Ocupação Mulheres 2023 | 8 de março: igualdade de gênero e política na agenda pública, por Clara Araújo

Fechando a Ocupação Mulheres 2023, publicamos um texto de Clara Araújo (UERJ) sobre a igualdade de gênero na agenda pública brasileira. Com recurso a grande quantidade de dados e pesquisas acumulados sobre o tema no Brasil e no mundo, a autora discute o estado atual de uma série de iniciativas legislativas e de políticas públicas em pauta no debate nacional, incluindo o pacote de medidas anunciado no último dia 8 de março pelo governo federal.

Ao longo da ocupação, entre segunda e sexta-feira desta semana, publicamos 15 textos autorais e uma apresentação. É um número expressivo de colaborações, que mostra como a rede articulada em torno da BVPS está disposta ao debate e à comunicação pública das ciências sociais num momento importante para a definição do futuro de suas disciplinas. Gostaríamos de agradecer a todas e todos as autoras e autores dos posts, a toda a equipe que trabalha no Blog da BVPS e, principalmente, ao público leitor!

Para ver as outras publicações dessa semana e saber mais sobre a Ocupação Mulheres 2023, clique aqui.

Boa leitura!

– Caroline Tresoldi e Lucas van Hombeeck


8 de março: igualdade de gênero e política na agenda pública

Por Clara Araújo

Este 8 de março, no Brasil, foi marcado por diferentes tipos de eventos e comemorações. Mas o maior destaque foi para um conjunto de políticas públicas apresentadas pelo governo federal, visando combater a desigualdade de gênero e ampliar direitos das mulheres.

Com isto, tais medidas assumem o desafio e tentam avançar em compromisso e reconhecimentos sociais há muito demandados pelo ativismo feminista e por estudos acadêmicos sobre gênero, políticas públicas e direitos humanos: aqueles referentes à  natureza social e interdependente das relações humanas envolvendo diferentes níveis de atividade, e que vão do cuidado mais pessoal e intrafamiliar  às formas coletivas de decisão: o poder  sobre o que deve ou não ser objeto de política, de redistribuição de recursos e de investimentos sociais.

A relevância das medidas anunciadas reside em alguns aspectos que passo a destacar: a) retomam ações iniciadas em gestões anteriores à gestão antidemocrática e de desmonte de políticas públicas que caracterizou o governo de Jair Bolsonaro – como, por exemplo, a Casa da Mulher Brasileira; o programa de construção de creches, suporte fundamental para garantir que mulheres mães possam tentar empregos menos precários; os investimentos em créditos facilitados, entre outras medidas; b) são ações (25 ao todo), de natureza transversal e articulada, como é o caso daquelas na área de violência de gênero, que englobam diversos tipos de agressão e níveis de violência, abarcando prevenção, apoio às vítimas, o combate ao feminicídio, o fortalecimento da patrulha Maria da Penha; incluem também a violência política, esta simbolizada na instituição do Dia Nacional Marielle Franco contra a violência política (14 de março); e ainda contam com o exemplo das políticas voltadas à geração de emprego e renda,  o acesso a linhas de crédito com taxa menor para agricultoras familiares ou empreendedoras, com investimentos em setores da inovação tecnológica ainda fundamentalmente masculinos. Neste tópico, o destaque vai para o projeto sobre igualdade salarial e não discriminação ocupacional enviado ao Congresso Nacional; c) incidem sobre dimensão praticamente engessada da desigualdade de gênero no país, aquela relacionada ao Poder, ainda que de forma limitada a determinados perfis, através da proposição de cotas em conselhos empresariais e de gestões e em cargos de direções empresariais, iniciando por estatais; d) tratam, ou tentam tratar, o problema como estrutural e de responsabilidade pública e estatal, embora incidam sobre indivíduos, e envolvem criação de oferta de serviços de apoio individual e coletivo, em  formatos de redes articuladas, como algumas das iniciativas citadas acima; e) abrangem esferas que, no jargão dos estudos acadêmicos de gênero e também no movimento feminista, são definidas como esfera privada da vida doméstica e familiar, e esfera pública, neste caso, sobretudo a do trabalho; e f) por último, abarcam, ou visam abarcar, entes públicos e privados, estatais, setores conhecidos como terceiro setor e o setor empresarial propriamente dito.

Sua execução diante da herança de terra arrasada deixada pelo governo anterior não é fácil, embora a amplitude das medidas possa indicar efetiva vontade política de retirar o país dos piores rankings em desigualdades no mundo. Mas isso sem dúvida é possível, pois a própria história recente, do último século, tem mostrado isso. Entre o início do século XX e o início do século XXI, as brasileiras obtiveram muitas conquistas: não só estão em massa na educação formal como passaram à frente dos homens em anos de escolaridade; obtiveram direitos em relação à violência doméstica e mostraram que esta é uma luta para se meter a colher; reduziram as taxas de mortalidade materna; entraram no mercado e, apesar do desemprego entre mulheres ser sistematicamente maior do que entre os homens, seguem procurando trabalho e investindo em mecanismos de acesso à renda e autonomia econômica. Por fim, obtiveram legislações que, ao menos formalmente, jogaram por terra os princípios patriarcais vigentes há 100 anos. Assim, apesar da reação conservadora que observamos nos últimos dez anos – das distorções políticas e dos ataques em relação às contribuições acadêmicas ao conhecimento do e sobre o gênero, e do investimento na desconstrução de políticas executadas com muito custos nos quase 30 anos de democracia no Brasil – dificilmente tais ganhos ou valores irão retroceder a moldes de um século ou mais, como desejam setores reacionários não só no Brasil, mas também em diversas partes do mundo.

No entanto, há muitos obstáculos de ordem objetiva e subjetiva, que se somam às desigualdades socioeconômicas estruturais e profundas existentes no país. As mulheres seguem em desvantagem social, econômica e política e, nos últimos anos, tiveram pioras em certas posições. Segundo dados do IBGE, em 2009 elas ganhavam em média 25% a menos do que o salário dos homens. Em 2017 esse gap foi reduzido para 20,7%, mas, em 2021, ele subiu para 22%.  Já na política, os níveis de desigualdade de gênero seguem alarmantes. O país se encontra no 129º lugar em presença político parlamentar entre 190 países analisados pela IPU.[1] E, segundo dados de mídia e de levantamentos como os recém-divulgados pelo Fórum de Segurança Pública, em alguns casos esses níveis se agravaram, como no dos feminicídios, por exemplo. Junte-se às situações objetivas o aparente aumento da parcela da população que comunga de valores reacionários, portanto mais do que conservadores, e defende diferenças entre papéis e responsabilidades entre homens e mulheres. Ou seja, defende na prática a permanência de desigualdades há muito condenadas e criticadas pela comunidade internacional.

De outra parte, os recursos são escassos, de modo que no momento de definir prioridades, “questões de mulheres” ainda são vistas como adjacentes ao que seria a “grande política”. Além disso, se fazem necessários dois movimentos simultâneos: o de reconstrução de ações já implantadas que, de algum modo, vinham funcionando; e o de inovação em desenhos e projetos de políticas, muitas delas reconhecidas como efetivas para a caminhada humanas em prol de sociedades mais igualitárias e justas quanto ao gênero, aplicadas com êxito em outros países, mas não no Brasil. 

Em gestões anteriores, outros projetos semelhantes foram discutidos e até enviados ao Congresso pelo Executivo (recordo aqui a gestão da então ministra da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, Nilcéa Freire, que formulou projeto com esse objetivo de igualdade salarial e combate à segregação ocupacional). Porém, apesar da aprovação de uma ou outra medida, esses projetos não tiveram êxito completo.[2] A última ação emblemática nessa área foi do então presidente Jair Bolsonaro, que devolveu projeto ao congresso com alegação de inconstitucionalidade.

Apesar disso, há muita esperança dos movimentos sociais e também dos setores acadêmicos que estudam gênero de que as medidas recém-lançadas saiam do papel, sejam executadas e possam ser denominadas, de fato, de políticas públicas transversais. Sem perder a perspectiva crítica investigativa e analítica que lhe cabe, a pesquisa acadêmica pode e está chamada a contribuir nesse momento de retomada democrática, acompanhando e sistematizando processos e também formulando sugestões. No contexto atual, destaco aqui duas dimensões relacionadas com essas primeiras medidas políticas que merecem acompanhamento sistemático. Elas estão relacionadas com o processo político de aprovação e legitimação legislativa, bem como com sua execução administrativa.  

Na primeira dimensão, relativa ao processo político de aprovação, o primeiro e grande desafio que o conjunto dos projetos mencionados acima enfrentará, e, pode-se dizer, que o Executivo enfrentará, é a aprovação das medidas que dependem do Legislativo (já que nem todas estão em ações envolvendo projetos de leis). Situo esses desafios em três diferentes dimensões. A primeira diz respeito à dimensão numérica da representação, ou seja, ao ainda baixo número de mulheres parlamentares no Congresso Nacional e ao seu envolvimento e capacidade de aprovação política. Na Câmara dos Deputados foram eleitas apenas 91 deputadas ou 18%. Entre os eleitos, 72% é branca. Os pardos são 21%, pretos 5%, indígenas 0,9% e amarelos 0,58%. O Senado conta atualmente com 15 mulheres entre 81 senadores, mas quatro delas são suplentes de senadores que ocupam cargos no governo federal. Ou seja, se são interesses das mulheres, apenas, ainda há interrogações…

Projetos de Lei em geral precisam ser aprovados pelas duas Casas para seguirem para sanção presidencial. Pode-se argumentar que a representação descritiva, numérica, não assegura interesses coesos ou consenso entre mulheres, e assim o é. Outros fatores, como ideologia e interesses corporativos e de classe tendem a ser mais decisivos no momento do voto das mulheres. Estudos mostram que em parte das matérias as mulheres votam orientadas pelas posições de partidos e eventuais interesses de grupos corporativos. Mas muitos estudos recentes que abarcam experiências parlamentares nas quais as mulheres, em curto espaço de tempo, saíram de posições numéricas com pequeno poder de influência e passaram a representar 30 ou até 40% dos congressistas mostram que esses números mudaram o perfil das prioridades e questões aprovadas no parlamento (Archenti, 2018). No caso desse pacote de medidas enviadas pelo governo, pode-se argumentar a favor de sua possível aprovação o fato de que a maior parte das medidas não envolve polêmicas morais (hoje um dos grandes divisores de água no Congresso) e chegam a ser praticamente consensuais, como é o caso da maior parte das ações em torno do combate à violência, da construção de creches ou mesmo de acesso diferenciado a créditos financeiros. E tais posições tendem a ter também a simpatia dos parlamentares homens. Seja porque de fato eles são solidários e estão comprometidos com esses projetos, seja por tratar de medidas que têm apoio social de amplas camadas da população, e dificilmente políticos pensando pragmaticamente iriam contra esses tipos de política. Sendo assim, sob a ótica da presença, embora em número bem menor do que os homens, é de se esperar que não haja grandes resistências para a sua aprovação.  

Contudo, e aqui vai minha segunda observação, como indicado acima, os congressistas representam também interesses corporativos, se vinculam a projetos ideológicos em seus partidos e parte considerável hoje pauta sua atuação parlamentar por interesses de bancadas informais, como a religiosa. O perfil do congresso que iniciou seus trabalhos recentemente é considerado bastante conservador e parte das mulheres se encontra nesse perfil. Apenas o PL, partido do presidente, elegeu sozinho 99 deputados e 13 senadores e junto com partidos conservadores de direita formam bancada nada desprezível no Congresso. Some-se a isto um perfil já muito elitista do Congresso em termos sócio-econômicos, uma composição conservadora e muitas bancadas informais que tendem a posições reacionárias.[3] Segundo o DIAP, o perfil segue predominantemente neoliberal e conservador em relação aos temas econômicos, sociais e de costumes; as bancadas informais ruralista, de segurança e evangélica aumentaram seus eleitos. Embora a bancada empresarial tenha sofrido leve queda, continua numerosa, com 210 parlamentares: 178 deputados e 32 senadores. Já a bancada evangélica tem 85 parlamentares: 73 deputados e 12 senadores, ao passo que a de segurança conta com 66 deputados e 10 senadores. [4] 

Nesse cenário, muitas mulheres tendem a votar alinhadas com seus partidos, de oposição ao governo, e é possível que, nesse primeiro pacote, tentem eliminar algumas questões consideradas mais problemáticas. Um exemplo pode ser a projeto que propõe igualdade salarial. Em tese, é pouco provável que parlamentares se manifestem para se colocar contra a igualdade salarial. Mas como o diabo está nos detalhes, e como o projeto apresenta uma série de medidas de fiscalização e controle, com multas elevadas, sobre a igualdade para trabalho/ocupação e para todos os agrupamentos empresariais – desde os pequenos empresários até os grandes empresários – os entraves podem surgir com base em discursos sobre dificuldades de pequenos e médios empresários ou medidas que, por serem restritivas, poderiam levar ao desemprego. Não à toa há no Congresso um projeto engavetado definindo medidas de igualdade salarial e ocupacional desde o ano de 2011. O empresariado brasileiro tem demonstrado pouco apreço por compromissos com a igualdade de gênero. Em levantamento realizado em 2010, Araújo e Guedes (2010) encontraram o dado de que o número de empresas que aderiam a medidas de ação afirmativas no Brasil era irrisório; de igual modo, poucas foram as empresas privadas que aderiram a pacto proposto pela Secretaria de Políticas para as Mulheres sobre equidade de gênero. E mais de 80% das que o fizeram eram empresas estatais. Já naquela altura, havia inúmeros exemplos de países produzindo tais pactos e obtendo ganhos importantes. E o histórico na própria Constituinte, ao deixar de fora de direitos trabalhistas as trabalhadoras domésticas – até há menos de uma década o maior contingente de trabalhadoras do Brasil, segundo o IBGE – é ilustrativo dessa baixa disposição da elite para o respeito à igualdade.

No entanto, como Phillips (1995) e Young (2000) chamaram a atenção, se é verdade que as mulheres não constituem e não devem ser pensadas como grupo político de interesses uniforme ou como grupo social que se orienta por sua pertença, há um dado que não deveria ser desprezado: o fato de a maioria das mulheres tender a compartilhar experiências comuns em suas vidas cotidianas. Tal possibilidade de experiência potencialmente poderia gerar maior sensibilidade ou, nas palavras de Young, poderia configurar uma perspectiva social comum para causas ou situações que se lhes apresentam como experiências similares. É nessa possível convergência que cabe a aposta de que, finalmente, o Brasil possa ter uma legislação mais efetiva sobre a igualdade no mercado de trabalho e sobre a violência, ao menos neste primeiro momento.

Ainda assim, não se permitem grandes expectativas para outras agendas, mesmo aquelas envolvendo essa “simples” e aparentemente consensual questão da igualdade no mercado de trabalho. Como é sabido, trabalho remunerados e família são dois polos de um mesmo processo, associado com a divisão sexual do trabalho e a separação ocorrida com o advento da modernidade entre esfera pública e esfera privada. E a atual “louvação” à família tradicional não entra no debate apenas pela via da agenda moral – associada à negação de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, informação sexual sob responsabilidade familiar ou guarda da moralidade social. A família que é incorporada em propostas e estatutos esperando debates no Congresso é pensada e formulada tendo por base a ênfase nos papéis sexuais bem demarcados e tradicionais; é abordada e estimulada, também, a partir da manutenção e permanência de responsabilidades familiares bem demarcadas, de provimento e de responsabilidades, inclusive do lugar apropriado para o cuidado. Nesse cenário, como bem observou Fraser (2016), a reação conservadora no sentido moral pode ser apoiada ou reforçada por medidas neoliberais de redução da responsabilidade pública, sobretudo a estatal, mas também a privada, tendo como contrapartida a responsabilização familiar por políticas que deveriam ser sociais. Não à toa, a ênfase no empreendedorismo das mulheres está cada vez mais em alta, e este é explicitamente formulado como saída e caminho para o desemprego e também para a conciliação com as responsabilidades familiares.

Não só parte considerável do Congresso tende a concordar com essa concepção. Mas dentro dele, parte considerável das mulheres parlamentares também a advoga. Este tema remete à divisão sexual do trabalho, tratada há várias décadas como questão crucial para a produção e reprodução das desigualdades de gênero. Ou à sua superação como base para a desestruturação dessa ordem de gênero. Como já bastante discutido, a divisão sexual do trabalho se institui na modernidade como uma ordem de gênero estruturante das próprias relações capitalistas, pressupondo uma parcela de trabalho não pago, invisível e, ao mesmo tempo, necessária para a reprodução do capital. Os feminismos como movimento e como pensamento têm sido críticos constantes desses percursos e divisões de papéis, assentados em bases patriarcais (Walby, 2015).  A divisão sexual do trabalho e o trabalho doméstico têm várias implicações para as mulheres. E se pensarmos nos pontos envolvidos no debate, podemos identificar vários caminhos a partir dos quais eles estão imbricados e são justificáveis como temas relevantes da política, ou, de outro modo, porque são objetos da política. Tem se tornado necessário trazê-los cada vez mais à superfície, uma vez que muitas medidas de políticas públicas parecem estar se orientando por sua manutenção, com contornos de conciliação, e não propriamente de sua superação.

A divisão sexual do trabalho e sua reprodução nos moldes duais quanto aos espaços sociais e ao gênero, e mesmo suas (tênues) mudanças na contemporaneidade, são problemas de natureza intrinsecamente política e interferem diretamente nas condições de presença das mulheres na vida pública, nas carreiras ocupacionais e nas carreiras políticas. E é muito importante reter esse que é dado caro ao feminismo.

Coube aos estudos feministas algumas contribuições-chave nesse esforço de ampliar as fronteiras do “político” e nelas incluir problemas da vida cotidiana das coletividades – considerando-se que metade das coletividades, sejam elas de pequenas ou grandes populações, tendem a ser compostas de mulheres, e que parte substancial das vidas dos indivíduos nessas coletividades remete à produção e reprodução da vida cotidiana. Ou seja, trazer para a política os aspectos da vida familiar, assim como destacar a importância da política e sua regulação sobre a vida privada e, particularmente, na vida das mulheres. Nesse sentido, elaborar e fornecer caminhos teóricos e metodológicos para articular premissas teóricas com dimensões práticas das experiências, interesses e necessidades das vidas dos indivíduos e, de modo particular, das mulheres, é parte das contribuições que podem e devem seguir como prática acadêmica e feminista. Nas últimas décadas esses esforços têm sido no sentido de inscrever as questões da vida privada na política, não como um tópico específico, mas como parte da teoria social e como parte de uma concepção de uma vida boa e digna. É momento de retomarmos o olhar sobre esses debates no Congresso sob esse ângulo. Mas este é apenas o começo, pois há uma miríade de projetos reativos e conservadores esperando oportunidade para serem colocados novamente em pauta. Resta ver como esse debate se dará no momento de discutir esses e outros projetos. 

Por fim, menciono outro desafio, uma vez superada a etapa de legitimação ou aprovação legal dessas medidas. O da gestão pública e da implantação e execução das políticas pelo Governo. Embora seja tema para outro artigo, deixo aqui algumas observações a respeito. O olhar sobre a gestão tanto envolve fases de curto prazo, como retirar planos de papel e transformá-los em projetos viáveis e com verbas, como desafios de médio e longo prazo, relacionados com a execução e a boa ou má vontade dos gestores, sobretudo estaduais e municipais.

O gigantismo geográfico do país é em si um desafio, com seus mais de 5.000 municípios. Inúmeros estudos mostraram que a descentralização da gestão e a execução de recursos em muitas áreas sequer chegam aos locais ou conseguem ser viabilizadas: falta de envolvimento político decisório e de controle da população, além de limitações de ordem técnica, parecem ser cruciais nessa trajetória. Mesmo em gestões anteriores com vontade política de executar as ações, muitas delas não conseguiam sair das grandes áreas metropolitanas e chegar até municípios médios, menos ainda municípios pequenos, porque faltavam mecanismos de apoio técnico central que permitissem subsidiar gestores sobre exigências – fossem elas de apoio ao crédito ou em fases de desenho e execução dos projetos.

O caso da interrupção da construção de parte das creches durante o governo da presidenta Dilma é um exemplo de tais dificuldades (Araújo, 2018); outro, constantemente mencionado em relatórios em área de violência, é o treinamento voltado para técnicos e, no caso de violência, o treinamento para que policiais compreendam efetivamente do que se trata quando se menciona a necessidade de incluir uma perspectiva de gênero na execução de uma política pública. 

Nesses e em outros campos, a pesquisa acadêmica, os estudos de gênero e de políticas públicas podem agregar importantes colaborações. Primeiro, enfrentando o desafio de reverter a distorção atualmente existente sobre o que se entende por gênero e desmistificando esse “bicho-papão” construído em torno do significado e das relações sociais existentes. Segundo, informando, de maneira didática e acessível a esse público técnico e envolvido com as políticas públicas e sociais, não apenas o que é gênero, mas do que trata uma política com perspectiva de gênero.

Há sistematizações de longa data de experiências no campo de estudos de planejamento urbano e de investimentos tecnológicos bastante robustos que podem e devem ser difundidos para tornar esse conhecimento accessível. Esse recurso tecnológico hoje muito comum nos lares brasileiros, mas ainda não o suficiente, que é a máquina de lavar roupas, pode reduz em muitas horas o trabalho doméstico. E, diga-se, na prática, o trabalho das mulheres. Políticas de crédito com perspectiva de gênero podem ser tanto políticas voltadas às mulheres empresárias como políticas voltadas para reduzir cargas domésticas, baratear custos de equipamentos de primeira necessidade e que reduzam a carga doméstica (política já experimentada com êxito no Brasil) ou mesmo facilitar meios de transportes que permitam deslocamentos mais fáceis das mulheres, em geral daquelas que levam filhos e parentes para consultas e atividades de cuidado.  

Por fim, nessa perspectiva de acompanhamento e avaliação de processos, é necessário investir em mecanismos de sistematização, coleta de dados e avaliação da eficácia de políticas implantadas. Quando falamos da importância da democracia para a sociedade, para as possibilidades de práticas justas e para a igualdade social, não estamos falando de algo abstrato ou apenas teórico, mas de evidências e projetos que permitem avançar nessa perspectiva. É momento de contribuir com o conhecimento acumulado, a reflexão e também as pesquisas empíricas que subsidiem as políticas públicas.


Notas

[1] www.ipu.org. Acesso em 01/03/2022.

[2] Há na Câmara dos deputados um projeto da igualdade salarial entre homens e mulheres que desempenham a mesma função na mesma empresa desde o ano de 2011, o PLC 130, que não foi votado.  

[3]  “Perfil Parlamentar (2023-2026) Sob a Ótica da Agenda Feminista”, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea).

[4] Conferir: https://www.diap.org.br/index.php/eleicoes-2022/91188-bancadas-informais-levantamento-preliminar-do-novo-congresso

Referências:

ARCHENTI, N. & Tula, M. I. (2017). “Critical Challenges of Quotas and Parity in Latin America”, in DOŠEK, T, Flavia Freidenberg, Mariana Caminotti, y Betilde Muñoz-Pogossian (eds.). Women, Politics and Democracy in Latin America. New York: Palgrave McMillian.

ARAÚJO, C. (2018). “As políticas públicas no Brasil e o desafio para a sua manutenção no contexto político atual”, in, TORRES, A.; Paula Pinto & Claudia Casemiro (Eds) Género, direitos humanos e desigualdades. Lisboa: CIEG/ISCP.

ARAÚJO, C. & GUEDES, M. (2010). Relatório “Perspectivas dos Investimentos Sociais no Brasil- Políticas Públicas , responsabilidade social e empresarial e ações afirmativas: a dimensão de gênero”. Belo Horizonte: CEDEPLAR.

PHILLIPS, A. (1994). “Democracy and representation: Or why should it matter who our representatives are?” in, A. PHILLIPS (Ed) Feminism & Politics. Oxford: Oxford University Press.

YOUNG, I. M. (1990). Justice and the Politics of Difference. Princeton: Princeton University

FRASER, N. (2016). “Contradiction of capital and care”. New Left Review, 100:99-117. Disponivel em <https://newleftreview.org/issues/II100/articles/nancy-fraser-contradictions-of-capital-andcare&gt;. Acesso em 4/3/2020.

WALBY, S. (2015). Crisis. London, Polity Press.

Imagem:

Lee Krasner
Imperative, 1976
Oil, charcoal, and paper on canvas
127 x 127 cm
National Gallery of Art, Washington D.C. gift of Mr and Mrs Eugene Victor Thaw, in honor of the 50th anniversary of the National Gallery of Art
© The Pollock-Krasner Foundation.
Courtesy National Gallery of Art, Washington D.C

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