
O Blog da BVPS publica hoje na Coluna Primeiros Escritos uma resenha da antologia Os futuros de Darcy Ribeiro, organizada por Andrés Kozel e Fabricio Pereira da Silva. O livro foi lançado em 2022, centenário de nascimento do intelectual, pela Editora Elefante. Quem assina essa resenha é Gabriel Delphino, doutorando em Ciência Política pelo IESP-UERJ.
Aproveitamos para lembrar que a Coluna Primeiros Escritos se volta para a publicação de textos de estudantes de pós-graduação. Para conhecer mais sobre a iniciativa, que tem curadoria de Caroline Tresoldi (PPGSA/UFRJ) e Rennan Pimental (PPGSA/UFRJ), clique aqui.
Boa leitura!
Os caminhos de um intelectual perene: Darcy Ribeiro e o resgate dos futuros possíveis
Por Gabriel Delphino
Costumeiramente se escuta o argumento de que o campo progressista, atualmente, encontra-se com dificuldades de imaginação. Essa situação se vê representada, por exemplo, na incapacidade de se pensar projetos progressistas para além do pleito eleitoral, em termos de projetos de sociedade, disputando futuros possíveis.
Com isso, a meu ver, a antologia organizada por Andrés Kozel e Fabricio Pereira enseja um argumento no interior desse debate. Os futuros de Darcy Ribeiro (2022) apresenta não apenas o resgate do pensamento de um intelectual necessário para refletir o hoje, mas fazê-lo a partir de seus futuros nos permite expandir a compreensão sobre o ontem e, especialmente, sobre o amanhã.
É importante destacar que a temática abordada, para além de sua relevância intelectual e política contemporânea, apresenta seu sentido também ao identificar as trajetórias de seus organizadores. Sendo um sociólogo argentino e um cientista político brasileiro, seus caminhos e produções denotam um interesse para além de suas fronteiras nacionais, elaborando diálogos latino-americanos e, mais contemporaneamente, abrangendo o Sul global.
No caso do livro aqui resenhado, ele foi lançado pela editora Elefante em 2022, representando um esforço de seus organizadores de realizar uma reapropriação intelectual do pensamento de Darcy Ribeiro, tomando como pressuposto seus exercícios de “futuridade”. Dessa forma, o recorte dos textos reeditados na obra, em conjunto com a apresentação feita pelos organizadores, assinalam futuros possíveis identificados por Darcy e o que esse exercício significa para a imaginação política brasileira e latino-americana.
O ano de lançamento do livro não é escolhido ao acaso, visto que 2022 marca o que seria o centenário de Darcy, caso estivesse vivo. Dentre suas diversas carreiras, como antropólogo, sociólogo, historiador, escritor e político, sua trajetória é fortemente marcada por sua atuação na educação e em relação à elaboração de uma identidade brasileira e latino-americana. Entretanto, como bem mostram Kozel e Pereira, suas contribuições podem ir além do que é costumeiramente reconsiderado em suas produções.
Como mencionado, reconsiderar em 2022 os futuros tratados por Darcy em seus escritos sinaliza o resgate do próprio exercício da imaginação política, problema contemporâneo do campo progressista. Esse elemento é trabalhado ao longo do livro à luz de reflexões preliminares dos organizadores, contextualizando e apresentando aos leitores cada um dos trechos selecionados.
Sendo assim, o livro reserva um segmento denominado “Estudo preliminar”, que serve como uma apresentação da obra. Nele, há uma introdução, uma conclusão e 4 divisões sobre as análises da produção de Darcy. A primeira parte é reservada à discussão de algumas delimitações conceituais e contextuais sobre o modo pelo qual os autores trataram os “futuros” de Darcy; a segunda, terceira e a quarta são destinadas aos três momentos principais das “futurições” do autor, sendo abordadas em ordem cronológica.
Adentrando o conteúdo da obra, o leitor pode se perguntar “Mas por que Darcy? E por que agora?”. Kozel e Pereira explicitam detalhadamente respostas para tais perguntas, em conjunto com outras análises preliminares sobre os textos. Um conceito-chave utilizado pelos organizadores é o de “presentismo”, desenvolvido por François Hartog (2007). Esse ponto é, a meu ver, central nos objetivos do livro e dos usos contemporâneos da obra de Darcy.
Em Regímenes de Historicidad (2007), Hartog argumenta que ao longo do século XX podemos identificar padrões de preocupação com o futuro, projeções utópicas e vislumbres de horizontes possíveis a partir dos processos de modernização. Contudo, a partir da década de 1990 haveria uma virada de perspectiva que transfere o horizonte dessas reflexões e projeções do futuro para o presente, havendo uma ideia de “presentismo”.
Esse “presentismo” pode ser percebido ao observarmos a maneira pela qual a sociedade, a economia, a política e a religião se desenvolveram no final do século. Para citar dois exemplos, a transformação pode ser percebida no avanço de um neoliberalismo econômico transformado em modo de vida, como identificado por Dardot e Laval (2016); e outro na transformação ocorrida no pentecostalismo latino-americano, o neopentecostalismo, aprofundando visões contingenciais da realidade social, como percebido por Freston (1993).
Em termos de reflexão intelectual, o exercício realizado por Darcy a partir do pensamento social latino-americano de esquerda acaba ganhando importância em decorrência desse contexto. Dessa forma, a discussão sobre os usos do tempo aparece como um campo de disputa, não sendo apenas uma ferramenta discursiva. Apesar do presentismo afetar toda a realidade social, o modo pelo qual inviabiliza projetos de futuros progressistas é sintomático.
Para ficar em um exemplo contemporâneo, Cornel West (2015) realiza movimento semelhante em suas reflexões. Sua concepção de intelectualidade negra profética adiciona uma capacidade contingencial atrelada à possibilidade de imaginação social futura, fundamentando as práticas e reflexões “de hoje” no que pretendemos atingir enquanto sociedade no “amanhã”. É esse tipo de exercício que o pensamento de esquerda brasileiro e latino-americano pode absorver de esforços como os de Kozel e Pereira.
Seguindo essa concepção, os autores identificam nas produções de Darcy uma mudança de perspectiva que acompanha a transição analisada por Hartog (2007), de modo que o intelectual teria antecipado-a por quase 15 anos. Com isso, uma escrita mais preocupada com a progressão evolucional das sociedades latino-americanas em direção à revolução foi encontrando em suas “futurições” algumas dificuldades.
Ademais, a historicização dos organizadores para cada uma das fases, tal como a de seus textos, contribui de maneira fundamental para a compreensão das ideias de Darcy, especialmente ao contextualizá-las em sua trajetória política e intelectual. O cuidado com que os organizadores escolheram e editaram os trechos selecionados assinalam um sentido interpretativo possível a partir de trechos distintos das produções de Darcy, sem resultar em apropriações equivocadas ou anacrônicas.
Seguindo o “Estudo preliminar”, Kozel e Pereira apresentam os trechos selecionados dos textos de Darcy, ordenados em capítulos a partir das “fases temáticas” anteriormente mencionadas. Na primeira, por exemplo, são tratados os escritos do autor entre 1968-1972, sendo que parte deles foi pensada em seus exílios no Uruguai e no Chile. Esses escritos abordam uma versão do autor mais preocupada com as “sociedades do futuro” e observam as formas a partir das quais seria possível conceber uma melhor realidade para a região latino-americana.
O primeiro trecho selecionado é retirado da obra “O processo civilizatório: etapas da evolução sociocultural”, de 1968. Como é bem destacado por Kozel e Pereira, é a versão de Darcy mais explicitamente detida às “sociedades do futuro”. Ela é caracterizada por uma visão ancorada em uma teleologia tecnológica que é marca das reflexões do período, mas que atinge previsões precisas em sua teorização.
O segundo se refere ao texto “As Américas e a civilização: processo de formação e causas do desenvolvimento cultural desigual dos povos americanos”, de 1969. Nele, o autor argumenta que seria necessária uma antropologia baseada no materialismo histórico para a compreensão da realidade, sobretudo dos países em situação de dependência. Destaco aqui um ponto fundamental, que é a concepção do Brasil como um povo em que sua virtude estaria no futuro. Essa é uma das dimensões, como já discutido, em que se situam algumas das principais questões da identidade nacional, sobretudo o modo pelo qual se lida com a questão étnico-racial.
Em “Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno”, de 1978, a questão étnico-racial, objeto de seus estudos, aparece no centro de suas formulações teóricas. Dessa forma, elementos da cultura indígena poderiam ser transplantadas para uma ideia de “povo novo” desenvolvida por ele, apresentando características etnocêntricas em suas reflexões.
Já em “O dilema da América Latina: estruturas de poder e forças insurgentes”, texto de 1971 e o último com características específicas dessa fase, há um aprofundamento de uma perspectiva identificada em textos anteriores, que é a da ideia de revolução necessária. Essa se daria a partir das forças oprimidas em diversos locais pelo mundo e que, na América Latina, toma forma a partir da “revolução continental” necessária a partir do bolivarianismo e do anticolonialismo.
No texto seguinte, “O abominável homem novo”, datado por volta de 1972, é perceptível o início de um “deslizamento” nas obras de Darcy, como bem pontuam Kozel e Pereira. Sendo o primeiro de um segundo momento, as projeções utópicas otimistas vislumbradas até então abrem espaço para as dúvidas e imaginações sombrias sobre o futuro. A teleologia e certeza de revolução são reduzidas em detrimento de um transhumanismo que questiona as causas sociais e políticas possíveis a serem adotadas pelos indivíduos no futuro.
Publicado após o golpe de Estado no Chile, em 1973, “Venutopías 2003” apresenta o que os organizadores apontam como um marco nessa trajetória intelectual: a ideia de um “futuro passadista”. Reconhecendo uma incapacidade de seguir “futurizando”, propõe à Venezuela uma utopia que se caracteriza por sua estética baseada nos povos Makiritare, buscando nos povos originários possibilidades alternativas de sociedade. Nesse capítulo há uma nova versão da face “indigenista” de seus escritos, apresentando continuidades e rupturas com escritos de temáticas similares anteriores.
O capítulo seguinte destaca um trecho de um dos romances publicados pelo autor, “Utopia selvagem”, de 1982, que se afasta um pouco das suas produções acadêmicas. Contudo, nele é possível identificar mais visualmente a maneira pela qual ele busca, num passado indígena e originário, respostas para alternativas futuras de sociedade, exercício anteriormente realizado no contexto venezuelano que Darcy imagina aplicado à região latino-americana.
Contemplando a terceira fase, os organizadores selecionam três trechos para os últimos capítulos do livro. O primeiro deles é “A nação latino-americana”, de 1982, texto que resgata uma dimensão de identidade latino-americana, não mais em um sentido teleológico e de inserção de comunidades na revolução, mas sim de “afirmações étnicas” apropriadas ao contexto da região.
Em “A civilização emergente”, de 1984, os povos indígenas aparecem como “povos emergentes” fundamentais na elaboração dos “povos novos” brasileiros baseados em uma humanidade futura, mestiça e fraternal. É a partir dela que muitos dos questionamentos sobre as posições do intelectual sobre miscigenação surgem, estando na base de suas projeções do período, e se formulam argumentos de integração latino-americana importantes para pensar os futuros da região.
Por fim, “O povo brasileiro”, de 1995, é uma obra escrita ao longo de muitos anos, e o autor acaba realizando um “balanço pessoal”, como apontam os organizadores. Aqui, Darcy busca compreender o modo pelo qual o país ainda não teria atingido seu potencial, da mesma forma que sugere caminhos, os quais deveriam resultar na prosperidade nacional, como o desprendimento da ideia de “atraso” relacionado à Europa e a sustentação em suas próprias bases.
Com isso, dentre suas múltiplas virtudes, destaco duas principais que a obra providencia à reflexão sobre a vida social. A primeira, e que considero como principal contribuição da obra aos leitores, é a reapropriação de um pensamento que, em seus termos, auxilia a compreender que ideias produzidas no passado não necessariamente dizem respeito apenas ao passado.
A segunda, para além da contribuição substantiva do exercício reflexivo como destacado, é identificada a partir da oportunidade simbólica que gira em torno de seu lançamento. Sua publicação no ano de 2022 marca o centenário de Darcy, 200 anos de Independência do país, bem como um momento de consolidação do fascismo na política brasileira. Dessa forma, repensar alternativas de futuro em 2022 é também refletir sobre quem fomos, quem nos tornamos e poderemos ser enquanto sociedade.
Como críticas possíveis de serem apontadas à antologia, ressalta-se a possibilidade de um cuidado maior com os usos algo anacrônicos das ideias de Darcy. Ao passo que os autores chamam a atenção para certas inconsistências e controvérsias de seu pensamento, como suas teorizações sobre os povos indígenas e negros, o enfoque principal dos mesmos reside na ação de futurizar novas possibilidades de sociedade. Contudo, realizar este exercício no passado não é o mesmo que fazê-lo no presente, sobretudo no Brasil de 2022. O resgate do autor, como pode ser lido nessa antologia, é fundamental para o retorno das utopias possíveis, mas fazê-las enfatizando as experiências dos povos subalternizados parece um caminho importante para orientação dessa prática. Dessa maneira, elucidar melhor essas questões são possibilidades a serem desenvolvidas, mas que parecem elementares para que os futuros imaginados não resultem em versões alternativas do presente para a maior parte desses povos.
Por fim, destaco que a recomendação do livro é fundamental para todos aqueles que se dedicam a refletir sobre um Brasil e uma América Latina mais justa, igualitária e, sobretudo, possível. Ao passo que representa para os estudiosos do campo da teoria um frutífero material de análise e inspiração, o livro também é apropriado ao público em geral, na medida em que apresenta textos de uma figura pública importante, pouco resgatada, e em uma linguagem acessível que é característica de seus escritos.
Referências
DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. (2016). A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo.
FRESTON, Paul. (1993). Evangélicos e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Campinas. Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas, mimeo.
HARTOG, François. (2007). Regímenes de historicidade. México: Universidad Iberoamericana.
KOZEL, Andrés & PEREIRA, Fabricio (orgs.) (2022). Os futuros de Darcy Ribeiro. São Paulo: Editora Elefante.
WEST, Cornel. (2015). Black Prophetic Fire. Boston: Beacon Press.