
No post de hoje, a coluna Interpretações do Brasil e poéticas publica um texto de Natasha Félix em que se cruzam observações sobre uma cena da poesia contemporânea e reflexões estéticas e culturais em torno da produção de imagens, políticas e poéticas da escrita, do corpo e da performance. Numa pequena nota crítica que antecede o texto, o editor da coluna Lucas van Hombeeck traça relações entre a contribuição de Natasha e outras publicações do blog, deixando ao fim uma pergunta acerca da forma pela qual o texto da artista interpela o problema dos requisitos culturais que habilitam o/a jovem a se apresentar como escritor/a, num processo histórico que vai do início do século XX até hoje.
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Boa leitura!
Nas suas observações sobre poetas negros em cena, Natasha Félix desenvolve, ao longo de treze fragmentos, o sentido de construção (“edificação”) do gesto de quebra reconhecido no trabalho de algumas de suas companheiras e companheiros de geração e em antecessores como Cuti e Carlos de Assumpção. O que se apresenta, no texto que segue, é uma positividade do ato de fragmentação de uma imagem reificada, que reduz o corpo negro à dor e ao sofrimento. As perspectivas abertas por ela, assim, se inscrevem e dão continuidade aos debates em torno da imaginação de formas de vida para além daquela exposta e “nua” diante da violência policial, como escreveu Allan Hillani neste blog, ou no sentido dos “mundos esporádicos, democracias anônimas, como as rodas culturais dos subúrbios”, nas palavras de Cláudio Medeiros e Pricila Telles nesta mesma coluna.
Dessa forma, é uma questão crítica interessante pensar de que maneira certa produção contemporânea retoma e dialoga com um projeto construtivo da poesia brasileira, cujo maior representante talvez seja o (ano passado) centenário João Cabral de Melo Neto, e seu jogo com a negatividade. Como o que se dá em “Uma faca só lâmina (ou: serventia das idéias fixas)”, um poema, à sua maneira, também sobre o desejo. Depois do “Edifício Esplendor” do século XX roído pelos ratos em Drummond (“Que século, meu Deus! – exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício”) que inspirou toda uma geração revolucionária depois da segunda guerra e da ditadura do Estado Novo, como a da Revista Edifício (1946) em Minas Gerais, Natasha busca erguer, com colegas e antecessores, um “novo edifício”.
Em introdução ao depoimento Silviano 8 1/2, recentemente publicado no portal do projeto minas mundo, o prosador Silviano Santiago escreveu que “durante o século XX, no Brasil, o requisito cultural que habilita o jovem a se apresentar como escritor comporta três fases distintas”: no seu início, passando pelo modernismo e até a década de 1940, era a leitura dos clássicos, o contraste com as vanguardas e o pensamento social; depois, a formação pelo cinema e a aliança entre palavra e imagem (em que o próprio crítico se situa); e por fim, durante a ditadura empresarial-militar, a “experiência coletiva do espetáculo” de televisão ou na rua, de música popular. Com o texto de hoje, podemos colocar a mesma questão em relação ao século XXI. Será um novo requisito a convivência e a experimentação de relações de produção mais horizontais e colaborativas, como as que emergem dos circuitos dos slams, rodas e oficinas?
POR ESSE DESEJO DE EDIFICAR LINGUAGENS
– observações sobre poetas negros em cena
por Natasha Félix [i]
A fuga só acontece porque é impossível
Jota Mombaça
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PARTIR JUSTAMENTE DISTO: a recusa ao se reconhecer habitante de um corpo mutilado – interceptado por silêncios coloniais, da árvore genealógica até a ordem dos dentes. encontrar outras maneiras de dar nome às coisas ao redor, à própria pele, ao gosto dos dias. porque muitos disseram e dizem ainda que não seria possível chegar a lugar algum, aqui estamos. mas, nesse corpo mutilado não.
há outras vias.
Stephanie Borges deu a letra: talvez precisemos de um nome para isso. Mover-se atravessado por um desejo profundo, com uma sequência de vigas firmes, de nomear o não dito e corromper qualquer tentativa de encarceramento, limitação e fim // através dessa plataforma de leitura: o corpo mesmo, à céu aberto, point para uma infinidade de personagens digladiarem-se, jogarem cartas, cuspirem no chão, se entediarem, rebolarem, fazerem festa.
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a cena é a seguinte: Felipe Marinho em sua apresentação no TED Talks 2020 / entre um poema e outro, questiona a utilidade da arte em meio às políticas de morte destinadas aos corpos pretos & periféricos. como produzir diante do genocídio?
ao seu próprio questionamento, responde:
a poética tem uma função muito importante de quebra de imagem.
Ele então fala mais um poema e deixa o palco.
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HABITAR O INEXPLICÁVEL. essa parece ser a ordem que dá sustentação ao desejo de performar. talvez seja sobre tomar forma e edificar novas linguagens – trazer à tona negritudes possíveis, assim mesmo, no plural. ser um corpo-hacker que se anuncia e se manifesta pela fala, pelas mãos, pelo digital. no baile, no samba, nas artes plásticas, nos beats. fazer o texto acontecer pela boca dos outros, pelo grito, pelo silêncio.
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aquela afirmação de Felipe cumpre uma dupla função: situar-nos justamente no marco 0 da angústia que atravessa um corpo que sente e comunica-se coletivamente, esse corpo indissociável do seu próprio tempo, perigando à imobilidade, ao aniquilamento dos sonhos; e mira na urgência em romper com os símbolos coloniais que delimitam quem pode fazer/performar/existir, e quem só pode ocupar-se em sofrer.
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ME PARECE QUE QUANDO UM POETA NEGRO estabelece a pesquisa com o seu próprio corpo, há, muitas vezes, a possibilidade de quebrar com imagens pré-definidas de si e romper com a expectativa daqueles que filiam-se e se retroalimentam de imaginários excludentes. Essa quebra de imagem não acaba na ruptura, na ação de aniquilamento. Na disputa de narrativas, ela existe para dar lugar às novas possibilidades de linguagem e estender não apenas a dimensão desses corpos em cena, mas também alargar o que entendemos como o fazer poético. de novo: o corpo-hacker. mais adiante, a partir da experimentação, quando deixa-se a deus dará, refém unicamente do pulso da sua performance, há a mobilização: O Outro vê – se assemelha, repele, esbraveja, ignora. O Outro se manifesta e se faz coletivo o jogo, a linguagem e o público, indissociáveis.
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o poeta negro em performance é um dispositivo que se manifesta contrário ao tempo determinado e algo se dissolve no ar.
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AQUI, frustrar expectativas é corromper a ideia de que a performatividade e a literatura produzidas por esses corpos devem ser restringidas ao campo da dor, do trauma e da violência.
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Enfim, sugerir novos enigmas.
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PENSO nos slams como um movimento que promove o desajuste da literatura com L maiúsculo. figuras como Bell Puã, Kika Sena, Kimani e Luz Ribeiro fazem do corpo o cenário e da voz, o triunfo. é sobre pulso, o corpo em pleno estado de eletricidade. Roberta Estrela D’alva define essa competição como “um espaço autônomo onde é celebrada a palavra, a fala, e, ainda mais fundamental num mundo como o que vivemos – a escuta”.
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PARA LEDA MARTINS, o corpo e a voz, quando utilizados em prol da performance, seriam “portais de inscrição de saberes de várias ordens”. o corpo inscrito no texto (e vice-versa) prolonga conhecimentos, propaga a linguagem e é a partir desse movimento, embebido de cosmologias diaspóricas, que a pesquisadora vai gestar o termo “oralitura”.
O significante oralitura, da forma como o apresento, não nos remete univocamente ao repertório de formas e procedimentos culturais da tradição verbal, mas especificamente, ao que em sua performance indica a presença de um traço residual, estilístico, mnemônico, culturalmente constituinte, inscrito na grafia do corpo em movimento e na vocalidade. (MARTINS, 2003, p. 77)
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podemos assumir que a fundação de novas imagens finca-se na ordem da urgência.
o álbum Quilombo de Palavras (1997) produzido por Cuti e Carlos de Assumpção, por exemplo, é atravessado por essa premissa. em um movimento muito singular, os artistas costuram a poesia falada às paisagens sonoras e constroem um imaginário que reivindica o poder da palavra para a negritude // Assumpção anuncia em sua leitura de Protesto: “não quero ser marginal/ quero entrar em toda parte”.
porque desejar entrar em toda parte, aqui, é também desejar não ser barrado, subestimado e interrompido.
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Em um país onde o projeto político substancial visa a todo momento a interrupção da nossa capacidade de sonhar, viver pelo impossível pode ser uma boa estratégia para romper com a violência anunciada. As investigações dessas vozes estabelecem um vínculo como o mundo que desemboca na quebra, na transgressão. No novo edifício.
A imagem que ilustra o post é uma fotografia da poeta e slammer Kimani, por Sérgio Silva, gentilmente cedida pelo autor.
BIBLIOGRAFIA
ESTRELA D’ALVA, Roberta. 2011. Um microfone na mão e uma ideia na cabeça – o poetry slam entra em cena. Synergies Brésil n° 9: 119-26.
MARTINS, Leda. 2003. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Língua e Literatura: Limites e Fronteiras, nº 26: 63-81.
MOMBAÇA, Jota. Veio o tempo em que por todos os lados as luzes desta época foram acendidas.
BORGES, Stephanie. Talvez precisemos de um nome para isso.