No post de hoje da série Pandemia, Cultura e Sociedade o cientista político Leonardo Octavio Belinelli de Brito (USP) reflete sobre os impasses da democracia e da cidadania no Brasil visibilizados pela pandemia, que repõe nossas profundas desigualdades sociais.
Pandemia, Cultura e Sociedade é uma parceria do Blog da BVPS com a revista Sociologia & Antropologia (PPGSA/UFRJ). Assine o blog para receber as atualizações e curta nossa página no Facebook.
Boa leitura!
República, democracia e cidadania em tempos de pandemia: uma nota sobre a situação brasileira
Por Leonardo Octavio Belinelli de Brito[i]
Como ocorre em tempos de crises profundas, a disseminação do coronavírus (covid-19) pelo mundo tem colocado em xeque alguns dos pilares das ordens política, social e econômica vigentes. Por consequência, novas questões surgem, enquanto antigas ressoam em novo timbre. Muitos cientistas – das ciências biológicas e das ciências humanas – têm se destacado ao formulá-las, interpretá-las e/ou esclarecê-las na esfera pública, com grande repercussão. Para ficarmos em um exemplo: a recente participação do microbiologista Atila Iamarino bateu um recorde de audiência no tradicional programa Roda-Vivada TV Cultura.
No caso das ciências sociais[ii], sua capacidade de interpelar o momento crítico em que vivemos tem a ver com o fato de que as dinâmicas, críticas ou não, das diversas sociedades sobre as quais se debruçam moldam seus principais objetos de estudo. Entre os diversos exemplos possíveis, é suficiente recordar o papel que processos revolucionários dos séculos XVII, XVIII e XIX tiveram na conformação do vocabulário da teoria e da prática política. Indo mais longe na vinculação entre ciências sociais e os problemas das crises, podemos, com Florestan Fernandes, lembrar que a própria “Sociologia emergiu em um momento crítico da civilização ocidental […].”[iii]
Entre as principais questões suscitadas pela pandemia do covid-19, particularmente em nações periféricas como o Brasil, está o seu impacto desigual em sociedades marcadamente estratificadas. Ou seja, há uma dimensão propriamente social no problema do combate à pandemia. Uma das suas facetas, por exemplo, é a falta de condições materiais de parcela significativa da população brasileira exercer as recomendações das autoridades médicas e sanitárias. A vulnerabilidade se estende ao problema da cobertura efetiva da saúde pública. A sua principal ferramenta, o Sistema Único de Saúde (SUS), uma conquista decisiva na cidadania brasileira do período sob a Constituição de 1988, tem sofrido historicamente com falta de financiamento[iv].
A combinação entre as ameaças à vida trazidas pelo coronavírus e a forte desigualdade material coloca em forte tensão o pressuposto igualitário da cidadania vigente no país, especificado no artigo 5º da Carta de 1988, no qual lemos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […].” (o grifo é nosso). Esse é um dos pilares da República (art.1º, inciso II) e embasa um de seus objetivos, “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art.3º, inciso I). É claro que a lei, em si mesma, nada pode fazer para combater o risco. Mas pode – e deve, em um regime verdadeiramente republicano – guiar governantes e governados sobre as prioridades que devem ser ressaltadas.
Dito isso, é preciso recordar duas das principais advertências dos clássicos do nosso pensamento social e político: i) que entre a letra da lei e a realidade social, há uma vasta distância; ii) que tal descompasso, e o seu sentido, mudam segundo o lugar social ocupado pelos cidadãos envolvidos. Ora, ambas problematizam ideias que estão no âmago das noções de República e Democracia. O ideal da primeira é o “governo da lei” – ou seja, que os cidadãos são governados por normas não arbitrárias e com aplicação indistinta; já a segunda preconiza a maior incorporação possível dos sujeitos à condição de cidadania[v]. Portanto, se a lei não vale de modo igualitário, não temos uma república; e se não há uma efetiva incorporação de todos à condição cidadã, não existe democracia. Por essa razão, compreender como tais dissonâncias se produziram e seus efeitos se tornaram verdadeiras obsessões das ciências sociais brasileiras[vi], frequentemente informadas por hipóteses, argumentos e perspectivas formuladas pelos “intérpretes do Brasil”[vii].Um dos principais intérpretes do percurso da cidadania no país, o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho[viii], indica que um dos resultados dessa evolução, ao menos em matéria de direitos civis, foi o estabelecimento de três “classes” de cidadão: “os doutores”, os “cidadãos simples” e os “elementos”[ix]. Os primeiros se encontram “acima da lei”; os segundos têm seus direitos respeitados de maneira incerta e, aos terceiros, caberia “apenas o Código Penal.”[x] Não extrapolaríamos o raciocínio do autor ao indicar que os cidadãos brasileiros possuem em baixa conta as instituições que são, precisamente, os instrumentos de que deveriam dispor para efetivar sua condição cidadã. Por isso, uma resposta adequada das instituições, nesse contexto, é vital para alterar o quadro.
Diante da potência do consórcio entre crise econômica mundial e política nacional, a proposição anterior pode parecer ingênua. Afinal de contas, como uma cidadania frágil poderia conter uma avalanche como essa? Nesse cenário, não seria muito mais provável um agravamento dos desequilíbrios da sociedade brasileira? Analistas, nacionais e estrangeiros, têm se dividido sobre o assunto. Parece ser mais prudente a postura que reconhece as possibilidades de uma tragédia social, ao mesmo tempo que recorda que sua magnitude não está dada, pois está em disputa, nem impede que se abram possibilidades renovadoras. Mais especificamente: são essas novas possibilidades que, se aprofundadas, podem nos recuperar da crise da saúde, da crise econômica e, também da crise cidadã que vivemos.
O atual quadro, grave, permite vislumbrar três indícios que podem anunciar um novo momento. São eles: 1) a importância do SUS foi reafirmada; 2) a pesquisa da universidade pública brasileira tem assumido um protagonismo social e político nunca visto e 3) a criação de uma renda mínima foi articulada. Em comum, elas permitem conjeturar o lançamento debases para a reformulação do lugar do público na sociedade brasileira.
Em sua acepção original, crise (krisis) correspondia à fase decisiva de uma doença – em que o enfermo se recuperava ou padecia. É, pois, uma ruptura com o estado anterior das coisas. No caso de uma crise social, há uma peculiaridade: as alternativas a serem seguidas dependem dos sujeitos. O “como” da pergunta anterior depende, portanto, de nós, aos quais cabe encontrar diretrizes de ação. Nessa ruptura, os princípios democráticos e republicanos da carta constitucional que nos rege parece ser um ótimo guia.
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Notas:
[i]Pós-doutorando em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP), com bolsa do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq)
[ii] Para um breve panorama de algumas, entre as muitas, intervenções bem vindas dos cientistas sociais na conjuntura atual, veja-se os boletins “Cientistas sociais e o coronavírus” divulgados pela Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) em parceria com a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), com a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e com a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP).
[iii] Florestan Fernandes, “A análise sociológica das classes sociais”. In: FERNANDES, Florestan. Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo: Livraria Pioneira, 1971. p.67.
[iv] André Reynaldo Santos Périssé, “O papel do SUS em contexto de crise” (01/04/2020).
[v] Para um panorama, entre os diversos possíveis, da multiplicidade das questões envolvidas, veja-se Lilia Schwarcz e Heloísa M. Starling (orgs), Dicionário da República: 51 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[vi]Sobre o assunto, ver: André Botelho, Bernardo Ricupero e Antônio Brasil Jr., “Cosmopolitism and Localism in the Brazilian Social Sciences”. Canadian Review of Sociology – Revue Canadienne de Sociologie, v. 54, p. 216-236, 2017.
[vii] Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007.
[viii] José Murilo de Carvalho, A cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
[ix] Idem, p.217-8.
[x] Idem, p.218.
A imagem que ilustra o post é:
Promulgação da Constituição Federal de 1988. Fonte: Agência Brasil
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