
O Blog da BVPS segue com a programação do dossiê Futebol e Sociedade, organizado por Rennan Pimentel (PPGSA/UFRJ) e João Mello (PPGSA/UFRJ). Na atualização de hoje, publicamos um texto sobre O Negro no Futebol Brasileiro, livro de Mario Filho, considerado um clássico da literatura sobre futebol. O texto é assinado por Vinicius Garzon Tonet, doutorando em História e Culturas Políticas pela UFMG.
O dossiê Futebol e Sociedade faz parte da nova coluna do Blog, Primeiros Escritos. Para saber mais sobre a iniciativa, basta clicar aqui. Os primeiros textos do dossiê podem ser acessados clicando aqui e aqui.
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Boa leitura!
Que história é essa? O Negro no Futebol Brasileiro, 75 anos depois
por Vinicius Garzon Tonet
O Negro no Futebol Brasileiro (1947) fez 75 anos em 2022. Desde a sua publicação, ou até mesmo antes dela, ao longo de 1946, nas páginas de O Globo, nunca deixou de ser lido, discutido e editado. Lançado pela grande e hoje (quase) esquecida Editora Pongetti em 1947, passou por uma ampliação em 1964 quando foi editada pela Civilização Brasileira e compôs a coleção “Retratos do Brasil”, evidenciando uma trajetória editorial dentro do turbilhão de publicações que buscavam interpretar as particularidades históricas nacionais. O historiador Fábio Franzini (2006:75), escrevendo sobre a editora José Olympio, constata o fato:
Afinal, ele [José Olympio] também acreditava que ‘um país se faz com homens e livros’, a ponto de adotar esta emblemática frase lobatiana como lema de sua empresa. E não era o único, por certo. Octalles, Schmidt, Cruls e Grieco, os Pongetti, Galeão Coutinho, Henrique Bertaso e outros mais também pareciam dispostos a pôr o país em sintonia consigo mesmo e com o mundo.
Atualmente, em sua 5ª edição, Editora Mauad (2010), lê-se na capa: “obra clássica”. Dificilmente alguém discordaria de tal juízo. Ele foi um dos primeiros a abordar o esporte com maior complexidade, vendo nele um fenômeno cultural e social relevante para a compreensão do Brasil.
Alvo constante de observação acadêmica e jornalística, além de ser destaque entre o público não especializado, mas interessado pela história do futebol, O Negro no Futebol Brasileiro (NFB) possui uma jornada própria dentro da história das ideias sociais e políticas no Brasil. Mario Filho não é o inventor da crônica esportiva nem dos escritos históricos sobre futebol no Brasil. Contudo, foi seu “camisa 10” em ambas: ponto de inflexão na moderna crônica esportiva (SILVA, 2010) e passo decisivo para penetração do futebol em ambiente acadêmico e para a difusão de sua história entre os mais variados círculos sociais.
Além disso, Mario Filho e sua criação são sempre convidados a participar de debates. No presente, o prestígio e relevância da obra revelam-se na série documental produzida por Lucy e Luiz Carlos Barreto e exibida pela HBO, em 2018, inspirada na obra de Mario Filho e que leva o nome de seu mais famoso livro. Em 2021, o NFB ganhou tradução para o inglês: The Black Man in Brazilian Soccer, pela editora da Universidade de Carolina do Norte. Também em 2021, após muita pressão de torcedores, pesquisadores e diversos personagens conscientes da importância da manutenção de Mario Filho na memória do Brasil, houve o veto total, por parte do governo do Rio de Janeiro, ao projeto de lei que pretendia alterar o nome do Maracanã, de “Estádio Mario Filho” para “Estádio Edson Arantes do Nascimento – Rei Pelé”.
Por essa inconteste importância, o NFB acaba eclipsando outras obras do autor. Mesmo assim, algumas ainda circulam com relativa facilidade. Ruy Castro fez um belo trabalho na elaboração de Sapo de Arubinha – os anos de sonho do futebol brasileiro (1994), trazendo à luz crônicas de Mario Filho, publicadas entre 1955 e 1958, que estavam dispersas e esquecidas na revista Manchete Esportiva. Histórias do Flamengo (1945) é figurinha carimbada nas estantes de inúmeros flamenguistas país afora e sua 4ª edição foi lançada em 2014 pela Mauad. Porém, outros livros não tiveram a mesma sorte editorial: onde estão as novas edições de Bonecas (1927)? Senhorita (1928)? Copa Rio Branco, 32 (1943)? O romance do foot-ball (1949)? Viagem em torno de Pelé (1963)? Copa do Mundo, 62 (1962)? O rosto (1965)? A infância de Portinari (1966)?
Feito esse breve balanço do percurso de Mario Filho e o NFB até aqui, proporemos a discussão a partir dos paratextos da primeira edição – “Nota ao leitor”, escrita pelo próprio autor, e o prefácio de Gilberto Freyre intitulado “O negro no foot-ball do Brasil” – do modo com que o NFB é apresentado ao público, e a análise de como Mario Filho constrói a sua justificativa metodológica para a escrita do livro.[i] Para cumprir nossos objetivos, mobilizaremos, também, textos auxiliares de José Lins do Rego, Marcos Carneiro de Mendonça, Tomás Mazzoni, Gilberto Freyre, Olívio Montenegro, além do próprio Mario Filho.
O crítico literário e escritor Sérgio Rodrigues sugeriu que Mario Filho encontra justo lugar na prateleira ao lado de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.[ii] Acolhendo essa avaliação, aceitamos alguns desafios como, por exemplo, o de colocar a sua obra em diálogo com pensadores que buscaram interpretar o país a partir de questões de fundo semelhantes.[iii] Nesse ponto, é o próprio Freyre (1947: v) que nos oferece um caminho inicial ao considerar o NFB um “ensaio” que conta “um capítulo da história do foot-ball no Brasil”, sendo, também, “uma contribuição valiosa para a história da sociedade e da cultura brasileiras na sua transição da fase predominantemente rural para a predominantemente urbana”. Assim, a gênese e o desenvolvimento desse esporte estariam alinhados a essa chave de leitura histórica e sociológica já consolidada à época, ligada ao movimento do rural ao urbano.
A interpretação da sociedade brasileira a partir de mudanças da paisagem rural para a urbana está presente no próprio Freyre, como também em Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado e Caio Prado Júnior, para ficarmos com os autores mais conhecidos. Além disso, o ensaio de Mario Filho teria
importância para o estudo sociológico e psicológico da ascensão do negro e do mulato na sociedade brasileira, [uma vez que] entre os meios mais recentes – isto é, dos últimos vinte ou trinta anos – de ascensão social do negro ou do mulato ou do cafuso no Brasil, nenhum excede, em importância, ao foot-ball (FREYRE, 1947: vi)
Dessa forma, por ser o principal lugar de escalada social para o negro, o futebol legitimava-se como um relevante objeto de investigação histórico-sociológica.
Sendo assim, observamos a utilização de uma forma tradicional – o ensaio histórico – para a manifestação de seu pensamento, bem como a delimitação de um novo objeto nos horizontes sociológicos de então – o futebol –, que, por sua vez, faria parte de uma constelação interpretativa maior – a transição do rural ao urbano e a ascensão social do negro. Na reconstrução da história social do futebol, o objetivo do livro vai se desvelando e aparece como sendo o de demonstrar como o esporte, de estrangeiro, branco e elitizado, tornou-se, por causa da “ascensão social do negro”, brasileiro, mestiço e democrático.[iv]
Para contar a história dos processos de exclusão e inclusão dos negros no futebol, Mario Filho (1947b) pondera sobre quais fontes utilizar e tece observações importantes de cunho metodológico. Em sua “Nota ao Leitor”, explicita que recorreu aos “jornais até [19]10” para verificar dados objetivos como resultados, escalações e estatísticas, em um tempo em que a produção sobre o esporte era incipiente e a prática restrita. Continua sua argumentação agradecendo ao ex-goleiro do período, Marcos de Mendonça, por lhe emprestar seu álbum repleto de recortes jornalísticos: “o mais completo repositório dos acontecimentos do foot-ball de [19]10 até [19]19”. Segundo Mario Filho, há uma mudança crucial no futebol em 1910, ano em que começa a “se tornar uma paixão do povo” e, consequentemente, “assunto jornalístico”. Dessa forma, se o norte das análises dos jornais até 1910 era factual e estatístico, o álbum de Marcos de Mendonça “fornecia nomes, me apresentava a uma porção de gente que eu podia consultar. Essas conversas com os próprios personagens da história do foot-ball brasileiro é que iam enriquecer o meu ensaio” (RODRIGUES FILHO, 1947b: 6).
É possível, portanto, perceber um princípio de adequação metodológica e crítica documental, em que a dinâmica de uso das fontes primárias respeita os objetivos norteadores da história. Essa opção metodológica permite que Mario Filho defina o grau de importância de cada documento, assim como o que é possível dizer a partir deles. Nesse sentido, as fontes orais constituíram-se como os principais fundamentos de sua pesquisa, responsáveis pelo “enriquecimento” da narrativa, tendo em vista que poderiam fornecer, pelo caráter testemunhal, algo que outros documentos omitiam ou silenciavam. Os relatos abririam uma porta para se conhecer o cotidiano de outrora e chegar à “intimidade dos fatos”. A valorização dessa perspectiva analítica está presente, também, em Freyre (2002: 22), quando ressalta a importância da rotina para a constituição da “história íntima” em que “melhor se sente o caráter de um povo”.
Mario Filho, ao buscar vestígios do passado, leva consigo dúvidas e conceitos. Em NFB, o emprego das fontes orais se entrelaça com a principal hipótese do livro, a saber, que as restrições sociais à prática futebolística, impostas pelos clubes e pelas ligas, esconderiam, na verdade, objeções de caráter racial. Em outras palavras, o autor suspeita que instituições futebolísticas, “limitando-se a levantar barreiras sociais, proibindo que trabalhadores braçais, empregados subalternos, contínuos, garçons, barbeiros, praças de pré e por aí afora, jogassem foot-ball” (RODRIGUES FILHO, 1947b: 9), estariam, na realidade, impedindo que jogadores negros participassem do esporte, pois era evidente a sobreposição entre esses tipos profissionais e a população negra na capital da República no período pós-abolição.
Com isso, “os jornais”, “os livros de atas”, “as leis das entidades”, as “correspondências dos clubes”, as “súmulas dos jogos”, “os registros oficiais”, “o maior arquivo do esporte brasileiro”, a coleção completa da revista “Vida Sportiva”, apesar de consultados e de provarem manifesta utilidade, teriam um peso extraordinariamente menor que a “tradição oral, muito mais rica, muito mais viva do que a escrita” na composição dessa história (RODRIGUES FILHO, 1947b: 9).
Mario Filho parece assumir que os “documentos oficiais”, idealmente, seriam os pilares para edificação de um texto sobre o passado, mas que, em seu caso, a tradição escrita, “dos documentos oficiais, graves, circunspectos, dos jornais que não dizem tudo”, seria menos pertinente, e constata que “documentos oficiais me mostraram que a história verdadeira se escreve de outro jeito” (RODRIGUES FILHO, 1947b: 9). Portanto, há uma lucidez metodológica no que tange ao procedimento que antecede e prepara o produto final do historiador, seu texto. O autor quer entrar na “intimidade dos fatos” e descobrir como se deu a “luta do negro”. Porém, quando lança suas indagações às fontes escritas, recebe como resposta um retumbante silêncio. Um silêncio que na verdade silenciava, que eliminava pelo “não dito” a população negra e tentava escamotear a “história verdadeira” do futebol brasileiro, impossível de ser escrita sem se levar em conta o racismo e o seu combate como forças sociais condicionadoras da vida no país.
Com o intuito de romper com esse estado de coisas, Mario Filho faz uma escolha conhecendo suas consequências:
Eu preferia, porém, ouvir dirigentes, jogadores e torcedores. Ouvi centenas deles, de tôdas as épocas do foot-ball brasileiro. […] Reuni, assim, um material de tal ordem que surpreendeu alguém cuja opinião prezo muito. O material era tanto, e com tamanho requinte de detalhe, que ficava a dúvida. A dúvida de como eu conseguiria reuni-lo, catalogá-lo, usá-lo numa narrativa corrente, sem um claro, uma interrupção. Eu não me teria valido da imaginação de romancista que ainda não publicou um romance? Não, eu não usei a imaginação (RODRIGUES FILHO, 1947b: 9).
Ora, quem prefere, avalia, põe na balança e, por fim, coloca algo à frente, estabelecendo uma gradação de valores. A preferência foi por trabalhar com as fontes orais, as falas dos próprios personagens. Esse artifício mostrava-se necessário, já que a história não poderia emergir da mudez da documentação oficial. Trata-se, portanto, de uma investigação sobre o passado cujas fontes “permaneceriam ignoradas”, impossibilitando a inteligibilidade sobre a história social do futebol brasileiro, caso Mario Filho não optasse pelas fontes orais. Apenas o contato direto com “centenas” de pessoas, de “tôdas as épocas”, poderia atender às demandas da sua pesquisa. O estudioso da obra de Mario Filho, Maurício Murad (1999: 437), escreve: “Mario não se baseou em causos. Pesquisou durante anos, conversou, anotou, conviveu, numa verdadeira observação participante”.[v]
A carta pública de Marcos de Mendonça a Mario Filho dá pistas sobre como o autor de o NFB conduzia suas investigações:
Não denunciar, entretanto, ao público o quanto você usou e abusou da nossa paciência, tirando-nos, por vezes, da cama às tantas da madrugada, perturbando a nossa vida com conversas intermináveis, cheias de ‘como é que é?’, e de ‘você se recorda?’, quando o assunto football era o último a nos interessar, seria esconder uma verdade que precisa ser proclamada (MENDONÇA, 1949: 5).
Essa centralidade das fontes orais foi criticada por um interlocutor contemporâneo importante, Tomás Mazzoni (SILVA, 2013). Assim como Mario Filho, Mazzoni também era grande jornalista e apaixonado por história. Escreveu uma série de almanaques sobre futebol, foi incentivador do desenvolvimento de outros esportes e ideólogo daquilo que denominou O esporte a serviço da pátria (1941) (TONET, 2022). Em 1950, Mazzoni escreve História do Futebol no Brasil, livro grandioso, em volume e ambição. Seu objetivo era escrever a história geral do futebol brasileiro. Dizia ele que a obra “foi possível tão somente a 30 anos de arquivo por nós organizado, onde reunimos todos os documentos possíveis e necessários” (MAZZONI, 1950: n.p.).
As preocupações do texto são em relação à objetividade dos fatos e acontecimentos, datas, ordens, origens, escalações, resultados, “o primeiro ‘estádio”,“a primeira Liga”,“a primeira bola brasileira”,“o certame paulista de 1902, o primeiro realizado no Brasil”,“a primeira vitória de um quadro brasileiro sobre o time dos ingleses”, “o ‘sururu’ entre assistentes […] o primeiro da série interminável”etc. Citações longuíssimas de documentos escritos tomam conta de boa parte das páginas, assim como classificações de campeonatos, escalações, nomes de presidentes, explicações morais e técnicas para derrotas e vitórias.
O que nos interessa não é como o texto é construído, mas como sua construção está intimamente ligada, por oposição, ao método de Mario Filho. Mazzoni, apesar de mencionar o NFB nas referências bibliográficas e listar seu autor como um dos poucos historiadores do esporte,[vi] já no primeiro parágrafo da introdução expõe que não partia dos mesmos pressupostos de seu colega. Sem citá-lo, a alfinetada em Mario Filho é evidente: “Não se trata, pois, de nenhuma história escrita pelo método ‘ouvimos dizer’, ou ‘nos contaram assim e assado’”. E continua: “Nossa preocupação foi a de reunir, nessa obra, antes de mais nada, os maiores dados possíveis acerca dos fatos principais, de importância estritamente nacional. Fatos e episódios de maior vulto” (MAZZONI, 1950: n.p.).
A História, segundo essa concepção, seria fundamentada apenas em documentos oficiais, que, por sua vez, conteriam a verdade. Se o produto da pesquisa de Mario Filho era essencialmente interpretativo, Mazzoni (1950) faz história com o intuito de “reunir”, “documentar” e “descrever”, “desde o seu berço até hoje”. Em NFB, percebe-se a proeminência do acontecimento pequeno, aparentemente despretensioso e corriqueiro, enquanto, na História do Futebol no Brasil, fatos que seriam intrinsecamente mais significativos ditam o ritmo da escrita. O jornalista ítalo-paulista evidencia seus critérios historiográficos:
Por história devemos ter presente […] a participação do Brasil nos campeonatos internacionais, as disputas dos campeonatos nacionais, os jogos dos clubes brasileiros com os estrangeiros, etc; a implantação do futebol nos principais Estados, a fundação dos clubes de maior projeção nacional, os episódios e ocorrências que tiveram repercussão […]. Foi esse o critério que escolhemos, para escrevermos a história (MAZZONI, 1950: n.p.).
Essa breve comparação demonstra como havia diversas maneiras de se pensar a história do futebol no Brasil com divergências significativas entre elas. Quando Olivio Montenegro (1948: 4-5), resenhista da obra de Mario Filho, escreve que O Negro no Futebol Brasileiro “não se endurece em forma de relatório nem se empacha de nomes e de datas”, é porque a “história relatório”, factual e obsessivamente objetiva, era uma possibilidade nesse contexto historiográfico. A História do Futebol no Brasil, de Mazzoni, talvez seja o melhor contraexemplo da proposta elaborada por Mario Filho.
Apesar das explicações que oferece, Mario Filho assume que, devido à profusão de detalhes no livro, seu relato poderia inspirar a desconfiança do leitor. Essa preocupação é demonstrada a João Condé, no suplemento literário “Letras e Artes” do A Manhã[vii], quando Mario Filho fala sobre o seu processo criativo:
Com aquele material todo eu não devia hesitar um momento. Portanto foi mestre Gilberto Freyre que me animou […]. Eu precisava de um estímulo assim, porque você não pode avaliar o trabalho que me deu juntar tudo isto numa narrativa corrente, sem uma interrupção. Tive de ir buscar fato por fato nas fontes originais, dispensar na memória de uma porção de gente que eu conhecia e não conhecia, que se lembrava e não se lembrava (RODRIGUES FILHO, 1947a: 9).
Unindo o trecho acima à “Nota ao Leitor”, vê-se uma preocupação medular: como transformar a matéria-prima em um produto final coerente e aprazível? Como não ser confundido com um ficcionista? Devido aos inúmeros detalhes difíceis de serem cotejados com documentos impressos, que supostamente atestariam a verdade das interpretações, não estaria o trabalho sob suspeição?
Na tentativa de enfrentar as indagações acima, Mário Filho estabelece um pacto ético com o leitor – “Não, eu não usei a imaginação” – afastando de si a pecha de mentiroso ou romancista. Essa é uma forma de se comprometer com a verdade dos fatos, ou antes, com um modo de operação mental próprio ao campo histórico, que, em sua linguagem, aparece como negativa ao uso da imaginação.
Além disso, importante lembrar que essa necessidade de negar a imaginação na escrita poderia ser uma resposta à forma com que José Lins do Rego (1943) havia prefaciado o seu Copa Rio Branco, 32, fazendo muitas referências às qualidades de Mario Filho como “mestre do romance e da crônica”, dizendo que o livro era “um romance verdadeiro” e que “a Copa Rio Branco de 1932 teve a sorte de encontrar um historiador que é um romancista. E é em meio a essa aliança do fato com a imaginação que estaria a grande história que sobrevive”. Assim, Mario Filho buscava, ativamente, distanciar-se de qualquer leitura de o NFB como obra ficcional. Ainda sobre esse tópico, Mario Filho oferece a dúvida, como a navalha que separaria o que entra e o que sai de sua história:
Nenhum historiador teria tido mais cuidado do que eu em selecionar os dados, em comprovar-lhe a veracidade por averiguações exaustivas. Às vezes uma simples dúvida me fazia inutilizar um capítulo, obrigando-me a novos trabalhos e pesquisas (RODRIGUES FILHO, 1947a: 10).
Dessa maneira, o pensador demarca suas pretensões nos limites da veracidade, comprovada pela postura de precaução frente àquilo que lhe chega aos ouvidos. Fazendo da dúvida um método, e preocupado com sua credibilidade como pesquisador, Mario Filho exibe cuidados fundamentais na construção do livro.
Além disso, o autor julgou razoável que esse pacto ético também não fosse o bastante para atender os anseios dos leitores pela verdade das coisas. Por que teriam de confiar apenas em suas palavras? Os leitores poderiam confiar, porque garante que seu livro, além de tudo, passou por um processo extenuante de validação: “teve a mais ampla divulgação jornalística que se poderia desejar”, saindo diariamente nas páginas d’O Globo, “o jornal de maior circulação na imprensa brasileira” (RODRIGUES FILHO, 1947a: 10). Dessa forma, Mario Filho atribuía ao público a função ratificadora do texto:
Uma vaidade eu tenho: a de apresentar uma obra que desafia contestação. Se eu tivesse exagerado, para não dizer deturpado os fatos, não faltariam desmentidos. […] E não apareceu uma refutação de quem quer que fosse, embora quase tôdos os personagens da história do foot-ball brasileiro estejam vivos, tenham lido as páginas reunidas neste volume. O que prova que o que está aqui é a verdade pura e simples (RODRIGUES FILHO, 1947a: 10).
A verdade histórica de sua narrativa ancorava-se, também, no respaldo dado pelos leitores d’O Globo durante a sua publicação no jornal. Para Mario Filho, a ausência de contestações, inclusive dos atores desse passado, comprovava a “verdade pura e simples” que contava no livro – sem “exageros”, sem “deturpações”, como diz. Dessa forma, podemos perceber que Mario Filho leva à narrativa histórica um regime de veracidade típico do ofício jornalístico, em que atores e leitores devem ser capazes de reconhecer a correspondência entre o real social e o escrito nas páginas do periódico, fato que confere credibilidade ao escritor. Nessa espécie de metamorfose do jornalista em historiador não se pode, portanto, desconsiderar o lugar de enunciação da verdade do jornalista Mario Filho. O jornalista investiga, revela e possui uma ambição de credibilidade. Por isso, Wisnik destaca a qualidade de nativo do autor, assim como Murad já havia denominado a postura de Mario Filho de “observação participante”:
O grande estudioso clássico do futebol brasileiro é, portanto, um nativo (como se usa o termo em antropologia) que se envolveu no próprio fenômeno até a raiz dos cabelos, fundando no espaço dos meios de massa as condições para o desenvolvimento das potencialidades que ele veio a exaltar. Seu trabalho difere, em quase tudo, dos tons ditados pela observação acadêmica que mal começava a se implantar sistematicamente no Brasil (WISNIK, 2008: 238).
Por mais que a legitimidade da pesquisa pudesse ser colocada em questão, Mario Filho tenta solidificar a plataforma sobre a qual seu conhecimento se assenta. Ao fazer a investigação – com objetos e objetivos, hipótese e métodos – coincidir com o universo mental regido pelo ponteiro da memória dos que teriam condições de refutá-lo, Mario Filho procura tecer uma colcha de irrefutabilidade para suas análises. Um dos produtos gerados por esse casamento é a confiança na palavra do autor – jornalista transformado em historiador – por meio do respaldo dos próprios personagens.
Notas
[i] Marcelino Rodrigues da Silva (2018) fez importantes considerações sobre a relação entre Mario Filho, suas fontes e a escrita da história, que inspiraram algumas reflexões deste ensaio.
[iii] Tal relação já foi proposta por Gil (1997).
[iv] Nossa forma de abordar o prefácio de Gilberto Freyre afasta-se da leitura de Antônio Jorge Soares. Ele diz que o prefácio é elogioso para disfarçar o constrangimento que Freyre teria em escrever um texto dizendo o que “realmente pensava”. O pesquisador ainda usa esse dado para arregimentar forças para sua hipótese de que: “Talvez pelas proximidades, e sobretudo pela diferença de rigor, um certo tom de elogio recheado de ambiguidades permeie o Prefácio de 47. […] Freyre identifica o NFB como um vigoroso e excelente texto. Entretanto, nas entrelinhas, indica que a obra deveria ser colocada no seu devido lugar. […] Mas, afinal, não fica bem escrever o prefácio criticando abertamente o texto”. E continua: “A partir dessa janela aberta por Freyre sobre o caráter do estudo, do ponto de vista do rigor e da perspectiva disciplinar, reforça-se a hipótese de que o NFB, antes de ser um estudo sociológico, seria um romance” (SOARES, 1998: 149-150).
[v] Registre-se que a expressão “observação participante” é utilizada na resenha do sociólogo Luís Costa Pinto na revista Sociologia, em 1947.
[vi] Os outros seriam: Antônio Figueiredo, Leopoldo Santana, Paulo Varzea, Max Valentim, Horácio Werner, Afonso de Castro, Indalicio Mendes e Pimenta Neto.
[vii] Suplemento literário “Letras e Artes” do jornal A Manhã, na seção “Confissões”. Esta edição, em particular, é um tesouro, com textos de Otto Maria Carpeux e o raro poema de Jaime Ovalle, Fogo Morto, dedicado ao amigo José Lins do Rego, pouco após a publicação do livro (cf. SCALZO, 1996).
Bibliografia primária
FREYRE, Gilberto. (2002). Casa-Grande & Senzala. Madri; Barcelona; La Habana; Lisboa; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Lima; Guatemala; San José: ALLCA XX, 2002.
FREYRE, Gilberto. (1947). O negro no foot-ball do Brasil. In: RODRIGUES FILHO, Mario. O Negro no Foot-ball Brasileiro. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, p. IV-VII.
MAZZONI, Tomás. (1950). História do Futebol no Brasil (1894-1950). São Paulo: Edições Leia.
MAZZONI, Tomás. (1941). O esporte a serviço da pátria. São Paulo: s/e.
MENDONÇA, Marcos de. (1949). Carta sobe o “Negro no Football Brasileiro”. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, ed. 5968, p. 5, 4 de fevereiro de 1949.
MONTENEGRO, Olivio. (1949). Uma história de football. Jornal dos Sports, ed. 5796, p. 4-5, 15 de julho de 1948.
REGO, José Lins do. (1943). A biografia de uma vitória. In: RODRIGUES FILHO, Mario. Copa Rio Branco, 32. Rio de Janeiro: Irmão Pongetti Editores, p. 5-8.
RODRIGUES FILHO, Mario. (1947a). Confissões: O Negro no Foot-ball Brasileiro (a João Condé). Letras e Artes: Suplemento de A Manhã, Rio de Janeiro, ed. 38, p. 9, 13 de abril de 1947a.
RODRIGUES FILHO, Mario. (1947a). O Negro no Foot-ball Brasileiro. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores.
Bibliografia secundária
FRANZINI, Fábio. (2006). À sombra das Palmeiras: A Coleção Documentos Brasileiros e as transformações da historiografia nacional (1936 – 1959). Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo.
GIL, Gilson Pinto. (1997). Humildes, mascarados e gênios: ética, história e identidade nacional na obra de Mário Filho. Tese (Doutorado em História) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, UCAM, Rio de Janeiro.
Ilustríssima Conversa: Futebol é tão fantástico que quase sempre supera a ficção. Entrevistador: Uirá Machado. Entrevistado: Sérgio Rodrigues. 25 jun. 2018. Podcast. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/06/futebol-e-tao-fantastico-que-quase-sempre-supera-a-ficcao-diz-escritor.shtml>. Acesso em: 23 de setembro de 2018.
MURAD, Maurício. (1994). Considerações possíveis de uma resposta necessária. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 24, p. 431-446.
SCALZO, Fernanda. (1996). História da literatura mora nos “Arquivos Implacáveis”. Folha de São Paulo, São Paulo, 21 de março de 1996. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/3/21/ilustrada/1.html>. Acesso em: 21 de fevereiro de 2019.
SILVA, Marcelino Rodrigues da. (2010). Mil e uma noites de futebol. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
SILVA, Marcelino Rodrigues da. (2018). O Negro no Futebol Brasileiro e a questão dos gêneros discursivos e literários. In: EPHIS-UFMG, VII, Apresentação de Comunicação. Belo Horizonte.
SILVA, Rafael Santos. (2013). Ordem em jogo: jornalismo esportivo, disciplina e nacionalismo na produção de Thomaz Mazzoni (1920-1941). Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, PUC-Rio, Rio de Janeiro.
SOARES, Antônio Jorge. (1998). Futebol, raça e nacionalidade no Brasil: releitura da história oficial. Tese (Doutorado em História) – Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro.
TONET, Vinicius Garzon. (2022). Tomás Mazzoni e o pensamento autoritário no esporte. In: CORNELSEN, E. L; LAGE, M. V. C. (org.). Futebol, Linguagem e Cultura.Belo Horizonte: Viva Voz, p. 99-103.
WISNIK. José Miguel. (2008). Veneno Remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Cia. das Letras.
A imagem que abre o post é um retrato de Mario Filho, de 1950. Ela foi retirada daqui.