
O Blog da BVPS publica hoje o sétimo post do simpósio internacional Mundo Social e Pandemia, uma parceria com a revista Sociologia & Antropologia e a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). A organização é de Andre Bittencourt (UFRJ e editor do Blog da BVPS) e Maurício Hoelz (UFRRJ e editor de S&A).
No simpósio, sociólogas e sociólogos do Brasil e do exterior responderam a um questionário com 4 perguntas, elaborado com a expectativa de indagar as diferentes dimensões sociais da pandemia e os desafios que ela representa para a sociologia. Mundo Social e Pandemia sai às terças e quintas no Blog da BVPS, sempre com as respostas de 5 colegas. Para ver os outros posts da série, basta clicar aqui. As versões originais das contribuições enviadas em inglês e francês são disponibilizadas nesta página, que será sempre atualizado. Para acompanhar as atualizações do Blog, siga nossa página no Facebook.
Hoje teremos como convidados/as:
Hartmut Rosa, professor da Friedrich Schiller University, Jena, e diretor do Max Weber Center, Erfurt, Alemanha. Autor, entre outros, de Aceleração: a transformação das estruturas temporais na Modernidade e Resonanz: Eine Soziologie der Weltbeziehung.
Fabrício Monteiro Neves, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros, de A sociologia de Niklas Luhmann (em colaboração) e Bíos e Techné: estudo sobre a construção dos sistema de biotecnologia periférico.
Valter Roberto Silvério, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros, de De preto a afro-descendente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura negra e relações etnico-raciais no Brasil e Ações afirmativas no Brasil: experiências bem-sucedidas de acesso na pós-graduação.
Antonio Sérgio Guimarães, professor sênior do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Autor, entre outros, de Classes, raças e democracia e Racismo e anti-racismo no Brasil.
Sabrina Parracho Sant’Anna, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Autora, entre outros, de Construindo a memória do futuro: uma análise da fundação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Manifestações Artísticas e Ciências Sociais: Reflexões sobre arte e cultura material (organizadora).
Boa leitura!
1. Sociólogos/as e cientistas sociais, em geral, estão se mostrando mobilizados/as para produzir e compartilhar interpretações sobre os efeitos sociais e políticos da pandemia. A teoria sociológica está equipada para enfrentar o desafio de compreender/explicar o fenômeno?
Hartmut Rosa: Na minha compreensão da teoria social, sigo a concepção daquilo que Charles Taylor chamou de “princípio da melhor descrição possível”. Isso significa que é nossa tarefa e responsabilidade tentar fazer a melhor descrição ou interpretação possível do que está acontecendo no mundo, fazendo uso de todas as fontes disponíveis: dados empíricos, estatísticas, observações fenomenológicas, discursos de jornalistas e políticos, além de teorias sociais e filosóficas. E, fazendo isso, acho que podemos contribuir bastante para a compreensão da crise atual. O que observamos para além do sofrimento humano causado em parte pelo vírus, e em parte por nossas reações a ele, é uma ruptura abrupta e uma desaceleração sem paralelo histórico nas cadeias globais de produção e interação, e isso nos oferece a possibilidade de um olhar mais aprofundado para as formas pelas quais as sociedades modernas realmente funcionam. Durante muito tempo houve uma divisão entre as teorias sociológicas e políticas da modernidade: para as últimas, a sociedade moderna é predominantemente uma sociedade política: cabe aos governos (democráticos) regular a relação entre as esferas da economia, ciência, cultura etc. e dar forma aos enquadramentos sociais em meio aos quais vivemos. Por contraste, para os que seguem Niklas Luhmann, a sociedade moderna é em primeiro lugar diferenciada funcionalmente de maneira que a ciência, economia, política, religião etc. são todos sistemas mais ou menos autônomos que não podem ser governados politicamente. Com o advento do coronavírus, de repente vemos que em algumas semanas a ação política pode reconquistar supremacia e ganhar controle sobre atividades de todas as esferas. De acordo com Carl Schmitt, quem tem poder para convocar o estado de emergência é o verdadeiro soberano. Há pouca dúvida de que a política, neste momento, reconquistou sua primazia sobre os mercados. A maior parte dos teóricos sociais até hoje pensava que, na modernidade, isso só poderia acontecer em tempos de guerra.
Fabrício Neves: A teoria sociológica é frutífera em crises. Os clássicos Weber, Marx e Durkheim desenvolveram teorias sobre a crise do mundo antigo e a emergência de um novo tipo de sociedade, a moderna capitalista. Todos, a sua maneira, inovaram, mesmo utilizando teorias anteriores para apresentar um diagnóstico daqueles eventos que os acometiam. A teoria sociológica, portanto, já possui instrumentos para pensar a crise e ensaiar futuros possíveis porque, como eu disse, a sociologia é filha da crise, mas tudo isso terá que ser repensado a partir dos desdobramentos reais que a pandemia nos oferecer. Façamos quatro exercícios: 1) a teoria do conflito já está demasiadamente avançada para compreender, no futuro, processos conflituosos que emergirão, provavelmente em função da escassez de recursos e das mudanças políticas e íntimas; 2) isso nos leva a discutir teorias da desigualdade, já que classes, grupos e elites serão, provavelmente, reconfigurados; 3) o interacionismo simbólico privilegia em seus estudos relações cotidianas faceaface. Contudo, na possibilidade de um mundo de relações remotas, as ideias de cotidiano e interação significativa deveriam ser repensadas; 4) teorias do risco relacionam expectativas de catástrofes globais com respostas a elas, principalmente por parte da ciência e da tecnologia, as quais poderão instaurar seus regimes técnico-cognitivos com argumento de saúde e segurança. Desse modo, é preciso fazer avançar a teoria sociológica para contemplar fenômenos novos, que fogem ao seu escopo atual. A crise abre essa possibilidade.
Valter Roberto Silvério: Os sociólogos e cientistas sociais estão mobilizados, mas suas formulações conceituais e discursos foram disseminados, com o esvaziamento de conteúdo e da referência temporal do contexto de sua formulação. Por exemplo, conceitos como distância social, desigualdades sociais (de classe, étnico-racial, de gênero) são usados para diferentes situações que não guardam relação de similaridade com o contexto de sua elaboração. Assim como o termo isolamento social, que estava associado a grupos “inassimiláveis” em uma certa perspectiva da sociologia americana.O foco sociológico clássico nas relações sociais e na construção social da dominação econômica, da raça ou da doença se tornou insuficiente. O reaparecimento de doenças infecciosas em uma arena intensamente globalizada, marcada por atores supranacionais, nacionais e locais, levantou muitas outras questões, tais como: 1) a repercussão e impacto das disciplinas e/ou modalidades científicas na projeção de contextos de riscos e incertezas; 2) o comportamento da mídia na produção de ciclos de “questões”, frente à dinâmica competitiva de audiência, a serem respondidas pelos representantes da ordem – cientistas, médicos, economistas, políticos profissionais, formuladores de políticas públicas –; o modo como as respostas são fornecidas pode ampliar ou reduzir as ansiedades ante a constante possibilidade de instalação do pânico e da necessidade de identificação na forma de rótulo de um “Folk Devil”; 3) além de “novos” temas como a interação entre saúde pública, imigração e segurança nacional; a realização de interesses econômicos vs. a dinâmica da governança em saúde; a divisão de gênero do trabalho de cuidar e os indicadores quantitativos que, normalmente, demonstram como as minorias são desproporcionalmente vitimadas. Não é preciso dizer que cada um deles, quando associados a doenças infecciosas e/ou pandemias (HIV, SARS 2002-2003; H1N1 2009, Covid-19), constituem um novo conjunto de desafios para os sociólogos e teóricos sociais em geral e, ao mesmo tempo, questionamo pensamento restrito (disciplinas específicas e/ou temas específicos no interior de uma área disciplinar), bem como escancaram a necessidade e as possibilidades de atualização de uma agenda de pesquisa que atenda o interesse público.
Antonio Sérgio Guimarães: Estávamos todos despreparados, mas despreparados socialmente – em termos de sistemas de saúde, de proteção social e de articulação interdisciplinar. Em termos científicos disciplinares, não. Sabemos o que se pode saber. Ou seja, os condicionantes, ou a estrutura, que moldam a crise. Nossas economias e nossas sociedades há muito desafiam os limites naturais da vida. A crise não é só sanitária, pois coincide com o agravamento da crise financeira e o desequilíbrio econômico que se arrasta desde 2008. Por isso a crise sanitária pode assumir dimensão avassaladora; porque destruímos boa parte do sistema de saúde pública e de proteção social que vínhamos construindo desde o fim da Segunda Guerra. Desmontamos políticas sociais que hoje seriam mais eficientes para resistirmos. Em termos da ação social, faltam dados e, a rigor, não temos conhecimento suficiente hoje para entender o que se passou na Ásia e na Europa e o que está se passando conosco nas Américas. O jogo parece bastante incerto quando não podemos nem mesmo contar o número de mortos em tempo real. Sabemos que projeções são aspirações políticas mais ou menos controladas pela razão. Mas sabemos também que o mundo virtual ganhou uma enorme força e assistimos à emergência de movimentos sociais virtuais que minam a circulação de informações e a racionalidade. Os efeitos da Covid-19 dependerão, antes de mais nada, das respostas que são dadas pelos agentes sociais nos campos da política, da economia, da cultura etc. As consequências variarão de país para país, de região para região, mas afetarão a todos de algum modo. Indagamos o futuro a partir de questões presentes. Haverá um retorno ao estado de bem-estar social como ideal? Haverá um freio à desindustrialização ocorrida nos últimos quarenta anos em benefício da globalização? A migração internacional e a grande circulação turística serão contidas?
Sabrina Parracho Sant’Anna: A sociologia tem um papel importante na compreensão das mudanças sociais, mas também no diagnóstico de padrões e tendências. No caso de fenômenos naturais, grandes hecatombes, ou diante de uma pandemia, em que há componentes de propagação cujo diagnóstico é demográfico, há naturalmente também efeitos coletivos sobre as experiências compartilhadas, sobre as visões de mundo de grupos e coletividades. Em 2016, a comunidade internacional de sociólogos se reuniu em Viena, aspirando a discutir o futuro que queríamos [The Futures we want]. O tema do V ISA Forum, muito informado pelas discussões de seu então diretor, Markus Schulz, convergia para o debate do papel da sociologia na projeção de cenários e de futuros possíveis. A discussão estava centrada na análise dos dados e variáveis de que se dispunha, e possibilitavam projetar cenários e avaliar perspectivas futuras, diante de recursos disponíveis e dados estruturais persistentes, mas também levando em consideração o surgimento de movimentos contra-hegemônicos e valores utópicos disruptivos. Diante de períodos de longa estabilidade: mudanças sociais previsíveis. No entanto, em face de uma ruptura da ordem que vivemos hoje, em que somos instados a lembrar que, como já nos advertia Weber, a realidade é infinita e multicausal, a sociologia compreensiva permite entender que os processos são deflagrados por componentes nem sempre ponderáveis e que as ações sociais têm consequências nem sempre previsíveis para os agentes que as engendram. Nesse sentido, creio que a sociologia é, neste momento, uma forma de conhecimento privilegiada, uma vez que agrega diferentes dados, levando em consideração os efeitos materiais sobre grupos sociais diferenciados, mas também e, em especial, atentando para o fato de que a interpretação da experiência concreta acrescenta sentido à ação e que desse sentido depende nossa capacidade de compreensão da vida social.
2. Como a sua área de pesquisa especializada pode contribuir para a reflexão sobre diferentes dimensões desse fenômeno?
Hartmut Rosa: É muito revelador olhar a situação pela perspectiva da teoria da aceleração. Vemos uma desaceleração historicamente única da mobilidade física e material, assim como da vida sociocultural. Parece que freios gigantescos foram acionados nas rodas incessantes da produção, do movimento e da aceleração. Por mais de duzentos anos, o mundo experimentou um processo (desigual e por vezes forçado) de dinamização: nós literalmente colocamos o mundo em movimento num andamento cada vez mais intenso. Ao observarmos o movimento geral de pessoas e bens e materiais circulando o globo, é possível ver uma curva impressionante de crescimento que virtualmente não conhece quebras, pausas ou limites significativos. Basta olhar os números: desde 1800, a produção econômica e o consumo mundiais, o uso e esgotamento de recursos naturais, o uso de energia, a massa total e o número de pessoas em movimento aumentaram incessantemente. Até guerras foram causa de aceleração e mobilização. Mas agora o mundo está se encaminhando para uma interrupção. Não por meio de uma crise econômica, uma guerra ou desastre natural. O vírus não está corroendo nossos aviões, destruindo nossas fábricas ou nos forçando a ficar em casa. É a nossa ação política que faz isso. Por que isso é tão notável? Porque nos últimos cinquenta anos experimentamos um sentimento crescente de impotência diante das forças “invisíveis” dos mercados financeiros e da economia global que produziram um horrendo desastre ecológico (climático) e uma aterrorizante desigualdade social. Duzentos anos de crítica fundamental não puderam fazer nada contra os motores de acumulação do capital. Mas agora eles estão parados. Conseguimos! Essa é uma experiência de auto-eficácia coletiva: sim, podemos direcionar, ou ao menos parar, o mundo! Mas é claro, parar o sistema não é criar uma forma diferente de sociedade. É mais algo como causar um acidente. O tempo dirá se também somos capazes de dar esse segundo passo!
Fabrício Neves: A teoria sociológica e os estudos sociais da ciência sempre caminharam ladoalado. No primeiro caso, a teoria dos sistemas é um meio para se conceituar de forma articulada a sociedade mundial, por oferecer instrumentos para pensar a expansão global da Covid-19 e as distintas respostas dadas à pandemia. Grande parte dos processos que a pandemia mobiliza está enraizada nos limites dos estados nacionais, os quais não respondem igualmente a fenômenos dessa magnitude. Assim, uma perspectiva sistêmica ressaltaria a relação entre os diferentes sistemas sociais a partir das perturbações causadas pelo vírus nos distintos contextos da sociedade mundial. Supostamente, o sistema da saúde tem assumido o centro dos processos sociais, mas isso reflete a realidade de todos os lugares? A pergunta remete aos estudos sociais da ciência e da tecnologia, uma vez que é importante se questionar como o sistema científico tem operado neste cenário de crise. Pode-se utilizar abordagens sobre controvérsias científicas a partir dos estudos das novas vacinas e medicamentos, como, por exemplo, a controvérsia da cloroquina. Ligado ao tema anterior encontra-se a discussão do uso de redes sociais para informação, o que lança nova luz sobre debates acerca da pós-verdade, aconselhamento técnico e confiança. Importantes neste momento também são 1) estudos sobre a desigualdade na ciência, ressaltando que alguns laboratórios e universidades teriam mais recursos para responder à crise; 2) abordagens sobre a participação pública na ciência, de modo a mostrar o engajamento público com questões científicas que o vírus mobiliza; 3) perspectivas sobre o imaginário sociotécnico que se constitui a partir da presença do vírus; 4) divulgação e educação científica, pensando nos meios de traduzir ao público mais geral termos e teorias esotéricas; 5) além de investigações sobre a relação humanos e animais, para se pensar em termos mais simétricos as distintas agências que são articuladas na relação sociedade/natureza.
Valter Roberto Silvério: Especificamente em relação ao tema da etnicidade, das relações entre não-brancos e brancos, não há dúvidas que a exposição permanente dos dados da vitimização desproporcional (mortes efetivas) de negros, populações nativas e latinos (no caso norte-americano) tem sido uma importante estratégia de denúncia das desigualdades sociais. No entanto, a participação de negros, latinos e nativos entre os representantes da ordem, mesmo que estatisticamente insignificante, levanta a questão colocada por Stuart Hall para percepção das consequências devastadoras das relações de poder que constroem hierarquias: o problema da relação entre o que os olhos podem ver e o que a mente pode perceber. O que me permite construir a seguinte pergunta de pesquisa para a área: como minorias que participam da “ordem” têm atenuado, ou alterado, o regime de representação da desigualdade social associada a cor/“raça”/gênero neste novo contexto global-transnacional-diaspórico? É, também, com Stuart Hall que aprendemos como é difícil trabalhar a questão de como os passados coloniais violentos habitam o presente histórico e reverberam nas estruturas sócio-político-econômicas de sociedades como a brasileira.
Antonio Sérgio Guimarães: As consequências das desigualdades raciais, de classe e de gênero, de idade etc. sobre a capacidade de resistir à pandemia está sendo uma preocupação constante. O isolamento social agudiza problemas crônicos de violência contra mulheres, contra idosos, contra crianças. Mas essas desigualdades explicitam principalmente os limites das medidas de contenção à Covid-19 e deixam às claras clivagens raciais, sociais e políticas, que podem muito bem ser exploradas em qualquer direção – seja para uma maior igualdade no futuro, seja para o aprofundamento dessas desigualdades. O exército virtual do presidente aposta no mote que as pessoas têm que se arriscar para trabalhar a qualquer custo. Vende a ideia de que não se deve dar tanto valor à vida; de que sobreviverão os mais aptos fisicamente; de que somos desiguais e que a vida é uma luta. Com isso se isenta das responsabilidades mínimas de um estado-nação e mobiliza o ódio e a intolerância. Mas assistimos também à resistência dos governadores que procuram basear sua ação no que temos de capacitação científica e de boas práticas epidemiológicas. Isso de norte a sul. Assistimos, principalmente, a parcelas das classes médias darem-se conta de que as nossas mazelas sociais as afetam diretamente e, principalmente, do erro tremendo que foi eleger um governo totalmente despreparado. Há uma mobilização também de lideranças comunitárias. Ou seja, o Brasil desigual pode assumir seu destino federalista, a organização dos subalternos encontrar novos desafios na defesa e preservação da vida, para além da luta pela ascensão social. A contrapelo dessa tendência, há um desmanche mais profundo e mais duradouro da proteção social e do sistema educacional e de ciência e tecnologia pelo governo brasileiro. Outras parcelas dessa mesma classe média estão dispostas a encarar o risco de morrer para evitar a desclassificação social ou para promover sua própria ascensão.
Sabrina Parracho Sant’Anna: No caso da sociologia da arte e da cultura, creio que, já há alguns anos, a área tem ocupado papel relevante na compreensão de fenômenos sociais. O cultural turn de Jeffrey Alexander e a ênfase na contracultura por Luc Boltanski trouxeram à tona a análise de valores para a compreensão da vida social. Contudo, creio que recentemente também mudanças materiais no mundo da vida colocaram a produção de bens de cultura no centro do debate sociológico. A temática da economia criativa e novas políticas urbanas centradas no turismo e na difusão de equipamentos culturais puseram a cultura no centro das discussões e deram protagonismo à classe artística nos debates públicos.
No caso da pandemia, fenômeno multidimensional que atinge o núcleo da economia mundial e a estabilidade das representações coletivas, a arte e a cultura se põem como foco privilegiado de análise, possibilitando compreender o modo como a experiência é coletivamente ordenada. De fato, uma vez que informa os quadros da memória coletiva, o sentido público da produção de bens de cultura é objeto fundamental para a compreensão de novos sentidos da ação, para o entendimento da ordenação de demandas em projetos compartilhados e para análise dos estoques de conhecimento acionados para o porvir. Creio que tanto do ponto de vista da análise dos valores, como do ponto de vista das práticas de ação coletiva e mesmo de novos arranjos econômicos centrados na tecnologia da informação, será importante levar em consideração a produção recente da sociologia da arte.
3. A pandemia estaria provocando mudanças sociais, políticas e/ou culturais profundas? Ou acelerando tendências já em curso? Se sim, é possível vislumbrar os contornos das sociedades pós-Pandemia?
Hartmut Rosa: Por um lado, a crise certamente intensifica tendências e problemas que já existiam. Por exemplo, a tendência rumo à digitalização da vida social. De fato, ela produziu uma divisão aguda entre um mundo físico e material “quarentenado” e um mundo digital que acelera seus fluxos e atividades. Mas, por outro lado, estou bem convencido que o coronavírus cria uma possibilidade histórica única de uma mudança de paradigma social. Nas formas de operação normal da sociedade as atividades sociais são determinadas por regras e rotinas de longa duração; os atores sociais estão profundamente acoplados a longas e complexas cadeias processuais que determinam suas ações. Em sociedades complexas e dinâmicas, quebrar essas cadeias e abandonar as rotinas consolidadas é muito arriscado e imprevisível. Por isso, a sociedade opera primariamente num modo de dependência em relação a elas. Mas agora as cadeias de produção e interação estão interrompidas, as rotinas falham e, em muitos sentidos, não há mais regras. Essa é exatamente a situação em que uma mudança de caminhos ou paradigmas pode ocorrer: é um ponto de “bifurcação”: podemos tentar voltar aos velhos caminhos o mais rápido possível – ou tentamos algo novo. Numa situação como essa, não há modelos sociológicos ou econômicos capazes de prever o curso de ação futuro: é uma situação em que não importa a previsão, mas a ação (política): o futuro está aberto!
Fabrício Neves: As crises são momentos de contingência social máxima, porque suspendem o corriqueiro, o cotidiano e o recorrente. É muito difícil projetar qualquer cenário em um contexto no qual as convenções, valores e expectativas estão ainda se assentando. Isso não é necessariamente o vírus que causa, mas sua relação com a ordem social anterior. O impacto da crise só pode ser compreendido a partir dos meios de comunicação, informação e transporte, tal como se configuraram, mais ou menos, de 50 anos para cá, a partir dos hábitos corporais, das rotinas de higiene, das formas das relações humanas nos mais variados contextos da sociedade global, do arranjo entre as nações, dos interesses políticos e econômicos, enfim, da maneira como essas dimensões da vida social recebem e processam a pandemia. A tecnologia tem sido mobilizada em muitas situações da pandemia, e, provavelmente, inovadoras formas tecnológicas emergirão neste cenário ainda incerto. As políticas econômicas adotadas trarão impactos fiscais no Estado, que, em situação posterior, tende a políticas de austeridade ainda mais severas. No entanto, programas de renda universais em implantação pelo mundo tendem a criar novos interesses políticos, com ampla capacidade de mobilização, inaugurando novos ciclos de demandas sociais. A resposta ao vírus transformará todas essas dimensões, profundamente ou de forma imperceptível.
Valter Roberto Silvério: Sim. Hoje, enfrentamos o surto global de uma doença que tem potencial para catalisar o que a historiadora Eva Schlotheuber chama de “pandemia da mente”à medida que a desinformação prolifera e as linhas entre fato e ficção são rotineiramente e indiferentemente cruzadas. Existem dois tipos de respostas polares, a partir das quais se podem vislumbrar os caminhos de uma sociedade pós-pandemia. Uma primeira, tradicional, que aciona as velhas respostas como forma de rememorar que as sociedades humanas se constroem e se reconstroem encobrindo seus velhos problemas. A outra que se concentra na modelagem como uma tecnologia para legitimar versões particulares do futuro como base das políticas e investimentos atuais. Com toda a sua aparente precisão, os modelos são essencialmente uma maneira de incluir uma série de questões e incertezas em uma narrativa autorizada que estabiliza temporariamente o futuro.
Antonio Sérgio Guimarães: Tudo dependerá da duração da pandemia ou da descoberta de uma vacina. Muitos líderes políticos hoje estão preocupados com a concentração industrial na Ásia; com a autonomia e o poder dos gigantes da internet; principalmente com suas consequências: a desindustrialização, o desemprego crônico, o desmantelamento da proteção social, a migração crescente, os movimentos terroristas religiosos ou de direita, a crise ambiental etc. No Brasil, essas não são as preocupações dos governantes, haja visto o desmanche do sistema de fomento público da ciência, do ensino, da saúde e das artes; coincide com a Covid-19 o surgimento de um colonialismo voluntário e estúpido. As classes médias brasileiras, que nos últimos anos perderam seu brio nacionalista, talvez tenham agora a oportunidade de ver o modo como os republicanos nos Estados Unidos se contentam em gerenciar as desigualdades num estado permanente de selva social. Por isso, se a extrema direita perder o poder nos Estados Unidos, teremos a possibilidade de ver a exploração populista da miséria perder força no Brasil. Talvez essas classes médias voltem a ter nas instituições dos estados de bem-estar social europeus um modelo de construção estatal e de vida social civilizada. Principalmente, voltem a acreditar que podemos ser um país original e autônomo. A globalização dos últimos anos, mais que enfraquecer nosso parque industrial, nos desmoralizou como nação – deixamos de acreditar nas instituições, nas lideranças, para atrelar nosso destino à dinâmica norte-americana. Quem ousa hoje falar em sociologia brasileira, como Guerreiro Ramos falava nos anos 1960? Evitar que a pandemia nos consuma significará saber dosar a soberania nacional com a cooperação internacional. Isso em todos os campos. Mas há uma possibilidade bastante realista “do mundo de depois ser terrivelmente parecido com o de antes, mas um pouco pior”, para citar o chanceler francês Le Drian.
Sabrina Parracho Sant’Anna: Há uma conhecida passagem de Benjamin em “Sobre o conceito de história” que me vem constantemente à mente nos últimos dias. O pequeno trecho é inspirado por uma obra de Klee, comprada por Benjamin em 1921, e se inicia com epígrafe de Gerhard Scholem, que herdou o desenho após sua morte. O Angelus Novus de Klee representa um anjo que, segundo Benjamin, “parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente”: “Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las”. Impelido irremediavelmente em direção ao futuro, o anjo não pode deter-se, mas, tampouco, pode encarar o porvir, para o qual volta as costas. Também com os olhos escancarados e sem poder olhar para a frente, tentamos adivinhar o que nos espera. Creio que há, sim, tendências em curso, mas também podemos aguardar mudanças sociais, políticas e culturais profundas da ordem do imponderável. Na conta dos mortos, a expectativa do porvir. Sem querer me estender demais, penso que há três eixos principais para os quais é preciso estarmos atentos.
Em primeiro lugar, por um lado, salta aos olhos o crescimento das desigualdades acentuadas pelas disparidades no acesso à saúde e no acesso à renda. Por outro lado, a desigualdade escancarada tem possibilitado discursos de valorização do SUS e garantia da renda mínima que são, ao menos, alvissareiros. Na expectativa do uso da pandemia para o genocídio das massas e a solução final da plutocracia, lideranças locais e globais parecem poder surgir para a garantia dos valores da civilidade. Em segundo lugar e ainda nesse ponto, creio que é preciso estar atento ao crescimento das desigualdades de gênero, tanto pelo maior número de contratos de trabalho precário entre as mulheres, quanto pelo crescente custo do trabalho de reprodução da vida na esfera doméstica e o aumento exponencial das taxas de violência contra a mulher. Penso que discursos feministas, outrora crescentes, tendem a ser agora agressivamente silenciados, mas há quem vislumbre processos de resistência. Finalmente, creio que a reorganização do mundo do trabalho será ainda mais duramente impactada. Os diagnósticos de rupturas na esfera produtiva e o impacto do terceiro setor não são recentes. No entanto, é preciso estar atento ao impacto da crise sobre o setor de serviços, sobre a indústria criativa, e, finalmente, sobre os modos de distinção social. Creio que é preciso estar atento aos impactos do que Boltanski vem chamando de economia do enriquecimento, mas também a formas alternativas de circulação econômica.
4. Que obra(s) da sociologia e das demais ciências sociais podem nos ajudar a compreender e a conversar sobre os desafios em curso?
Hartmut Rosa: Sobre esse último aspecto [abordado na resposta anterior] – o fato de a especificidade dos seres humanos ser justamente sua capacidade de quebrar as cadeias causais de interação e rotinas e começar a vida de novo, de tornarem-se atores criativos e inventivos – recomendo o livro seminal de Hannah Arendt A condição humana em que ela desenvolve o conceito de natalidade para descrever esse fenômeno. Para entender a lógica da atual situação social como uma fase revolucionária em que uma mudança de paradigma pode ocorrer, eu voltaria ao trabalho de Thomas Kuhn A estrutura das revoluções científicas. Kuhn analisa como os processos rotineiros da “ciência normal” podem ser interrompidos em tempos de crise e dar passagem a novos caminhos revolucionários. Kuhn toma esse modelo do mundo político e o aplica à ciência, mas ele já foi reaplicado a análises da vida social por Sheldon Wolin, Gary Gutting e outras e outros. Finalmente, o que eu realmente acho mais impressionante é a forma pela qual o sociólogo francês da velocidade, Paul Virilio, previu um mundo de “inércia polar” quarenta anos atrás. Ele predisse um mundo em que a mobilidade física e material é reduzida a quase zero enquanto os fluxos de dados e informação viajam na velocidade da luz. É um mundo de paralisação hiper-acelerada: o coronavírus nos deixa bem perto disso!
Fabrício Neves: Por óbvio, teorias sobre o risco são uma porta de entrada, duas me ocorrem: Niklas Luhmann, com Risk: a sociological theory, lançado em 1991 e Ulrich Beck, com Risk society: towards a new modernity, de 1986. Para compreender a relações geopolíticas desiguais e suas dinâmicas, Immanuel Wallerstein, com o já clássico The modern world system, de 1974. Sobre relações entre ordem e desordem, pureza e impureza, higiene e desigualdades, continua atual Pureza e perigo, de 1966, de Mary Douglas. Livros sobre virtualização das relações humanas, como Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line, lançado em 2017 por Richard Miskolci e Love and other technologies: retrofitting eros for the information age, de Dominic Pettman. Sobre a dinâmica da pós-verdade, embora em tom jornalístico, é interessante o livro de Matthew D’Ancona, Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news. Sobre controvérsias científicas, ainda é clássica a série O golem de Harry Collins e Trevor Pinch, composta por três volumes (Ciência, tecnologia e medicina).
Valter Roberto Silvério: As obras são as seguintes: Stuart Hall, The Fateful Triangle: race, ethnicity, nation; Toni Morrison, The Origin of Others; Aldon Morris, The Scholar Denied: W. E. B. Du Bois and the Birth of American Sociology; Michel-Rolph Trouillot, Silencing the past: power and the production of History; Michael O. West, William G. Martin e Fanon Che Wilkins (eds.), From Toussaint to Tupac: The Black International since the Age of Revolution.
Antonio Sérgio Guimarães: É sempre bom reler Norbert Elias e refletir sobre o modo como a vida biológica e a vida social estão entremeadas em suas análises. Há uma série de questões a serem postas para a investigação sociológica. Por exemplo, a relação entre as comorbidades da Covid-19 e as condições e os estilos de vida social devem despertar o nosso interesse. Assim como a maior ou menor coesão social, a nossa relação com o reino animal, e as práticas de distanciamento social já presentes em nossas sociedades, assim como aquelas que virão se estabelecer no pós-Covid-19. Mas é essencial retomar também a leitura dos desenvolvimentistas e dos pensadores ‘subalternos’ e dos abolicionistas. Ler, ademais, a história social que foi feita no Brasil nos últimos trinta anos. Nossos maiores empecilhos como nação são e sempre foram as desigualdades sociais e raciais, que modulam as demais. Se a Covid-19 pode ser uma armadilha para aprofundar o racismo e o elitismo de nossa sociedade, pode ser também uma oportunidade para conhecê-los melhor.
Sabrina Parracho Sant’Anna: Diante de um fenômeno recente, algumas questões emergem com mais força e ganham visibilidade, fazendo-nos rememorar obras para formar uma constelação de problemas acionados simultaneamente, compondo um mapa de compreensão do mundo em que vivemos. Algumas obras tratam mais claramente do tema central que está posto, outras se relacionam de modo mais indireto. Embora para as primeiras a relação com o fenômeno seja mais evidente, penso que as outras também contribuem para observar o que há de novo no momento presente. De diferentes pontos de vista, creio que há trabalhos clássicos que retornam com novo sentido. Da perspectiva da saúde e da doença, além de Goffman e, naturalmente, Foucault, creio que Susan Sontag merece ser retomada com seus ensaios sobre a AIDS, o câncer e a tuberculose. Do ponto de vista dos processos de mundialização, evidentemente, as discussões de Beck sobre a sociedade de risco e de Giddens sobre as consequências da modernidade são referências necessárias. No entanto, creio que do ponto de vista dos rumos da economia global, o livro de Luc Boltanski e Arnaud Esquerre, L’Enrichissement: une critique de la marchandise, parece dar pistas de desdobramentos recentes quanto a mecanismos de diferenciação social que têm impacto sobre a reprodução da desigualdade e o capitalismo.
***Uma versão revisada do simpósio se encontra publicada em Sociologia & Antropologia, n. especial, v. 11/2021, no link: http://www.sociologiaeantropologia.com.br/v-11-n-especial/
A imagem que acompanha este post é:
••• Piet Mondrian. Pier and Ocean 2, 1914. Coleção privada.

* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da BVPS.
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