Bastidores da pesquisa: conversa sobre modernismo com André Botelho

O Blog da BVPS começa hoje uma nova série, dedicada a conversar com pesquisadoras e pesquisadores sobre seus textos, projetos e processos de elaboração de pesquisa. Bastidores da pesquisa irá entrevistar autoras e autores que publicaram artigos acadêmicos recentes para falarem sobre aspectos de seus trabalhos que normalmente não aparecem para o público.

No primeiro post da série temos como convidado André Botelho, professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ e presidente da ANPOCS, que nos contou um pouco de sua pesquisa sobre Mario de Andrade e o modernismo como movimento cultural. Seu artigo “O modernismo como movimento cultural: uma sociologia política da cultura”, ponto de partida da conversa que segue abaixo, foi publicado no último número da revista Lua Nova e convidamos a todos para lerem clicando aqui.

A entrevista foi conduzida por Caroline Tresoldi (mestre em sociologia pela UNICAMP), Alexandre de Bastos (mestrando em sociologia pelo PPGSA/UFRJ) e Francisco Kerche (mestrando em sociologia pelo PPGSA/UFRJ), que também assinam o texto de apresentação.

Boa leitura!

Apresentação

por Alexandre de Bastos, Caroline Tresoldi e Francisco Kerche

O modernismo é um dos grandes objetos de pesquisa de diferentes campos disciplinares no Brasil – da teoria literária às ciências sociais. Prestes a completar o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, vemos surgir diversos debates para repensar os sentidos, as possibilidades e os limites dos variados projetos modernistas. Em “O modernismo como movimento cultural: uma sociologia política da cultura” (2020), André Botelho testa a ideia de “movimento cultural” para analisar o modernismo brasileiro. Desde um ponto de vista sociológico muito próprio, o autor argumenta que tratar o modernismo nesses termos implica discuti-lo como um modo de ação coletiva conflitiva que, mesmo fracamente institucionalizado, buscou produzir mudanças culturais na sociedade brasileira. Nesse caso, seus protagonistas não são apenas os artistas e intelectuais que o lançaram há quase cem anos, mas também, artistas e intelectuais de diferentes locais e gerações com os quais os paulistas mantiveram contato, assim como críticos e intérpretes que vêm organizando políticas públicas e práticas culturais que reverberam de alguma forma os ideais do movimento.

Para compreender melhor as nuances dessa nova interpretação do modernismo, que procura “requalificar a cultura como um espaço de conflito fundamental pelas mudanças na sociedade”, propomos que o autor contasse um pouco sobre os bastidores da elaboração de sua pesquisa. Quais foram os caminhos teóricos e os diálogos intelectuais que contribuíram para forjar essa nova frente de pesquisa sobre o modernismo brasileiro na sociologia? Quais são algumas das implicações teóricas que se abrem quando tomamos o “modernismo como movimento cultural”? De que modo o autor vislumbra os próximos passos de sua agenda de pesquisa? Na conversa que segue, o leitor e a leitora verão que, para André Botelho, rever criticamente os legados do modernismo hoje, especialmente a partir e por meio da figura de Mário de Andrade, um dos líderes morais e intelectuais do movimento, permite pensar o passado, o presente e mesmo o futuro do Brasil.


1. André, no artigo você procura analisar a dinâmica mais propriamente sociológica do modernismo, tratando-o como um “movimento cultural” que buscou operar mudanças na sociedade brasileira. Considerando seus trabalhos anteriores sobre o tema, especialmente sobre Mário de Andrade, você poderia comentar um pouco sobre os caminhos teóricos e metodológicos que o levaram a propor essa nova leitura? 

Andre Botelho: Minha história com Mário de Andrade é longa. E, claro, pessoal, como sempre são nossas histórias com os temas de pesquisa que escolhemos ou que nos escolhem. Não consigo me lembrar de quando Macunaíma e suas poesias e o próprio escritor começaram a me fascinar. Há muito sou leitor da sua obra e da fortuna crítica dela – sou aficionado de livros sobre livros. Na verdade, muito antes de fazê-la tema de pesquisa acadêmica. Tanto assim que Lili Schwarcz me incentivou a escrever um livro sobre o Mário numa coleção que ela estava criando naquele momento, chamada “De olho em”. Desafiado e estimulado pela amiga e grande editora escrevi Mário de Andrade: uma descoberta intelectual e sentimental do Brasil, um ensaio sociológico e biográfico voltado para um público amplo. Aprendi muito com a escrita desse livro publicado em 2012 – há quase dez anos! Então o livro que recolhe minha compreensão de anos de leitura não acadêmica foi o ponto de partida para o meu trabalho de pesquisa profissional sobre Mário de Andrade. Eu comecei minha pesquisa pelos escritos amazônicos do Mário, tema que ainda me fascina. E hoje consigo dimensionar melhor a questão da sua utopia amazônica no contexto da discussão sobre o modernismo como movimento cultural. Pensando bem, não admira que a pesquisa iniciada pela discussão  de uma sociedade mais plural e democrática tenha se encaminhado para a investigação de movimentos culturais. Duas viagens foram fundamentais nesse início do trabalho, uma justamente à Amazônia, com Elide Rugai Bastos e Nísia Trindade Lima – com a Nísia acabei escrevendo sobre viagens à Amazônia. Outra, numa estadia mais longa na universidade de Princeton, como visiting fellow, em 2013 com Pedro Meira Monteiro. Recentemente tenho trabalhado justamente com o Pedro e com Flora Thompson-Devaux num projeto de tradução para o inglês do  relato de viagem do Mário, O turista aprendiz.  

Desde o início, penso, minha interpretação da obra de Mário de Andrade procura  qualificá-la na chave das interpretações do Brasil, dialogando com o repertório de questões do pensamento social e da sociologia, minhas áreas de formação e atuação. Então, ao lado da minha percepção sobre o papel social de Mário de Andrade na cultura brasileira que foi sendo forjada e aperfeiçoada num novo corpo-a-corpo cerrado com seus textos nas pesquisas, coloca-se também a reflexão acumulada sobre o que se pode dizer de um ponto de vista diferencialmente sociológico sobre as interpretações do Brasil, sobre o papel social delas e das ideias em geral e muito especialmente sobre a questão de sua reflexividade social. E eu me dediquei bastante à questão da reflexividade social teoricamente. Sem esquecer que meu doutorado já foi sobre modernismo, não sobre Mário de Andrade, mas sobre uma vertente conservadora do modernismo no Rio de Janeiro, mas que foi fundamental para me dar uma visão de conjunto do movimento. Sem dúvida, um passo importante nessa genealogia da formulação sobre movimento cultural foi o diálogo com colegas, especialmente com Elide Rugai Bastos, em torno de um projeto coletivo que não chegamos a realizar tal como o esperado sobre a relação entre cultura e cidadania. Queríamos entender especialmente como certos movimentos artísticos concorreram para trazer ao debate público determinadas relações sociais que passam a ser vistas como problemas sociais, ajudando a construí-las como objeto de ações coletivas mais amplas. A exemplo de um trabalho atual da própria Elide sobre a literatura regionalista nordestina, a releitura que dela faz o Cinema Novo e as lutas pela reforma agrária nos anos 1950-70.

2. Falando ainda sobre os caminhos percorridos na pesquisa, você mencionou a importância do diálogo com colegas na genealogia da formulação sobre movimento cultural. Qual é a relevância dos variados projetos coletivos que você faz parte para o desenvolvimento dessa nova frente de pesquisa? 

Andre Botelho: Um projeto tão longo na minha trajetória traz as marcas de diferentes interlocuções, vocês têm toda razão. Provavelmente cometerei injustiças, mas, além do diálogo que mantenho com Elide Rugai Bastos, que acabo de mencionar, no meu caso, tudo sempre começa e ganha sentido junto aos colegas e estudantes do NEPS – Núcleo de Estudos Comparados e Pensamento Social da UFRJ. E também em sala de aula. A disciplina Sociologia da Cultura ministrada com meu colega Antonio Brasil Jr em 2018 no IFCS, por exemplo. Numa atmosfera eletrizante, ao longo de um semestre politicamente dificílimo e explosivo, discutimos múltiplas relações entre cultura e participação social no Brasil dos anos 1950-70. Esses anos foram muito especiais, também do ponto de vista da caracterização de movimento cultural, pois neles os debates sobre direitos e cidadania ganham a esfera pública com destacada e renovada participação de artistas e intelectuais que buscavam não apenas uma mudança política, mas também uma mudança cultural da sociedade brasileira. Outra disciplina importante, também em 2018, foi a de Pensamento Social brasileiro, ministrada com Maurício Hoelz, onde, desconfio, começamos o livro que no momento estamos escrevendo sobre o modernismo. Nela percorremos um repertório amplo das interpretações do Brasil – de Joaquim Nabuco a Silviano Santiago, passando por Antonio Candido, Caetano Veloso e José Miguel Wisnik – para discutir como o processo de significação das ações coletivas sempre envolve um fundamento narrativo da ordem social. Estou me dando conta como 2018 foi um ano importante para mim e para a pesquisa sobre o modernismo como movimento cultural. Foi justamente em setembro daquele ano que realizamos o seminário “40 anos de Uma literatura nos trópicos, de Silviano Santiago: diálogos interdisciplinares” com colegas da UFRJ, Unicamp e UFMG. O convívio com esse pensador cosmopolita, do Brasil e do mundo, e com sua obra é desafiante e muito estimulante. Mantenho um diálogo também muito especial sobre movimentos culturais com Heloisa Buarque de Holanda, a quem não por acaso o artigo que estamos discutindo é dedicado.  Compartilho com a Helô uma visão bastante heterodoxa sobre Mário de Andrade; mas, sobretudo, participar de diferentes projetos com ela ao longo da pesquisa, como a Universidade das Quebradas, representou, de certa forma, uma possibilidade de dimensionamento contemporâneo de um movimento cultural. Igualmente importante para mim é o seu livro Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, espécie de acerto de contas com seus compagnons de route sobre as crenças e as práticas culturais e políticas que os haviam posto em movimento e incendiado corações, mentes e mãos. Vejam, então, que, embora relativas a momentos cronologicamente distintos do abordado na pesquisa sobre modernismo, anteriores e posteriores, essas experiências destacadas me ajudaram muito a modelar a abordagem sobre movimento cultural. E, sobretudo, a perceber como o modernismo acabou conseguindo se tornar uma espécie de ponto de vista, de lugar de onde se observar e avaliar a cultura brasileira, de qualquer época do passado e mesmo do futuro, como ilustra o interminável debate sempre redivivo se ele estaria ou não superado, sobre o que estaria vivo ou morto nele e em seu legado etc.  

3. Dialogando mais diretamente com o artigo, vemos que a dimensão do conflito social é central para a construção do argumento sobre “o modernismo como movimento cultural” – inclusive, o texto se inicia com a epígrafe de Max Weber sobre o tema. Essa dimensão se encontra tanto dentro do movimento, quanto na relação dele com o Estado. É o conflito que permite a eterna jovialidade do modernismo e seu enlace geracional?

Andre Botelho: Sim, o conflito é central. Eu diria mesmo que a principal questão implicada na ideia de movimento cultural que estou propondo é justamente a do conflito pelo controle da mudança cultural. Então estamos num campo problemático central da sociologia, que diz respeito à ação, à mudança e ao conflito sociais. O conflito cultural em questão se dá em vários níveis e é também de todas as épocas, como sugere Max Weber. Mas ele também é histórico. Como vejo meu trabalho como uma sociologia política histórica da cultura é importante distinguir esses dois níveis. Então, sim, de um lado, Mário de Andrade percebe que a cada nova geração a juventude deveria se constituir em agente do movimento cultural, lutando pela renovação e democratização da cultura brasileira. O sentido do modernismo como “movimento cultural” em Mário de Andrade é da ordem do processo social e não do evento ou da conjuntura, como a adoção da categoria de “vanguarda” artística tende a caracterizar.  E aqui temos uma diferença importante deste tipo de ação coletiva também em relação aos movimentos sociais, em geral, cuja ação, também circunscrita no tempo e no espaço, tende a se desfazer uma vez alcançados seus objetivos precípuos, quase sempre com o reconhecimento e a institucionalização dos direitos demandados – ainda que naturalmente a institucionalização desses direitos seja sempre seletiva e que o exercício de um direito possa sempre levar a demandas por novos direitos etc.

De outro lado, porém, a aposta na juventude que Mário de Andrade faz tem a ver, também, com o seu reconhecimento sobre os limites históricos de uma ação coletiva transformadora da sua própria geração. E, talvez, da sociedade brasileira. Aqui a questão do Estado Novo é fundamental. Como se trata de uma luta pelo controle da mudança, o Estado é um espaço de poder crucial, pois a partir dele tem-se a possibilidade de transformar concepções e projetos em políticas públicas com alcance válido universalmente. Isso desloca claramente o debate mais assentado na sociologia até hoje sobre a questão da cooptação dos modernistas pelo Estado Novo. Mas não nos exime de reconhecer que, no caso, no meio do caminho do modernismo e de Mário de Andrade tinha uma ditadura. A seu modo autoritário, centralizado e populista, o Estado Novo trouxe para a esfera pública a questão da cultura brasileira pela qual os modernistas de diferentes orientações político‑ideológicas vinham batalhando – pari passu a sua apropriação e transformação em clichês de brasilidade na então nascente indústria cultural. O que confere perenidade a algumas proposições modernistas e de Mário de Andrade é, assim, também o fato de que suas promessas foram tragicamente interrompidas, pulsando, porém, algumas delas como todo um Brasil que podia ter sido e ainda não foi.

4. Você poderia explorar um pouco quais são as possibilidades e implicações analíticas que se abrem quando tomamos o “modernismo como movimento cultural”?

Andre Botelho: Penso que a principal possibilidade analítica da proposta está em requalificar a cultura como um espaço de conflito fundamental pelas mudanças na sociedade. Mesmo quando, eventualmente, movimento cultural tem sido empregado como uma expressão na literatura sociológica, fica difícil perceber um sentido teórico próprio para ela, uma vez que, em grande medida, de fato, se confunde, em seus usos, com as visões mais tradicionais sobre o papel da cultura na sociedade. Temos deixado, então, como pressuposto aquilo que caberia ser demonstrado: como processos e dinâmicas sociais e políticas se entrelaçam com práticas de mudanças culturais? A ideia de movimento cultural pretende, então, trazer esses problemas teóricos e empíricos à tona, reabrindo a discussão sobre a cultura como componente crucial da mudança social e política e não seu reflexo. Mário de Andrade não foi um intelectual e artista que pretendia apenas refletir passivamente sobre a sociedade, ele tentou mudá-la, produzindo uma nova cultura. Assim, no que diz respeito especificamente ao debate sobre o modernismo brasileiro, penso que a principal questão é que a categoria de “movimento cultural” não se confunde com a de “vanguarda artística” mais comum nas abordagens até aqui. Movimentos culturais constituem iniciativa articulada para a alteração, controle ou seleção dos recursos culturais disponíveis nos processos de reflexividade mais geral da vida social. Situados num nível meso de escala de análise sociológica, são heurísticos porque condensam os limites/oportunidades impostos pelos processos mais gerais de mudança social para a alteração das autocompreensões societais, isto é, para as imagens que circulam sobre a sociedade e que interagem com as forças sociais e políticas em disputa. Por fim, como ocorre com os movimentos sociais em geral, também com o modernismo como movimento cultural, a mudança que se objetiva operar na sociedade implica, igualmente, uma transformação nos próprios atores sociais que dele participam. O self modernista está – e a cada passo se repõe – no centro de toda essa espécie de cadeia formada pela relação sempre muito contingente entre a mudança pretendida pelos movimentos na sociedade e a sua modificação no processo. Então, mesmo quando não atinge seus objetivos programáticos imediatos, afeta e transforma seus portadores sociais, o que reabre todo o ciclo de conflito do qual vínhamos falando. Mas eu estou discutindo o modernismo como movimento cultural de e a partir de Mário de Andrade, cumpre enfatizar. Pois o sentido da mudança cultural não é o mesmo em todas as vertentes do modernismo, algumas delas tem inclusive posições politicamente contrárias às mudanças. No momento estou escrevendo um livro com Maurício Hoelz ampliando bastante o espectro do artigo aqui discutido, embora nele fundamentado. No livro será possível introduzir outras camadas decisivas de conflitos na discussão do modernismo como movimento cultural, como a do conflito interpretativo sobre o Brasil entre Mário e Oswald de Andrade e a Antropofagia, por exemplo, e o próprio conflito subjetivo de Mário de Andrade na sua automodelagem como líder moral do movimento.

Acervo IEB/USP

5. Como você imagina os próximos passos dessa agenda de pesquisa sobre movimentos culturais? Poderia antecipar algo sobre esse livro que está sendo escrito com o Maurício Hoelz?

Andre Botelho: O enfrentamento teórico sobre a questão da dependência cultural é um dos principais desafios do livro. Como estamos mostrando, as interpretações do/sobre o modernismo se organizam centralmente em torno da polêmica sobre a originalidade e a cópia da cultura brasileira que vem sendo formalizada, na fortuna crítica, sobretudo pela ideia de síntese entre nacionalismo e cosmopolitismo. Não importa se “dependência cultural” ainda é a melhor categoria ou não para dar conta do problema, e mesmo que os fenômenos nela envolvidos não sejam hoje exatamente os mesmos do passado recente, pois continua sim a existir uma geopolítica mundial da cultura com relações e trocas assimétricas e recriação de hierarquias de vários tipos. A chamada mundialização da cultura não parece estar, de fato, gerando exatamente relações multicêntricas ou mais equitativas, apesar da intensificação de trocas de todos os tipos garantidas pelos desenvolvimentos tecnológicos.

Estamos trabalhando com três vertentes contemporâneas sobre o problema da originalidade e dependência da cultura brasileira que acionam, e atualizam com sentidos variados, o repertório e o legado dos diferentes modernismos, que serão assim também abertos para balanço. Ao confrontá-las, buscamos promover uma espécie de irritação mútua entre elas. A saber: (1) a vertente que se poderia chamar de “funcional-dialética” que enfatiza certo “balanceio” entre localismo e cosmopolitismo na cultura brasileira, e pode ser representada pela obra de Antonio Candido – ainda que com variações, talvez relevantes, de Formação da literatura brasileira, de 1959, à “Dialética da malandragem”, de 1970; (2) a vertente “dialética negativa” que enfatiza a cópia e o uso provinciano dos modelos europeus/das sociedades centrais, representada por Roberto Schwarz, sobretudo, por seus estudos sobre Machado de Assis de que é mais do que emblemático o ensaio “As ideias fora do lugar” (1973) recolhido posteriormente em Ao vencedor as batatas, de 1977, o primeiro de uma série de pelo menos três livros seus sobre Machado; (3) e, por fim, a vertente que enfatiza o “entre lugar” da cultura brasileira e a repetição com diferença como dinâmica cultural da sociedade brasileira/dependentes, representada pela obra de Silviano Santiago, desde o ensaio seminal “O entre-lugar da literatura latino-americana”, publicado originalmente em inglês em 1971, e recolhido em Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural, de 1978, até O cosmopolitismo do pobre, de 2008 – percurso em que podemos surpreender a formulação de categorias cruciais como “inserção” (em contraposição à “formação”) e “cosmopolitismo” cujas relações com o conceito primeiro de “entre-lugar” estão ainda por ser demonstradas.  Nesse sentido, o livro também está dialogando especialmente com o projeto coletivo MinasMundo: o cosmopolitismo na cultura brasileira, do qual eu e Maurício participamos, também como coordenadores. 

6. Em 2022 comemoramos o centenário da Semana de Arte Moderna e o Bicentenário de Independência do país, em um contexto marcado por uma enorme crise política, econômica e sanitária. O movimento modernista, para além de sua dimensão político-cultural, pode ser visto também como um projeto afetivo de Brasil? Ao revermos seus sentidos e seu legado na cultura brasileira, ainda podemos tirar lições desse movimento?

Andre Botelho: Quase cem anos depois da Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922 somos forçados a constatar não apenas o fracasso da empreitada cosmopolita do modernismo, como também o retorno de um nacionalismo programático autoritário em correntes de opinião, manifestações públicas e políticas governamentais no Brasil. O que teria dado errado? Como sociólogo lembro que o modernismo conviveu pouco com a democratização social por conta da persistência e recriação das desigualdades sociais e com a própria democracia enquanto forma de exercício do poder político e institucional, de modo que a força crítica que o movia parece ter perdido alcance e mesmo fôlego. Mas vou me limitar a falar especificamente sobre o legado de Mário de Andrade. Monumentalizado praticamente como sinônimo do modernismo, suas particularidades não raro foram diluídas no contexto geral do modernismo. É comum ouvirmos e até lermos ideias atribuídas a Mário, mas que expressariam melhor as de outras vertentes do modernismo, do autoritário Anta à Antropofagia oswaldiana – essa sim, uma linha de continuidade na cultura pop brasileira, como não deixa desmentir a Tropicália, mas não apenas ela. Poucos falam do fracasso de Mário de Andrade. Eu aprendi a valorizá-lo ainda mais em muitas conversas com Heloísa Buarque. É o fracasso de Mário de Andrade que mais me interessa como fenômeno existencial e sociológico. É ele que é a chave para pensarmos e repensarmos a sociedade brasileira com e contra o legado modernista. A consciência de que haviam fracassado, ele e sua geração, é que lhe permite uma formulação com mais alcance político sobre o modernismo, a cultura e a sociedade brasileira. Nesse sentido, penso que, tanto do ponto de vista estético, quanto intelectual, o heterogêneo e o inacabamento tão importantes como elementos expressivos da obra e do pensamento de Mário de Andrade, permitem nos aproximar de sua visão própria descentrada e cosmopolita de identidade como uma relação social. Gostaria de enfatizar que o movimento de desrecalque da cultura e das práticas populares que pretendia não se esgota numa preocupação ontológica (em verdade presente, mas incapaz de conferir sentido geral a sua obra), do seu tão propalado nacionalismo. Além de se voltar contra um sentido eurocêntrico da cultura brasileira mantendo uma escuta atenta à sua diversidade regional. Identidades (no plural) e diferença, abertura ao conflito e à contingência. E sem deixar de colocar criticamente as relações coloniais, atenta para o localismo do universal e o alcance universalista do próprio local. Isto é, sem reificar nem localismos em seu particularismo nem o universalismo em sua abstração, coloca pelo avesso a perspectiva colonial num esforço notável de pôr local e universal não apenas em relação (o que já traz uma nota crítica), mas efetivamente em diálogo. A mudança cultural pela qual se bateu Mário com e contra os seus contemporâneos foi, fundamentalmente, pela democratização da cultura brasileira e pelo reconhecimento das culturas populares, mas, especialmente, pelo reconhecimento dos seus portadores sociais. Por isso, na verdade, ela implicava antes, como tão bem reconheceu Carlos Drummond de Andrade, numa deseducação intelectual e estética. Deseducar-se, seria então, para a juventude modernista de Drummond, a única alternativa para fugir ao destino da geração anterior, a que teria “morrido exausta antes de ter brigado”. O que fazer com esse legado modernista de empatia pelo outro, de curiosidade pelo Brasil e de reflexão crítica e desabusada nesse novo contexto de luta pelo controle político da mudança cultural que o Brasil está vivendo novamente? Não há por que ter medo da utopia e do trabalho coletivo por uma sociedade mais plural, mais igualitária, mais democrática. Esse, a meu ver, o principal e mais urgente legado de Mário de Andrade.

Arte de Joana Lavôr, gentilmente cedida para o Blog da BVPS pela artista

A imagem de Mário de Andrade que abre este post pertence ao acervo do Instituto de Estudos Brasileiro (IEB) da USP.

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