A “falação esportiva” (expressão tirada do título de um texto famoso do Umberto Eco) é tão importante quanto o próprio jogo. É ela que faz com que o jogo faça sentido para nós, que o liga aos outros domínios e aspectos da nossa vida.
4) Recentemente, você vem trabalhando com a produção de discursos sobre o futebol em Minas Gerais, principalmente nas mascotes dos times criados por Fernando Pieruccetti. O que há de diferente no processo de construção cultural do futebol mineiro, em principal neste projeto estético do Pieruccetti?
Marcelino Rodrigues da Silva: No processo de disseminação do futebol para além das duas grandes metrópoles do país, a cultura esportiva foi entrando em contato e se misturando com outros cenários e outras matrizes culturais desse país tão diverso que é o Brasil. Fatalmente, isso iria criar culturas esportivas diferentes, relacionadas à memória e tradições desses lugares, num movimento que é típico dos processos de modernização, que são, ao mesmo tempo, processos de homogeneização e produção de diferença. Este foi bem o caso de Minas Gerais e, particularmente, de Belo Horizonte. Aqui, como em muitos outros lugares do país, o futebol também se consolidou nas primeiras décadas do século XX, acompanhando de perto o que vinha acontecendo no Rio e em São Paulo. Mas, talvez ali pela década de 1940, já é possível identificar, nos discursos sobre o esporte que eram produzidos aqui, um conjunto de traços particulares, que tinham a ver com a cultura mineira. A gente poderia lembrar alguns nomes, como o cronista Fortunato Pinto Júnior, que assinava como “Malagueta” a coluna “Grão de pimenta”, no Diário de Minas, ou o trabalho de Januário Carneiro, que se tornou dono da Rádio Itatiaia no início dos anos 1950 e fez dela uma verdadeira potência, com um forte enraizamento não só em Belo Horizonte, mas também no interior mineiro, tendo o futebol como carro-chefe. Dois exemplos com os quais eu trabalhei um pouco são a história e o significado da rivalidade entre Atlético e Cruzeiro e o trabalho do Fernando Pieruccetti, que foi mencionado na pergunta.
Sobre a rivalidade, é interessante notar que ela não reproduz o esquema simbólico que estrutura as narrativas da nação projetadas na história do futebol, e que foi atualizado em muitas rivalidades locais e regionais, particularmente no Rio de Janeiro, a grande matriz das histórias do futebol no Brasil. Aí, o esquema simbólico que estrutura as rivalidades esportivas é baseado em oposições como o povo versus as elites, o negro versus o branco, o centro versus o subúrbio e assim por diante. Em Belo Horizonte, nas primeiras décadas do século XX, a principal rivalidade era entre o Atlético e o América, dois clubes formados por membros da elite belo-horizontina. Com o tempo, o América foi perdendo protagonismo, o Atlético acabou se tornando um time popular e surgiu o Palestra Itália, que mudou de nome para Cruzeiro na época da Segunda Guerra Mundial. Formado pelos italianos que haviam se estabelecido na cidade desde a época de sua fundação, o Cruzeiro também ganhou a imagem de um time popular, identificado à experiência daqueles imigrantes, em sua maioria pessoas humildes, que trabalhavam como artesãos e comerciantes. Ao longo do século, então, a rivalidade entre Atlético e Cruzeiro acabou se configurando como uma rivalidade não entre o povo e as elites, mas entre duas formas de ser popular.
Num artigo que escrevi sobre essa história, há alguns anos, tentei sintetizar essas duas formas de ser popular, encarnadas pela imagem e pelas tradições dos dois clubes, com as expressões “raça e amor”, para o Atlético, e “trabalho e astúcia”, para o Cruzeiro. No caso do Atlético, a expressão “raça e amor” tem a ver com a fama de time aguerrido, “raçudo”, e com a reputação de paixão desmedida e incondicional que marca sua torcida. Interessante notar que o significante “raça”, aí, é polissêmico, remetendo tanto ao comportamento do time quanto às origens raciais de sua torcida, composta em grande parte por pessoas vindas das classes populares. Essas significações estão presentes, por exemplo, na mascote do clube criada por Pieruccetti (o Galo, com suas esporas afiadas, lembrando um galo de briga), nos versos do hino do clube (“lutar, lutar, lutar / com muita raça e orgulho pra vencer”), no nome e nos cantos de sua principal torcida organizada, a Galoucura, etc. No caso do Cruzeiro, a expressão “trabalho e astúcia” tem a ver, principalmente com a trajetória dos imigrantes italianos na cidade, pessoas que chegaram aqui ocupando posições humildes na sociedade, mas que, em muitos casos, conquistaram posições mais destacadas, graças a uma atitude de trabalho e dedicação, supostamente herdada de suas raízes europeias, e à sua astúcia e tino para os negócios. A Raposa, mascote do clube criada por Pieruccetti, teria a ver justamente com esses valores, que também repercutem em outros traços e símbolos da mitologia do clube, como o nome de sua principal torcida organizada, a Máfia Azul, e a expressão “China Azul”, forjada pelo cronista Roberto Drummond para se referir aos seus torcedores. Acho que é possível relacionar essa estrutura simbólica da principal rivalidade mineira com as narrativas sobre a história de Belo Horizonte, fortemente centradas na oposição entre o atraso e o progresso, o antigo e o moderno, mais do que na oposição entre as classes sociais, ou entre o povo e as elites.
Como já ficou claro, o trabalho do cartunista Fernando Pieruccetti, que venho pesquisando nos últimos anos, teve um papel relevante nessa construção. Mas sua importância vai muito além disso. Acho que ele é um dos nomes mais significativos da história da imprensa esportiva em Minas Gerais, uma espécie de Mário Filho local e regional; ou seja, um dos grandes artífices dessa mitologia esportiva local e regional, que recria e traduz o imaginário esportivo para a cultura e a sociedade mineiras. É interessante que, antes de criar as charges e mascotes dos times do estado, ele teve um papel importante no grupo de artistas que introduziu as questões e as tendências do Modernismo e da arte moderna em Belo Horizonte, cidade que até os anos 1930 tinha um ambiente artístico (falando das artes plásticas) bem conservador e academicista.
As charges e mascotes do Pieruccetti surgiram em 1945, no jornal Folha de Minas, e pouco depois passaram pro Estado de Minas, onde foram publicadas até o início da década de 1970. Nelas, que eram assinadas com o pseudônimo “Mangabeira”, o Pieruccetti recriava os acontecimentos esportivos por meio de um mundo ficcional, inspirado nas fábulas de Esopo e La Fontaine, usando os bichos para representar os clubes e outras entidades do mundo esportivo, como os torcedores, os juízes, as federações e ligas esportivas etc., em cenas que aconteciam, na sua maioria, num cenário campestre ou rural. Além dessas e outras referências ao mundo rural e interiorano de onde vinham os torcedores dos clubes mineiros (mesmo os da capital, que ainda era habitada por pessoas vindas, em sua maioria, do interior), as próprias cenas, construídas a partir do molde narrativo das fábulas, eram uma espécie de tradução dos valores modernos do esporte (a competição, a disciplina das regras, a igualdade entre os participantes) em pequenas lições de sabedoria e esperteza mineiras, em que o que mais valia era a esperteza, a prudência, a moderação, a desconfiança… Enfim, esses valores que caracterizam essa coisa meio fluida e difícil de definir que costumamos chamar de “mineiridade”. Então, acho que a gente pode ver, aí, tanto as reverberações dos projetos estéticos e político-culturais do Modernismo (a criação de uma arte nova a partir do aproveitamento e da mediação com as tradições locais e a cultura popular) como um jeito mineiro de ser modernista, um jeito menos entusiasmado, mais respeitoso com a tradição e mais crítico em relação aos processos de modernização.

5) Ainda sobre o futebol mineiro, com o passar do tempo foram se firmando representações de seus clubes, criando um tipo de tradição que contribui para as formas como interpretamos e vivemos o futebol. No caso do Atlético-MG e Cruzeiro, times que viveram histórias distintas nesses últimos anos, você enxerga alguma modificação na mobilização de suas identidades nas derrotas, vitórias, rebaixamentos ou conquistas de títulos recentes?
Marcelino Rodrigues da Silva: Uma das coisas interessantes, e ao mesmo tempo difíceis, na tentativa de interpretar esse mundo simbólico criado em torno do esporte é que as narrativas são permanentemente abertas, sujeitas às idas e vindas do próprio mundo esportivo, no seu cruzamento com as outras dimensões da vida social. O Lévi-Strauss faz uma comparação entre o jogo e o ritual que é muito pertinente para pensar nessa característica do esporte como campo simbólico. Enquanto o ritual tem uma lógica conjuntiva, partindo de um desequilíbrio ou de uma assimetria para retornar, no final, a um equilíbrio, o jogo parte de uma simetria, de uma situação de igualdade entre os jogadores, para terminar numa assimetria, num desequilíbrio entre vencedores e perdedores. Na sucessão do calendário esportivo, essa situação é permanentemente renovada, de forma que os vencedores e perdedores podem ser outros. Então, as interpretações são sempre provisórias, porque as histórias que ligam o esporte à vida podem mudar de rumo, dependendo do destino dos jogadores, dos clubes e das competições.
Tem uma matéria muito interessante, publicada pelo jornal O Globo em 1931 (época em que o Mário Filho estava despontando na imprensa carioca com uma forma nova de fazer a cobertura jornalística do futebol), que mostra isso com muita clareza. Como introdução a uma entrevista com o Leônidas da Silva, o redator diz que a vida do jogador é sempre dupla, porque ela é composta pelo que acontece dentro do campo e pelo que acontece fora do campo. E essas duas histórias se cruzam, interferindo uma na outra, de forma que o sentido de uma é impregnado pelo sentido da outra. No caso das histórias dos clubes e das seleções nacionais é a mesma coisa: o sentido que a gente dá às trajetórias esportivas depende sempre do cruzamento, cada vez um pouco diferente, entre a história daquela comunidade e a história daquele time.
O Atlético e o Cruzeiro viveram, nos últimos anos, alguns episódios muito significativos, que certamente provocam algum deslocamento nas narrativas e tradições desses clubes. Com a ajuda administrativa e financeira de empresários importantes de Belo Horizonte, o Atlético teve um período de grande sucesso: ganhou a Libertadores em 2013, o Brasileirão em 2021, além de duas Copas do Brasil, construiu um estádio e hoje é reconhecido como uma das principais potências do futebol nacional. Enquanto isso o Cruzeiro, que vinha de um período bem sucedido, com os títulos brasileiros de 2013 e 2014, sofreu as consequências de uma gestão extremamente irresponsável e acabou rebaixado e obrigado a jogar, por três temporadas seguidas, a segunda divisão do futebol brasileiro. Mas, no último ano, transformado em Sociedade Anônima do Futebol (SAF) e dirigido pelo ex-jogador e celebridade global Ronaldo Fenômeno, se reergueu e voltou à primeira divisão.
No caso do Atlético, as vitórias parecem renovar o mito do “Galo forte vingador” (como diz o hino atleticano) e recompensar a fidelidade daquela torcida que “torce contra o vento” (como definiu o cronista Roberto Drummond), mas sua imagem de “clube do povo” parece desafinar um pouco com a participação dos grandes empresários na sua direção, que evidencia sua forte inserção nas elites mineiras, de onde vem, aliás, grande parte dos torcedores que, hoje, conseguem se tornar sócios-torcedores e frequentar os jogos. E o Cruzeiro, se teve fortemente abalada aquela imagem de “trabalho e astúcia” que marcou sua história, por uma gestão incompetente e/ou mal-intencionada, conseguiu superar esse momento e largou na frente nesse processo de profissionalização e modernização da gestão esportiva que está relacionado à criação das SAF. A maneira como isso vai entrar nas narrativas sobre a história dos clubes, a gente ainda não sabe bem. Mas, com certeza, foram episódios muito marcantes, que vão ser lembrados pelas torcidas e incorporados às narrativas da tradição esportiva pelos futuros guardiões das memórias dos clubes. Enfim, o jogo está sempre aberto, sujeito a um resultado novo e a uma reformulação do sentido geral da história.
A imagem que abre o post é as mascotes de Fernando Pieruccetti