Resenha | Imprensa, história e literatura, v. 3: Jornalista por acaso

Com o post de hoje, o Blog da BVPS encerra uma série de resenhas dos três volumes de Imprensa, história e literatura: o jornalista escritor, de Isabel Lustosa e Rita Olivieri-Godet (orgs) publicadas durante esta semana. No texto de hoje, sobre o terceiro volume da publicação – Jornalista por acaso – trazemos a leitura de Antonio Herculano (Casa de Rui Barbosa).

Para ler os outros dois posts da série, por Tania Bessone (UERJ/IHGB) e Márcia Abreu (Unicamp), clique aqui e aqui.

Boa leitura!

Resenha de Imprensa, história e literatura: o jornalista-escritor. Volume 3: Jornalista por acaso. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa : 7Letras, 2021.

Organização: Isabel Lustosa e Rita Olivieri-Godet

por Antonio Herculano Lopes
Fundação Casa de Rui Barbosa

Isabel Lustosa[1] sempre teve interesse na imprensa e em seu papel na vida social e cultural. Mas se no princípio voltava-se para ela mais como fonte, em especial nos seus estudos sobre humor e caricatura, foi sobretudo a partir da tese de doutorado sobre a imprensa da Independência[2] que passou a também tratá-la como objeto de reflexão. Desde então, além de sua produção própria, passou a exercer intensa atividade de articulação do campo de pesquisa da história da imprensa, por meio de organização de seminários e de publicações, culminando com a criação, em 2016, em parceria com Tania de Luca,[3] de um grupo de pesquisa inscrito no CNPq, envolvendo algumas dezenas de pesquisadores nacionais e internacionais.

O volume examinado nesta resenha é o terceiro e último de uma publicação mais ampla, resultante da parceria com Rita Olivieri-Godet,[4] iniciada durante um período em que Lustosa atuou como professora visitante na Université de Rennes II. As duas parceiras organizaram um seminário na Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) em 2014 e em seguida envolveram na publicação outros pesquisadores que não puderam participar do evento. Saído em 2021, o livro em três volumes, com quase mil páginas e 50 artigos, revela um esforço editorial que dificilmente seria possível sem a forte participação do Estado – no caso, por meio de uma parceria público-privada entre a FCRB e a Editora 7Letras.

Do ponto de vista substantivo, a obra oferece um abrangente estado da arte dos estudos da relação entre escrita literária e escrita jornalística nos séculos XIX e XX, particularmente por autores brasileiros, os poucos exemplos de estrangeiros funcionando como um contraponto interessante para o que se passa entre nós. É notável a pouca presença de escritoras. Apenas duas (Rachel de Queirós e Clarice Lispector) são objeto de artigos específicos sobre sua produção.

A divisão em volumes obedeceu um critério cronológico não rígido, cabendo a este terceiro os escritores do século XX, em especial os que, no Brasil, começaram com a geração modernista. Ainda assim, como espécie de preâmbulo, optou-se por abrir o volume por um artigo sobre Euclides da Cunha, cuja atividade jornalística mais importante se deu no final do século XIX. Por outro lado, é tido como um precursor do movimento de 1922. O livro fecha com outra “passagem”, na figura de Milton Hatoum, ativo desde fins do século passado e ainda produzindo bem dentro do atual, que mais confortavelmente poderia figurar como um pós-modernista, se evitarmos as polêmicas associadas ao termo e pensarmos apenas na questão cronológica.

Este terceiro volume, com o subtítulo distintivo “Jornalista por acaso”, inclui 16 artigos, cada um centrado em um escritor. Clarice é a única mulher e três são estrangeiros: Georges Simenon (belga), Albert Camus (franco-argelino) e Antonio Gala (espanhol). Como costuma acontecer com coletâneas, há uma grande diversidade de abordagens e de intenções de leitura, mas o pano de fundo mais geral parte de uma questão que considera a escrita jornalística mais superficial, descartável mesmo, enquanto a literária seria feita para durar. Isso é parcialmente desmentido por vários dos autores, que se empenham em publicar seleções de sua produção para a imprensa. Um caso paradigmático é o de Carlos Drummond de Andrade, estudado por Claudia Poncioni,[5] que publicou vários volumes de crônicas em vida e chegou a se declarar antes jornalista do que poeta. Cioso de sua imagem para a posteridade, o dublê de jornalista-poeta fazia criteriosa seleção do que não considerava perecível para transformar em livro.

Para essa equação jornalista-literato, é fundamental o gênero crônica, que aponta para e busca superar outra distinção comum entre os dois tipos de escrita: enquanto a imprensa se prenderia aos fatos, ao que “realmente aconteceu”, a literatura teria a liberdade de criar mundos possíveis. Mas se a crônica, na origem, estaria ligada a um certo tempo concreto (kronos) – a subjetividade entrando pelo olhar de um observador agudo e seus comentários –, logo os escritores que a ela se dedicaram trataram de apagar as fronteiras entre real e imaginário. Com isso, ganharam recursos mais poderosos para captar o interesse do leitor. Nelson Rodrigues, estudado por Cristiane Costa,[6] reagiu contra o novo jornalismo oriundo dos EUA, preso à tirania dos fatos, e criticava os “idiotas da objetividade”. Mesmo numa coluna intitulada “A vida como ela é…” fazia enorme sucesso com histórias inteiramente inventadas.

Ao contrário de Nelson, que extraía prazer em deixar voar a imaginação e exercitava seu talento dramático na produção de sua coluna na Última Hora, Lúcio Cardoso, estudado por Valéria Lamego,[7] vivia um “sentimento de humilhação” na sua prática jornalística. O escritor mineiro, já tendo publicado inúmeros romances e novelas, de caráter predominantemente intimista, foi levado por necessidade financeira a concorrer com o sucesso das crônicas de Nelson Rodrigues, por meio da coluna “O crime do dia”, no jornal A Noite. A princípio, calcadas em fato real, suas histórias foram aos poucos ganhando autonomia, apenas mantendo os elementos de sensacionalismo que atraíam um público mais popular.

Para um escritor como Georges Simenon, estudado por Paul Aron,[8] que recusava a separação rigorosa de gêneros e que considerava que sua atividade jornalística funcionara como um verdadeiro aprendizado e como fonte da sua produção estritamente literária, a relação entre uma e outra se deu sobretudo no sentido do jornal para o livro, resultando num certo apagamento literário das fronteiras entre realidade e ficção.

Essa experiência não deixa de se aproximar da de Antônio Callado, estudado por Rita Olivieri-Godet. Sua atividade como repórter pelo interior do Brasil, e em particular junto aos povos indígenas, que pioneiramente tornou visíveis para um público amplo, alimentou sua produção literária, como na obra-prima Quarup. Apesar de o autor declarar que, tivera tido opção, teria se dedicado exclusivamente à literatura, é inegável o quanto sua intensa e diversificada experiência jornalística alimentou sua ficção, tanto na temática quanto na forma.

Também levada à imprensa por necessidade, Clarice Lispector, analisada por Nádia Battella Gotlib,[9] vai na direção oposta à de Simenon e Callado, com a escrita literária invadindo as páginas dos periódicos. Conforme Gotlib, “a pessoa Clarice, a jornalista Clarice e a escritora Clarice diluem-se. A escritora manifesta-se explicitamente na escrita, atenta a enlevo da própria alma” (p. 244).

O mesmo parece ocorrer com Milton Hatoum, que, “convidado a tornar-se cronista contra sua vontade […] reconhece ter tomado gosto pelo exercício tão particular desse tipo de escrita” (p. 271), como nos informa Brigitte Thiérion.[10] E acrescenta: “o cronista, assim como o escritor, se revela naquele que, com uma arte consolidada, extrai do frenesi cotidiano sua essência profundamente humana” (p. 283).

E há ainda os que primam por uma sinergia entre crônica e ficção, numa rua de mão dupla. É o que diz Zilá Bernd[11] a respeito de seu autor, Moacyr Scliar, “dando origem a uma rica tessitura na qual se percebem marcas de ambas as práticas de escritura” (p. 260).

Para um número razoável dos autores estudados neste volume, a questão não estava centrada na relação entre escrita jornalística e literária, mas no uso militante que fizeram da tribuna que a imprensa representava – fosse tal militância no domínio cultural, político ou religioso. Também aqui se poderia colocar o binômio permanência e efemeridade distinguindo a obra em livro da saída em periódicos; e também aqui o exame dos autores acaba por relativizar a oposição.

Mário de Andrade foi reconhecidamente o grande militante da cultura modernista. André Botelho[12] e Maurício Hoelz[13] se debruçaram sobre sua crítica musical publicada na imprensa, para extrair desses escritos de circunstância uma dimensão de seu pensamento que desmente os que veem em Mário uma certa reificação das ideias de nacional e de popular. Ao contrário, é o inacabado que surge como conceito básico: “a música […] é aquela que melhor traduz a estética do inacabado, pois é anti-intelectual e de sentido impreciso” (p. 50/51).

Da militância religiosa, o volume traz dois gigantes do século XX: Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção. O Alceu examinado por Marcelo Timotheo é o do período da ditadura militar, o que o coloca como grande antagonista de Corção, defensor do regime. Marcelo procurou acompanhar a transformação religiosa e política de seu autor, que, de campeão da ortodoxia tridentina nos anos 1930, migrou progressivamente para posturas mais liberais e sociais, tornando-se adepto enfático das resoluções do Concílio Vaticano II.

Já em Gustavo Corção, a análise de Christiane Jalles de Paula[14] busca ressaltar “as marcas literárias deixadas por ele em seus artigos jornalísticos” (p. 211). Com reconhecimento literário já garantido desde o lançamento de seu único romance, Lições de abismo, em 1951, a militância religiosa praticamente lhe impôs o caminho da crônica jornalística, com a qual se empenhou em “converter os gentios”. O mais interessante é que tanto Alceu quanto Corção, dedicados originalmente a militar em nome de algo fora deste mundo, foram levados pelo contexto dos anos 1950/1960 a se dedicar às questões terrenas, postando-se nos polos opostos da esquerda e da direita católica.

No campo de uma militância originada diretamente na vida política, ressalta Albert Camus, estudado por Eurídice Figueiredo.[15] A partir da análise de sua atuação no jornal Combat (1944-1947), a pesquisa revela a profunda relação no autor entre política e ética. Esse rigor levou Camus a uma posição de isolamento no meio intelectual francês em face da grande divisão política do pós-guerra. Da mesma forma, na questão argelina, que lhe era tão cara, acabou por não apoiar nenhum dos lados, a partir do momento em que o movimento independentista mergulhou na violência terrorista.

Outro autor estudado por sua atuação política na imprensa (num entendimento ampliado de uma política da vida) é Antonio Gala, em particular por suas crônicas em El País entre 1977 e 1995, quando da redemocratização espanhola. Françoise Dubosquet Lairys[16] o aproxima de Camus por seu forte empenho em se manter independente de partidos e outros agrupamentos, no que a analista denomina uma “solidão solidária”. Gala se colocava como uma espécie de timoneiro intelectual a ajudar seus compatriotas a navegar num mundo de liberdade reconquistada, que, menos do que pelas divisões ideológicas, era assombrado pela banalização da democracia.

Com certa dose de boa vontade, poderíamos também incluir nesse bloco da militância o Gilberto Freyre estudado por Rogério Lima.[17] Trata-se de uma militância de caráter cultural, que o aproxima de Mário de Andrade, sem a sistematicidade e a clara intenção de luta deste. O analista se concentra na atuação jornalística do jovem Freyre (1918-1928), em que se revela um defensor da arte moderna das vanguardas europeias e em que já aparecem temas de seu interesse num conceito ampliado de cultura, que passa pela culinária, pela preocupação com o meio ambiente ou pelo “traço psicológico na História” (p. 104), presente, por exemplo, na literatura íntima e nos usos e costumes retratados por anúncios de jornais.

Finalmente, dois escritores escapam desse esforço de redução do conjunto a dois blocos, e isto menos pelas características de sua produção jornalística e mais pelas intenções dos analistas em destacar algo que não se relaciona com essas categorizações. O Euclides da Cunha estudado por João Cezar de Castro Rocha[18] poderia facilmente ser colocado entre os militantes, com a curiosidade de ter transitado de um polo a outro na percepção do conflito de Canudos. Mas isto é história conhecida, e o que João Cezar busca é chamar a atenção dos leitores para um caso raro, nos estudos de literatura comparada, de ressonâncias (termo proposto por Antonio Candido) de uma obra da periferia do Ocidente, Os sertões, em produções das áreas centrais ou hegemônicas. Com base nisso, o analista propõe uma “literatura comparada às avessas”.

Quanto a Sérgio Buarque de Hollanda, o título do artigo de Robert Wegner,[19] “‘Hoje a palavra é: fatos!’: SBH, correspondente em Berlim (1929-1931)”, parece apontar para o conflito entre o jornalismo de inspiração estado-unidense e o de tradição literária. Curiosamente, o que Wegner expõe é como aqueles artigos escritos para os Diários Associados sobre uma Alemanha prestes a ser tomada pelo nazismo revelam, para além dos fatos, uma interpretação do país e de sua cultura que se provou equivocada: que os alemães não se deixariam levar pela barbárie. E o analista propõe como chave explicativa a concepção totalizadora de cultura em Sérgio, que “via nessa característica musical da cultura alemã o que [a] levaria à abertura às outras culturas, e não ao fechamento e ao isolamento” (p. 93).

Marcado pela grande diversidade de formas de abordar as relações entre imprensa, história e literatura – como costuma acontecer com esse tipo de coletânea de artigos –, o presente volume oferece um amplo panorama de como as questões suscitadas pelo tema proposto pelas organizadoras foram enfrentadas ao longo do século XX pela intelectualidade brasileira, e como as situações não são muito distintas quando desviamos o olhar para outros países. A obra em três volumes, que adiciona mais de trinta artigos incluindo os séculos XIX e XX, é uma iniciativa de fôlego, que oferece ao meio acadêmico uma base sólida para os futuros desenvolvimentos dessa área de pesquisa.


[1] Pesquisadora do Setor de História da Fundação Casa de Rui Barbosa por mais de 30 anos, foi levada a se aposentar pela política obscurantista que dominou a instituição de 2018 a 2022. Hoje está associada ao Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa.

[2] Defendida em 1997 no antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, foi publicada como Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência (1821-1823). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

[3] Professora livre docente no Departamento de História da Universidade Estadual Paulista, doutora em história social pela Universidade de São Paulo (1996), tem a história da imprensa entre os seus focos principais de pesquisa.

[4] Desde 2003, é professora do Departamento de Português da Université Rennes 2, França. Defendeu seu doutorado em literatura brasileira na Universidade de São Paulo em 1994.

[5] Professora do Departamento de Estudos Ibéricos e Latino-Americanos da Université Sorbonne Nouvelle-Paris 3, universidade pela qual defendeu seu doutorado em 2000.

[6] Professora do curso de jornalismo da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela qual se doutorou em 2004.

[7] Doutora em literatura, cultura e contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, organizou Contos da ilha e do continente, livro que reuniu a produção jornalística de Lúcio Cardoso, até então inédita (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012).

[8] Diretor de pesquisa do Fundo Nacional de Pesquisas Científicas da Bélgica e professor de literatura e teoria literária da Universidade Livre de Bruxelas, pela qual obteve seu doutorado.

[9] Professora aposentada de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, pela qual se doutorou (1977) e onde permanece ativa na Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa.

[10] Professora de literatura e civilização brasileira na Université Sorbonne Nouvelle-Paris 3, possui doutorado em português pela Université Rennes 2 (2010).

[11] Professora do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Bens Culturais da Universidade LaSalle, aposentada do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, defendeu seu doutorado em letras na Universidade de São Paulo (1987).

[12] Professor associado do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, defendeu seu doutorado em ciências sociais na Universidade de Campinas (2002).

[13] Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, é doutor em sociologia e antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015).

[14] Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, defendeu seu doutorado em ciência política no antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro em 2007.

[15] Professora aposentada do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, ainda ativa na Pós-Graduação em Estudos de Literatura. Obteve seu doutorado em línguas neolatinas na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1988.

[16] Professora de estudos ibéricos na Université Rennes 2, onde fez grande parte de sua formação acadêmica. Com uma bolsa na Casa de Velázquez, pesquisou o escritor Antonio Gala, sobre quem defendeu seu doutorado em 1989.

[17] Professor associado do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília, defendeu seu doutorado em ciência da literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001).

[18] Professor titular de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com doutorado na mesma disciplina pela Stanford University (2002).

[19] Pesquisador e professor de história e ciências da saúde na Fundação Instituto Oswaldo Cruz, obteve seu doutorado pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (1999).

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