
O Blog da BVPS publica hoje o primeiro de quatro posts do simpósio 22: Projetos para o Brasil, uma parceria com o GT de Pensamento Social no Brasil da Anpocs e o Suplemento Pernambuco. Às vésperas do bicentenário da Independência política do Brasil e do centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo procuramos sugerir reflexões, a partir dos desafios do presente, sobre esses dois eventos/processos que marcam a história política e cultural do país.
Enviamos 4 perguntas propondo relações sobre os temas centrais do ano que vem a profissionais de diferentes áreas, regiões do país e instituições. As 28 respostas recebidas – de um conjunto maior de convites realizados – serão publicadas em 4 grupos durante esta semana, de hoje até sexta-feira. A organização é de Andre Bittencourt (Blog da BVPS), Maurício Hoelz (GT de Pensamento Social da Anpocs) e Schneider Carpeggiani (Suplemento Pernambuco)
Para ler a apresentação geral escrita pelos coordenadores do simpósio e publicada ontem, basta clicar aqui. Para acompanhar as atualizações do Blog, siga nossas páginas no Instagram e no Facebook.
Hoje teremos como convidadas/os:
Nísia Trindade Lima, professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). É a atual presidente da Fiocruz. Autora, entre outros, de Um Sertão Chamado Brasil (2013).
Maria Arminda do Nascimento Arruda, professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Autora, entre outros, de Metrópole e cultura em São Paulo no século XX (2015).
Simone Meucci, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Autora, entre outros, de Artesania da sociologia no Brasil: contribuições e interpretações de Gilberto Freyre (2015).
Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e editor do Brazilian Journal of Political Economy. Autor, entre outros, de A construção política e econômica do Brasil (2021).
Rafael Zacca, professor no Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É poeta e crítico e publicou, entre outros, Formas nômades (2021).
Raúl Antelo, professor titular aposentado de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Presidiu a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC). Autor, entre outros, de A máquina afilológica (2021).
Ruben George Oliven, professor titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da Academia Brasileira de Ciências. Autor, entre outros, de A Parte e o Todo: a diversidade cultural no Brasil-nação (1992).
1. Em 2022 completa-se o bicentenário da Independência brasileira e o centenário da Semana de Arte Moderna, marco simbólico do modernismo. Como você relacionaria esses dois eventos/processos?
Nísia Trindade Lima: A constituição do Estado Nacional no Brasil tem como marco a Independência política em relação a Portugal, em 1822. Entretanto, a formação de um pensamento social e político autônomo e o desenvolvimento intelectual, artístico e cultural, de forma crítica e independente, encontra expressões que antecedem aquele marco e também que indicam tensões ao longo do século XX e do atual. Como construir uma nação independente em um país marcado pela escravidão dos povos de origem africana e que mantém as bases de grande desigualdade social e de exclusão da maioria da população?
A Semana de Arte Moderna ocorreu no período de comemorações do centenário da Independência, em uma década caracterizada por projetos de construção de um Brasil Moderno, sendo que os sentidos atribuídos a esse termo “moderno” estavam permeados por forte disputa. Entendo a relação dos dois eventos a partir da reflexão profunda, tanto no campo estético, quanto no social e político que ocorreram na década de 1920 do século passado. Penso, junto com tantos outros autores, que o modernismo não deve ser visto apenas com referência à Semana, mas como um movimento mais amplo no tempo e em diferentes espaços. Desse movimento destaco a imaginação do passado e de futuros possíveis para o Brasil.
Maria Arminda do Nascimento Arruda: No bojo das efemérides da Independência do Brasil e da Semana de Arte Moderna em São Paulo, vários eventos comemorativos têm sido organizados. Destinados a rememorar o bicentenário da nossa autonomia política e o centenário da chamada ruptura cultural modernista, é interessante constatar que parte das iniciativas tendem a sugerir a existência de uma relação entre os dois acontecimentos. Distantes por um século, a proclamação da Independência Política do Brasil, em 1822, e a Semana de Arte Moderna em São Paulo, em 1922, parecem guardar relações remotas. Nesse sentido, a questão proposta exprime mais as percepções atuais sobre esses movimentos, do que um enleio necessário entre eles. Dito de outra forma, a pergunta sugere que os dois eventos foram marcos históricos, por terem sido produtos de projetos de descolonização, seja política, com a ruptura do nexo colonial que criou condições para a construção da nação; seja cultural, com o descongelamento das linguagens, a legitimação da experimentação e a assimilação, segundo andamento próprio, das propostas vanguardistas dos centros hegemônicos. A geração modernista – que se reuniu no Teatro Municipal da capital paulista – construiu uma nova gramática, que impregnou o conjunto das linguagens: das artes plásticas, da literatura, da produção intelectual, da arquitetura, da música erudita e popular. Nesses termos, as aproximações sugeridas entre a Independência e as vanguardas dos anos 1920 norteiam-se por uma perspectiva evolutiva, ou seja, atribui-se à segunda o papel de completar o processo de autonomização, quando a esfera cultural passou a girar em eixo próprio.
Essa concepção de que a formação da nação se concluiria apenas cem anos após a autonomia política não foi infensa aos próprios vanguardistas, haja vista o compromisso em representar o país e as suas particularidades, presentes nas preocupações de Mário de Andrade com a cultura popular, nas pesquisas sobre o abrasileiramento da nossa linguagem artística, especialmente nas suas análises sobre o barroco mineiro. O que havia de comum entre os dois eventos estava identificado com a noção de construção da nacionalidade que, no oitocentos, aparecia sob o tema da civilização que recobria um arco de questões e se expressava em orientações variadas, frequentemente díspares. Já no final do século, particularmente nos primeiros anos do seguinte, aparece a escrita dos desiludidos, a exemplo de Euclides da Cunha em Os Sertões, cuja experiência de Canudos o leva a reconsiderar a sua identificação com as promessas da civilização, passando a entendê-las no prisma da tragédia civilizacional. A questão que marcará o período posterior será redefinida sob o signo da modernização social e do modernismo no âmbito da cultura. Muda-se o problema e o peso do passado faz sombra sobre as nossas reais possibilidades de nos inserirmos nos quadros da modernidade.
Não por casualidade, durante as comemorações dos cem anos da Independência, as celebrações mudaram a paisagem do Rio de Janeiro e de São Paulo, segundo um projeto de modernização urbana nas duas cidades. As obras realizadas na capital da República chegaram ao ponto de demolir o Morro do Castelo, local de instalação da Grande Exposição Universal, visitada por importantes chefes de Estado. No mesmo sentido, parte da estatuária artística de São Paulo foi erigida durante as celebrações. O Monumento da Independência, obra do artista ítalo-brasileiro Ettore Ximenes, foi projetado para o parque do Ipiranga, e instalado na frente do Museu Paulista, instituição concebida para afirmar o legado de São Paulo na formação da nação; o Monumento às Bandeiras, obra monumental encomendada ao escultor modernista Victor Brecheret, apesar de ter sido inaugurado apenas em 1954, na ocasião do IV Centenário da cidade de São Paulo, havia sido pensado para os festejos da Independência, numa espécie de representação grandiosa da história local, apreendida em linguagem modernista.
Nesse contexto, a denominada Semana de Arte Moderna legitimava-se tanto como um acontecimento que assinalava a autonomia artística e cultural do país, quanto como uma afirmação da precedência de São Paulo no processo de renovação. Nesse andamento, havia uma aproximação pretendida pelos próprios contemporâneos, o que, per se, já suscita indagações, uma vez que aludem a projetos comuns, isto é, entre as elites dominantes, os intelectuais e os artistas, comumente oriundos da mesma camada social, embora pudessem representar uma fração culturalmente radicalizada. Desse modo, apesar de a cultura estar longe de ser um terreno neutro, pois se movimenta num campo de disputas e de conflitos presentes na cena social, percebe-se uma confluência de propósitos entre elites dominantes e a intelectualidade nativa. Tendo em vista que as questões fundamentais do pós-Independência identificavam-se com a necessidade de construir os suportes da nação, em um contexto no qual o Ocidente moderno orientava-se por princípios opostos aos da sociedade brasileira do século XIX, os projetos de modernização social em todas as esferas, mesmo a despeito do seu caráter elitista e oligárquico, marcaram a época das comemorações. O Modernismo é componente dessa dinâmica, pois as vanguardas são fruto do processo da complexificação da estrutura social, da diferenciação interna da classe dominante, da imigração, da metropolização, enfim, do processo de modernização que se acentuava, do qual a esfera da cultura é parte integrante.
Simone Meucci: Distantes 100 anos, ambos eventos dizem respeito à constituição do Brasil enquanto nação. São episódios entrelaçados que compõem – ao lado da Abolição do Trabalho Escravo (1888) e da Proclamação da República (1889) – marcos significativos do longo (e trôpego) processo de invenção de um país.
Numerosos fatores concorreram para este processo. Externamente podemos assinalar que a Independência do Brasil se vincula à crise do imperialismo português na última década do século XVIII e aos condicionantes da geopolítica europeia e o modernismo está relacionado mais imediatamente à emergência das vanguardas artísticas no contexto pós I Guerra Mundial. Há também os processos interiores de complexificação da sociedade brasileira que foram imperativos, nos dois períodos, para emergência de novos agentes e expectativas sociais que pretendiam a autonomia legal e simbólica do país.
Nesse sentido, os dois eventos, ainda que distantes, parecem se relacionar às dinâmicas de esgotamento (que encontram justificativas internas e externas) dos modelos tradicionais de justificação e representação da vida social e aos processos de expansão do ideário moderno no campo da política e da cultura. São eventos, cada um em seu tempo, que interpelaram o processo histórico instituindo um campo de possibilidades (e também os limites) institucionais e cognitivos para o Brasil nascente.
A Independência e a Semana de Arte moderna referem-se respectivamente à dimensão política e a dimensão cultural deste processo de emancipação e podem ser entendidas como arenas privilegiadas nas quais ocorreram disputas cruciais relativas à constituição da ossatura institucional do Estado e à elaboração dos ideais de cultura e sociedade.
Luiz Carlos Bresser-Pereira: A Independência brasileira de 1822 não transformou o Brasil em um Estado-nação independente. A partir desse ano até 1930, o Brasil foi uma semicolônia, primeiro do Reino Unido e da França; depois, dos Estados Unidos. Durante o Império e a Primeira República, os “centros de decisão” sobre as políticas públicas não estavam aqui, mas no exterior. As elites econômicas e políticas não se sentiam “brasileiras”, mas brancas europeias. Sua identidade básica não era com o povo mestiço, analfabeto, pobre, e, naquele tempo, escravo, mas com as elites econômicas e intelectuais dos países ricos. Nada estava mais longe dessas elites do que um projeto nacional de desenvolvimento. Havia nelas um complexo de inferioridade colonial – a admissão de uma inferioridade cultural básica – que as levava a aceitar sem crítica o liberalismo econômico que o Norte impunha – um liberalismo incompatível com o desenvolvimento do Brasil. Em 1822, o Brasil se tornou uma sociedade independente, mas essa independência não significou que tenhamos construído uma nação.
Nos 100 anos seguintes, o Brasil procurou se “modernizar”, mas não fez a revolução nacional e industrial que fizeram os países centrais para alcançar a modernidade e, no plano das artes, fazerem a revolução modernista.
Nesse quadro, em 1922, aconteceu a Semana de Arte Moderna – um movimento social que é geralmente visto como o marco do modernismo brasileiro. Um modernismo sem modernidade? Um modernismo transplantado como foi também o liberalismo local? Um modernismo postiço?
É significativo que a Semana de Arte Moderna tenha sido realizada em São Paulo – o estado da federação que se industrializara desde o final do século XIX e se transformara no estado mais rico e mais moderno do Brasil. Um estado que se industrializou, enquanto suas elites, presas ao café, se declaravam liberais e afirmavam que o Brasil era um país essencialmente agrícola.
A Semana de Arte Moderna aconteceu nesse quadro. Foi um modernismo sem modernidade. Foi trazido da Europa por artistas brasileiros que compreenderam a liberdade de criação que o modernismo lhes proporcionava – por artistas críticos e irreverentes que viviam as profundas contradições da sociedade brasileira. E produziu um anti-herói – Macunaíma – o herói sem caráter.
Rafael Zacca: Geralmente assumimos mais o inacabamento de eventos no mundo da arte do que de processos políticos historicamente situados.
A Semana de Arte Moderna aparecerá, em alguns discursos, como a semana que não terminou, merecendo por isso consideração crítica. O processo histórico da Independência provavelmente receberá outro tipo de acolhida: será tratado como evento passado, merecendo não exatamente acabamento, mas celebração (por parte do Estado) ou revisão crítica.
Como eu relacionaria esses dois eventos / processos? Aproveitaria a coincidência das efemérides para confundir um pouco essas modalidades de recepção. A Independência não terminou – é preciso desdobrá-la e realizá-la, como um crítico faz com as obras (no sentido que a crítica tem quando não é julgamento, mas realização das obras, como queriam os românticos de Jena).
A Semana de Arte Moderna é coisa do passado. É preciso esquecê-la. Esse esquecimento, porém, não pode ser acrítico, como um gesto de rebeldia vazia em favor de uma ideia de pura novidade. Em verdade, um esquecimento acrítico, em favor do novo, não pode elaborar o passado, nem o abandonar. Porque apenas o recalca. É preciso esquecer, mas para recolocar o modernismo. Por exemplo, apropriar as suas categorias estéticas para o plano epistemológico. O modernismo como uma forma de saber.
Raul Antelo: O termo independência requer exame. Sob uma perspectiva de esquerda, a independência conota o absoluto, por isso melhor diria a emancipação, que pressupõe a interdependência. Conceito, embora medieval, elaborado no século XVIII por Joseph Jacotot, recorrente nos trabalhos de Laclau ou Rancière, a emancipação (de manus, poder, e capere, tomar, porém, ex-, por fora, com um certo arrebato ou violência) representa um luto da ideia de Revolução, que é um modo radicalmente moderno e ilustrado de interpretar o vínculo entre uma vontade coletiva, uma convicção política e uma perspectiva de classe. Trata-se então de fazer girar a base mesma da política e expô-la à sua própria ausência de fundamento. O primeiro gesto, portanto, dessa emancipação pós-revolucionária pressupõe o abandono de toda perspectiva de metafísica histórica. Ela já não possui qualquer certeza, não só de sucesso, mas até mesmo de método ou via, de fórmula ou regime, com os quais avançar. Nada é absoluto, a não ser a pura contingência, construída a partir da linguagem, patrimônio comum em que habitamos. É justamente no campo da linguagem que os dispositivos do atual regime neoliberal trabalham, com efeito, para minar as heranças simbólicas e imporem a deshistorização, a naturalização, a desproblematização das sociedades. Eles operam em um “estado de exceção”, que se apropria da forma democracia para expandir, globalmente, sua lógica depauperada. Trata-se, a rigor, de um semblante de democracia que exclui qualquer setor popular que ensaie um modo soberano de experimentar o destino comunitário e implanta, em seu lugar, aquilo que Lacan chamou de segregação ramificada e reforçada, que só multiplica, exponencialmente, as barreiras, disseminando esterilidade. Não é, como em 1922, tão somente um modo de exploração das oligarquias dominantes. A atual situação vai além. É uma vontade ilimitada de destruição planetária, até mesmo da vida, que não se esgota em mineração irresponsável, derrubada de florestas ou contaminação fluvial, mas pode incluir, como constatamos a diário, a eliminação física de vastas parcelas de população. O neoliberalismo não somente reprime, ele configura subjetividades, dependências, marcos de conduta, paradigmas intelectuais ou corpóreos, que garantam a servidão voluntária.
Ruben Oliven: Em 1922 ocorreram não somente o centenário da Independência e a Semana de Arte Moderna. No mesmo ano, houve a primeira revolta tenentista, foi criado o Partido Comunista do Brasil e o grupo musical Os Oito Batutas, formado por negros, viajou para Paris onde permaneceu por seis meses.
Naquela época, o exército brasileiro era uma das poucas instituições nacionais e seus membros circulavam por todo o território e tinham uma noção do Brasil como país. As revoltas tenentistas refletiam um mal-estar de oficiais jovens que pensavam que era preciso encontrar um rumo para esse país, mas tinham propostas difusas em relação a um projeto de nação. No começo do século passado não existiam partidos nacionais no Brasil, e o PCB foi o primeiro partido ao mesmo tempo brasileiro e internacional (na medida em que era filiado à Internacional Comunista). Isto trazia a perspectiva do Brasil como um país inserido no mundo. Já a viagem dos Oito Batutas a Paris, que foi cercada de várias polêmicas, assinalou a presença da música popular brasileira composta e executada por afrodescendentes na Cidade Luz, que era considerada o epicentro da moderna cultura européia, ao mesmo momento em que artistas como Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral passaram temporadas na capital francesa, mostrando as realizações modernistas.
2 – Quais realizações desses movimentos na política, na cultura e na sociedade brasileira devem ser comemoradas ou questionadas?
Nísia Trindade Lima: O repertório de ações e ideias relacionados a esses movimentos devem ser mais pontos para reflexão crítica e questionamentos do que propriamente comemorações. Trata-se de eventos bons para se pensar o Brasil, seu passado e imaginar o futuro.
No que se refere à Independência política, um fato da maior importância e consequências posteriores foi a constituição de um Estado Nação único, ainda que marcado pelos conflitos regionais e locais, tal como vem sendo amplamente discutido pela historiografia. A compreensão desses conflitos e seu papel nos anos que se seguiram até a Proclamação da República e nos anos posteriores permanece como grande desafio para a elaboração de projetos de país. Ao mesmo tempo, e de forma coerente com movimentos históricos no cenário internacional, apenas na constituição de 1988 reconheceu-se o caráter multiétnico do Estado Brasileiro, com destaque para o reconhecimento do direito dos povos indígenas.
As comemorações do centenário da Independência e o surgimento do movimento modernista, um movimento cultural, como acertadamente propõem os trabalhos de André Botelho e Maurício Hoelz, trazem à tona a diversidade cultural brasileira e a possibilidade de uma visão mais plural sobre nossa experiência histórica. Como outros autores, prefiro pensar em modernismos e não em uma versão única sobre a Semana de Arte Moderna e outras expressões desse movimento mais difuso. Para não dizer que não há o que comemorar, celebro a qualidade estética de trabalhos nas artes plásticas, na literatura e no pensamento social que vieram à luz nos anos 20 do século passado. E também a inquietação e efervescência cultural daquele período de grande inventividade nas artes, no pensamento social e na política.
Maria Arminda do Nascimento Arruda: A resposta a essa questão está longe de ser simples. Toda comemoração é um momento propício à crítica e ao redimensionamento das concepções que se cristalizaram sobre acontecimentos marcantes da história de um país. Há camadas sucessivas de interpretações que vão se depositando e passam a ser vistas como substâncias inquestionáveis. Comemorar é rever, procedimento informado por problemas do presente. Comemorações, então, não podem assumir o caráter de celebração, mas, antes, de questionamento, em busca de projetar caminhos futuros. A Independência política do Brasil, como analisou o historiador Fernando Novais, foi o movimento mais conservador em toda a América Latina, pois preservou a monarquia e manteve a escravidão, sem alterar decisivamente a estrutura da sociedade. Em larga medida, o tradicionalismo e o conservantismo que tipificaram as camadas dominantes no país não sofreram abalo com a autonomia política. É possível conjecturar se o descompromisso das classes dominantes com os rumos da nação no Brasil de hoje não tem raízes na mentalidade privatista e de manutenção de privilégios que, sob formas transformadas, tiveram origem no modo como se realizou a construção da nação. Pode-se afirmar que a bibliografia tem revisto o modo como se pensou o movimento da Independência e chamado a atenção para os deserdados e invisíveis, os esquecidos, como negros, indígenas, mulheres, camadas populares, verdadeiras lacunas nas explicações canônicas.
O modernismo foi, de fato, um movimento de renovação da cultura no Brasil, ao mesmo tempo em que construiu retratos expressivos da nossa realidade. Nesse sentido, contribuiu para a afirmação da nossa cultura, por ter representado as nossas particularidades, delineando os contornos da tão questionada identidade brasileira. Especialmente os ensaios de interpretação do Brasil são muito representativos dos problemas considerados fundamentais ao entendimento da nossa vida social, marcaram o modo como nos concebemos e elucidaram o enigma de “o que faz do brasil, Brasil”, para acompanhar a feliz expressão de Roberto da Matta. Os ensaios de interpretações do Brasil, concebidos segundo o paradigma da formação, têm sido questionados por interpretações atuais. O mesmo acontece com a crítica sobre a hegemonia paulista na formulação das linguagens das vanguardas. Há toda uma literatura que tem revisto essa construção, revelando que o movimento foi muito mais complexo e disseminado pelo país.
Simone Meucci: A Independência do Brasil foi um processo complexo que compreendeu movimentações políticas com ritmos distintos em cada região e que se caracterizou por conflitos e ações contraditórias no enfrentamento dos impasses para organização política do país. Houve disputas acerca do modelo político a ser adotado, se de centralização ou descentralização administrativa. Essa controvérsia, articulada a argumentos que relacionavam a forma administrativa aos binômios modernidade-atraso, realismo-idealismo e (depois) autoritarismo-democracia, orientou as alternativas políticas ao longo da história republicana do país.
Creio ser importante também destacar que, no contexto da América Latina, a Independência do Brasil foi um episódio sui generis, na medida em que manteve dois fundamentos importantes do período colonial: o regime político monárquico e a escravidão. Isso quer dizer que as formas de justificação e organização da autoridade e da produção mantiveram-se intactas, inscrevendo limites para modernização institucional e para constituição de novos laços societários. A vontade de autonomia e os impulsos para a modernização não ultrapassaram as barreiras mais decisivas, fazendo de nossa história uma trama composta de alguns avanços enredados em muitas permanências.
Com efeito, as ambiguidades deste processo histórico se expressaram de modo notável na produção artística do século XIX, cujos artistas, de modo geral, assumiam a tarefa de elaborar uma identidade promissora para o país tomando de empréstimo ideais burgueses, ainda que constrangidos ao silêncio em relação à escravidão. Havia, pois, no campo da representação artística, e também política, um descolamento da sociedade para inventar um ideário de nação moderna.
O modernismo dos anos de 1920, por sua vez, visto para além da Semana de Arte Moderna de 1922 e entendido no campo mais abrangente da cultura (incluindo aí ciência, educação e jornalismo) pode ser entendido como um movimento cuja reivindicação principal foi exatamente o compromisso com os problemas do país. Foi um movimento que surgiu na crise da I República e que pretendia enfrentar sob outra perspectiva os entrelaces entre tradição e modernidade.
O encontro com a “realidade brasileira” passou a ser uma obsessão e a sociedade passou a ser positivizada. Isso se verificou tanto na caracterização de personagens ficcionais e na linguagem oralizada da literatura, quanto na seleção de conteúdos para manuais didáticos; tanto na justificação de ações políticas autoritárias quanto na elaboração de uma nova representação do negro na sociedade.
O modernismo, visto desta perspectiva, teve enorme capilaridade e capacidade de institucionalização. Não esqueçamos que são legados do modernismo não apenas obras de arte e ensaios históricos-sociológicos, mas também instituições a exemplo do Instituto de Patrimônio Histórico Nacional e o Ministério da Educação. Com efeito, não podemos esquecer que os ideais e agentes do modernismo foram parte integrante do Estado, especialmente no pós Revolução de 1930 e no Estado Novo e isso se deve ao encontro da vontade política com a potência criadora e inovadora modernista.
Luiz Carlos Bresser-Pereira: A Independência precisa ser sempre celebrada, não porque ela tenha sido bem-sucedida; mas sim, porque os brasileiros dramaticamente precisam voltar a ter uma nação. O Brasil realizou sua revolução nacional e industrial entre 1930 e 1980 sob a liderança de um estadista nacionalista – Getúlio Vargas. Nesses 50 anos, o Estado brasileiro se tornou um Estado nacional-desenvolvimentista e foi palco de uma grande modernização. Nos anos 1980, porém, viveu uma grande crise econômica – a crise da dívida externa e da alta inflação inercial. Em 1990, submeteu-se ao imperialismo americano, voltou à condição semicolonial, e caiu na armadilha da liberalização. Assim, os últimos 40 anos foram de quase-estagnação.
A Semana de Arte Moderna também precisa ser celebrada porque, já nos anos 1930, ela abriu espaço para uma literatura, um teatro e uma música nacionalistas. Comprometidas com a construção da nação. Mas desde a transição democrática em 1985 e a virada neoliberal em 1990, os brasileiros perderam a ideia de nação.
Rafael Zacca: Há algo de inacabado na Independência. Ela não é um processo terminado. Afirmar que o Brasil ainda é uma colônia talvez ajude a compreender tanto o quadro em que são travadas as disputas eleitorais entre esquerda e direita na Nova República quanto as posturas artísticas diante do nacional e do estrangeiro.
A Independência, mais que um processo de ruptura, marca uma continuidade com a era colonial. A distância histórica e a visada do ponto de vista dos marginalizados apagam o borrão que camufla essa linha. Dito de outra forma: a Independência – tanto quanto a Proclamação da República – realizam, desde um ponto de vista da história a contrapelo, procedimentos estéticos que escamoteiam continuidades históricas.
A antropofagia, por exemplo, certamente tem uma origem que não remonta à colônia, mas em certo sentido ela se tornou uma categoria pós-colonial ao argumentar, simultaneamente, uma singularidade brasileira (a antropofagia nos une), um papel autônomo no concerto das nações (a antropofagia une o mundo em nós) e uma nova economia dos dados (só nos interessa o que não é nosso).
Por outro lado, talvez a Semana de Arte moderna tenha se tornado algo do passado, merecendo enterro e descanso. Pelo menos momentaneamente. Celebração e revisão crítica, certamente. E só. Por outro lado, as categorias que surgiram em seu seio deveriam começar a ser transpostas para a investigação de fenômenos históricos e sociais. Suas descobertas são também epistemológicas, e não apenas valores inscritos num determinado período histórico.
A Semana de 1922 talvez tenha uma palavra ou outra a dar no (inacabado) processo de Independência. Principalmente no ruído promovido entre as diferentes posições no movimento.
Raul Antelo: A atitude revolucionária (a antropofagia, claro, mas também Prestes, Marighella) buscava a universalidade da sociedade brasileira, sem classes, dissolvendo, definitivamente, o momento hegemônico. Hoje, porém, compreendemos que a lógica emancipatória, se pretende abandonar o mundo neoliberal, entregue a suas próprias pulsões mais primárias, deve incluir a hegemonia, como aquele elemento “real”, que nunca se dissolve, verdadeiro sintoma de qualquer construção política. Por isso, o momento pós-hegemônico deve trabalhar numa “poética de montagem” que defina, a cada momento, com que se avança e a que se renuncia sem dó. Afinal, em Memórias sentimentais de João Miramar, lemos que o Brasil vive, desde a idade trevosa das capitanias, em estado de sítio. “Somos feudais, somos fascistas, somos justiçadores”. Paralelamente, em A hora da estrela, somos informados que a história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Isso significa que devemos abandonar Oswald e Clarice como escritores “hegemônicos”, alinhados às classes dominantes? De forma alguma. Nem o dispendioso bon-vivant, nem a acomodada mulher de diplomata são adversários na luta pela emancipação. Antes, pelo contrário.
Ruben Oliven: A Semana de Arte Moderna é um dos mitos fundadores do Brasil-nação. Ela criou a ideia de um Brasil que se inspirava na Europa e queria ser moderno, e ao mesmo tempo se via como único e impossível de ser reduzido a categorias racionais. O movimento modernista brasileiro, com toda sua complexidade e diferenciação ideológica, é frequentemente apontado como um divisor de águas. Por um lado, representa a reatualização do Brasil em relação a movimentos culturais e artísticos que ocorriam no exterior; por outro lado, implicou também buscar nossas raízes nacionais valorizando o que haveria de mais autêntico no Brasil. Uma das contribuições do movimento consiste em ter colocado tanto a questão da atualização artístico-cultural de uma sociedade subdesenvolvida quanto a problemática da nacionalidade.
O que merece ser comemorado em 2022 é, em primeiro lugar, o fato de sermos uma nação independente com uma sociedade dinâmica. Em segundo lugar, o fato de termos uma cultura diversificada, o que se deve em parte ao “descobrimento do Brasil” pelos intelectuais paulistas que, apesar de um certo bairrismo, se deram conta de que para serem internacionais eles tinham primeiro que ser nacionais. Isto fica marcado pelo fato de Mário de Andrade ter se transformado em um “turista aprendiz”, desenvolvendo uma intensa atividade de pesquisa e viagens visando estudar os elementos que compõem a cultura brasileira. E, além disso, pelo Manifesto Antropófago em que Oswald de Andrade proclama que a modernidade brasileira se caracterizaria por saber ingerir e digerir criativamente o que vem de fora.
3. Que projetos para o Brasil e momentos decisivos da história relacionados à Independência política e ao modernismo como movimento cultural você destacaria?
Nísia Trindade Lima: Eu destacaria dois projetos: o dos educadores com seu projeto de inclusão (ainda que o termo não fosse utilizado à época) e o do patrimônio cultural artístico nacional.
De volta aos anos 20 do século passado, gostaria de destacar o projeto dos educadores, no que ficou mais conhecido como Escola Nova. Penso ser um movimento de grande importância ao lidar com a desigualdade social no Brasil e a possibilidade de promover inclusão social, entre outros fatores, através da educação. Foi um dos movimentos que mais se apoiou em uma visão democrática da sociedade e de promoção de pensamento crítico. Há muita divulgação do chamado manifesto dos pioneiros, de 1932, porém o início dos anos 20 foi marcado por reformas educacionais em diferentes estados e que tinham uma certa convergência com o ideário da chamada educação nova. Deve ser registrado que no Brasil dos anos 20 do século passado o contingente de analfabetos estava em torno de 70% da população.
Relacionado de forma mais direta ao modernismo como movimento cultural eu destacaria a política de patrimônio nacional e o papel de Mário de Andrade nessa construção institucional. A despeito das várias revisões críticas desse projeto, ele traz, a meu ver, uma visão mais generosa, ampla e inquieta sobre o Brasil, sua memória, ou seja, o passado que deve ser valorizado, e, sobretudo, sua diversidade. Está presente aqui também a crítica à reificação do progresso e ao próprio conceito de moderno.
Maria Arminda do Nascimento Arruda: Sobre a Independência, destaco a geração que construiu projetos civilizatórios, ao mesmo tempo em que revelou os problemas de sua realização num país para o qual os princípios modernos eram estranhos. A geração de 1870 é representativa nesse sentido. Quanto ao Modernismo, ressalto o seu papel na criação de uma nova consciência do País, vista nos ensaios sobre a formação, que persistem como problema de pesquisa em diversas gerações.
Simone Meucci: Quero chamar a atenção para o campo da educação. Pretendo demonstrar os limites nos quais se inscreveram a universalização da instrução escolar no Brasil. Vejamos como isso se expressou nas leis:
A primeira Constituição do país, a de 1824, afirmava que “a instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”. Considerando que os escravos não eram cidadãos, a Carta ratificava a exclusão de parte significativa da população das escolas. Segundo o Censo de 1872 – o primeiro a contabilizar escravos -, a população cativa representava 15, 24% do total de habitantes.
O Ato Adicional de 1834 que criou as Assembleias Provinciais e orientou a descentralização do sistema administrativo (contrariando a Constituição), foi o marco determinante para a conformação da fragmentária legislação da educação pública no Império. Ali se estabeleceu que métodos, conteúdos, organização escolar e pré-requisitos para matrícula ficariam a cargo das províncias.
A historiografia educacional está, nas últimas décadas, pormenorizando esta legislação provincial, mas já é evidente que, entre os anos de 1835 e 1850, as leis locais não admitiam matrículas de crianças cativas em escolas públicas. Apenas na década de 1870 com a regulamentação que aprovava existência das escolas noturnas e as iniciativas que gradualmente pretendiam extinguir a escravidão (a lei dos nascituros e dos idosos), é que surgiram regulamentações que afrouxavam condições de acesso dos escravos aos bancos escolares públicos.
Com efeito, durante o período imperial não houve a implementação de um sistema escolar público, universal e integrado. Houve um sistema disperso que sequer oferecia escolas em todas as cidades do país. Essa pouca importância dada à educação pode ser inclusive observada na ausência de uma instituição central específica para coordenação e supervisão da educação. Apenas em 1931 é que surgiria o Ministério da Educação. Importante também lembrar que a Abolição tampouco veio acompanhada de um projeto de inclusão educacional. Isso ironicamente expressa um projeto.
Nos anos de 1920, creio que houve um momento decisivo para transformar a direção desta marcha histórica e que foi, porém, desperdiçado. A fundação da Associação Brasileira de Educação (ABE) em 1924 demarca o surgimento de um movimento social que, em diferentes episódios do século XX, reivindicou uma educação laica, gratuita e universal para o Brasil. Suas demandas eram também referidas à profissionalização dos educadores. E ainda que o projeto para educação pública tenha encontrado barreiras poderosas (entre as quais a Igreja Católica), podemos dizer que os escolanovistas foram artífices de muitas obras: não esqueçamos que institucionalizaram as Ciências Sociais no Brasil criaram a Capes e o INEP, por exemplo. Nesse sentido, penso que as conexões entre escolanovismo, modernismo e sociologia foram fecundas e mostram as articulações possíveis entre política, educação, arte e ciência no período.
Luiz Carlos Bresser-Pereira: O Brasil não tem um projeto nacional de crescimento desde 1990 – ano em que voltou a se subordinar ao imperialismo do Norte ao adotar o liberalismo econômico e as reformas neoliberais. E desde então sua economia está semiestagnada.
Depois da transição democrática, com a Constituição de 1988, os brasileiros passaram a ter um projeto de distribuição cuja maior contribuição foi o Sistema Unificado de Saúde, mas distribuição sem crescimento é inviável. A grande crise dos últimos oito anos interrompeu esse projeto.
Desde as grandes manifestações de junho de 2013 o Brasil se dividiu radicalmente e foi tomado pelo ódio. Desde o impeachment de 2016, mergulhou em um liberalismo econômico radical; e, no final de 2018, elegeu como presidente da República um neofascista neoliberal.
Hoje o Brasil é uma quase-nação sem projetos.
As artes podem ajudar a sociedade brasileira a sair desse impasse? As artes são atos de criação livres que muitas vezes antecipam a história. A Semana de Arte Moderna antecipou a revolução nacional e industrial iniciada em 1930.
Hoje os artistas estão tão perplexos quanto o resto da sociedade brasileira diante da falta de projetos. Mas eles são sempre uma esperança.
Rafael Zacca: Talvez seja preciso tomar a Independência e o modernismo como ideias: elas se incarnam, mais ou menos bem acabadas em cada fenômeno concreto, inclusive (mas não apenas) nos processos históricos que culminam em 1822 e 1922. Nesse sentido, esses eventos dão a ver essas ideias, que podem ser recolocadas de diferentes maneiras.
A Independência política e o modernismo como movimento cultural ganham a sua expressão mais interessante, a meu ver, quando conseguem triangular três aspectos políticos/estéticos: reivindicação de autonomia; reforma das relações de poder e propriedade; e fusão de formas éticas e estéticas distintas (e muitas vezes antagônicas). E, é preciso dizer, quando se combinam em função de uma utopia (de país). É o que acontece, por exemplo, com movimentos artísticos posteriores a essas datas, como no tropicalismo.
É o que acontece também com três eventos históricos que podemos remontar à Independência e ao modernismo: a pedagogia de Paulo Freire, o Movimento dos Sem-Terra e a Ocupação das Escolas em 2015.
Neles, os ideais de autonomia (do oprimido), comunhão pela reforma (das relações de poder no espaço) e sincretismo (de formas éticas e estéticas singulares) se unem a uma utopia de país como em nenhum outro momento histórico recente. Essa tríade utopicamente informada também estava presente nos desejos mobilizados em 1822 e 1922.
Raul Antelo: Inclino-me sempre por uma leitura arqueológica que lê o futuro anterior, isto é, as promessas de futuro ainda encapsuladas no passado. Se recuo à década de 20, gostaria de me deter no filósofo espanhol (ou antes, catalão, porque a questão occitana é central para entender seu pensamento), Eugenio d’Ors, teórico do barroco. Em 1925, ele celebra o centenário da independência boliviana, síntese de toda América Latina. Reconhece, no país, uma elite ilustrada, muito cosmopolita e, frente a ela, uma minoria passiva (usa, aliás, o mesmo adjetivo que Flávio de Carvalho, quando visita a região em 1947). E mesmo que essa passividade não signifique, necessariamente, resistência, sempre há, no confronto, uma dificuldade e uma “dramática simetría: dos contra dos”. D’Ors não pensa então os intercessores (mestres, professores, jornalistas) como intelectuais que deveriam extirpar um hábito, um sentimento, um mito, mas como agentes da mudança que, tomando esses mesmos elementos, os elaborassem para dar, ao hábito, normalidade jurídica; ao sentimento, sociabilidade benevolente; ao mito, uma verdade simbólica, isto é, condições que melhor pudessem equipar a Kulturkampf na Bolívia (e, neste ponto, D’Ors usa o mesmo conceito, luta cultural, uma luta pela hegemonia que Gramsci reservava, contemporaneamente, para toda a América Latina, e com o qual, em anos mais recentes, os neoliberais demonizaram essas tradições, ao se referirem aos, na falta de melhor rótulo, populismos). D’Ors propõe, em suma, abandonar pedagogismos inúteis e de absoluta esterilidade. “Lejos de tratar de imponerle orgullosamente un tipo de civilización —que no es el suyo—, basado en un ideal de ciencia —que no es ni puede ser propiamente el de nadie—, va ahora a procurarse que los selectos se acerquen a ella con generosidad, con humildad, para estudiar las creaciones propias de ella, recogerlas, encauzarlas, sublimarlas, desenvolverlas en un círculo amplio y constituir con ellas una forma de civilización acabada”. Em poucas palavras, o modelo era o de uma educação pública que continuasse e consolidasse a obra da arte popular, com todas aquelas ressalvas que, a esse respeito, elaborou Mário de Andrade, isto é, as de que, enquanto o povo for folclórico por definição, isto é, analfabeto e conservador, só existirá uma arte para o povo, a do folclore. Mas o trabalho da arte moderna deve ir além. Não impor uma forma dissociada da cultura, mas alimentar uma força capaz de resgatar a matriz tensa e anacrônica de todo processo simbólico complexo, como o da emancipação, que é a saída de uma situação de tutelagem e minoridade. Paulo Freire. Na lógica pedagógica tradicional, o mestre parte da ignorância (desigualdade) do aluno para guiá-lo em direção ao saber. Mas essa era, precisamente, para Jacotot, a maneira de perpetuar a desigualdade em nome da igualdade. A esta lógica de sequestro da desigualdade, o pensamento da emancipação propõe um princípio igualitário em torno de dois axiomas: de início, a ideia de que a igualdade não é um fim a ser alcançado, mas um ponto de partida, uma pressuposição que nos faculta a verificação constante; e, a seguir, a noção de que a inteligência é uma só. Não há uma inteligência do mestre e uma inteligência do aluno, uma inteligência do político e outra do povo ou do artesão.
Ruben Oliven: Tanto a independência (no sentido econômico e político) quanto o modernismo são aspirações que se renovam constantemente no Brasil de acordo com diferentes épocas e conjunturas. Desejamos deixar de ser um “país do futuro” para adquirir uma maioridade no presente e gostaríamos de estar atualizados com o que há de moderno em termos de política, ideais e tecnologias. Trata-se de um eterno retorno a essa temática.
4 – Quais os significados atuais da Independência política e do modernismo para os projetos de Brasil possíveis em e para além de 2022?
Nísia Trindade Lima: A grande questão a nortear o debate sobre projetos de Brasil em 2022 é a questão democrática. Não podemos ler o passado com lentes do presente e, menos ainda, julgar fatos e personagens pretéritos com essa perspectiva. Contudo, interpelamos o passado a partir de questões contemporâneas e dessas não tenho dúvidas sobre a centralidade da questão democrática. Desse modo, tal questão precisa estar no cerne das comemorações/reflexões.
No Brasil, como em tantos outros países, tal questão passa pelos direitos de cidadania, civis, políticos e sociais. No âmbito desses últimos, a superação das imensas desigualdades sociais constitui-se como imperativo. Somo a essa discussão a necessidade de pôr em foco a inventividade e a potência das manifestações populares e dos diversos movimentos sociais. Em certo sentido, podemos entender tal chave como modernista, ou, ao menos, de uma certa vertente do modernismo. Há toda uma tradição de pensar o Brasil por suas ausências, seus problemas, quando a grande lacuna é de natureza democrática.
Uma última observação diz respeito à universalização da produção e do acesso aos conhecimentos científicos e tecnológicos. Esta é uma das principais raízes das desigualdades entre países e no interior dos Estados Nacionais. Não será possível um projeto de Brasil democrático e soberano sem avançar na agenda científica. Ao mesmo tempo, e os exemplos recentes de enfrentamento à pandemia da Covid-19 vêm demonstrando, este avanço requer novas formas de comunicação pública da ciência e de diálogo com a sociedade.
Maria Arminda do Nascimento Arruda: O Brasil de hoje não permite projetar um futuro alvissareiro, por mais que as nossas expectativas de mudança não estejam ausentes. A modernização se cumpriu, mas produziu uma enormidade social, que os índices da nossa desigualdade não conseguem negar. Este país desigual tem como correlato as formas autocráticas de exercício da política, o que significa preservar uma relação privatista com o poder.
A cultura no Brasil se diferenciou, mas o sistema dominante é o da indústria cultural, cujos efeitos sobre uma sociedade com baixo índice de letramento são visíveis, a exemplo das mensagens de religiões fundamentalistas disseminadas na mídia, de nítido caráter regressivo e obscurantista.
Parece-me insegura qualquer projeção para além de 2022, pois há sempre um imponderável no horizonte, uma vez que o país parece ter ultrapassado os limites civilizatórios. Apesar disso, há esforços louváveis e realizações efetivas de democratização social, afirmação de direitos e resistência às formas de intolerância. Oxalá esse lado generoso possa se afirmar.
Simone Meucci: As efemérides da Independência e do Modernismo nos convocam inescapavelmente para uma reflexão sobre a história do Brasil, sua desigualdade institucionalmente produzida e sua potência criadora. E não apenas isso: nos convocam também para uma luta. Não podemos esquecer que temos muitos mortos para honrar: Marielle, Moa, Dorothy, os de Brumadinho agora à pouco, as crianças da Candedária da outra década e de Suzano da outra semana, os homens negros e pardos alvejados em todas as quebradas, as mulheres em todos feminicídios, os ambientalistas e sem terras em todas as emboscadas. Os mortos já são a maioria. Nosso empenho será, portanto, um comprometimento com o pretérito que não é tão longo mas já foi exigente, sem esquecer, por óbvio, o futuro.
Luiz Carlos Bresser-Pereira: Hoje, no mundo rico, nós assistimos ao colapso do capitalismo neoliberal financeiro-rentista. O neoliberalismo morreu, o Estado está de volta; fica novamente claro que ele é o grande instrumento de ação coletiva da nação. Mas, ao contrário do que aconteceu nos anos 1930, não surgiu ainda um grande intelectual como foi John Maynard Keynes – um pensador cuja obra ofereceu aos países ricos as pistas para os Anos Dourados do Capitalismo.
No Brasil ainda estamos mergulhados no subdesenvolvimento e na incapacidade de pensar. Para o Brasil voltar a crescer a ortodoxia neoliberal diz que basta cortar a despesa pública, liberalizar, desregular e privatizar; os desenvolvimentistas supõem que basta chamar o Estado de volta; a esquerda acredita que basta que o Estado promova a distribuição da renda que tudo se resolverá. A receita dos neoliberais é equivocada mesmo que o governo seja competente, porque o liberalismo econômico é incompatível com a retomada do desenvolvimento brasileiro. Já as receitas dos desenvolvimentistas e da esquerda não têm um defeito de origem, mas dependem do bom governo – de um governo que tenha um projeto nacional de desenvolvimento e seja capaz de realizar os compromissos necessários para alcançar a maioria política e tornar realidade seus projetos.
Nos países ricos, no início do século XX, o modernismo foi uma revolução nas artes. Com ele os artistas se libertaram do racionalismo e da crença em uma verdade única que dominaram o século anterior. Não explicou o mundo, mas reconheceu as limitações da razão e criticou a arrogância da ideologia dominante e abriu espaço para que os países ricos se tornassem democráticos. Poderá um novo modernismo ter papel semelhante no mundo atual? Poderão os artistas e os ensaístas voltarem a ser o fermento do novo – do avanço da liberdade, a diminuição da desigualdade e a proteção que são os grandes desafios do mundo contemporâneo? Talvez. Depois de 40 anos de neoliberalismo as nações, tanto nos países ricos quanto nos países em desenvolvimento, são hoje sociedades sem projeto.
Rafael Zacca: Poucas coisas me ocorrem a esse respeito. O significado, sabemos, é muito mais uma questão de quem o significa do que do objeto significado. Mas talvez seja possível arriscar isso: a Independência ainda acontecerá – mas isso depende de nós. A Independência não virá de mão beijada. O pai não entregará o trono se não ganhar algo com isso. A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire é um tratado muito preciso a esse respeito. A Semana de 1922, por outro lado, morreu: é hora de inventariar o seu legado e construir outra coisa. Mas esse legado precisa ser examinado. Pela arte, sim, mas pela ciência, principalmente, e pela política. A arte (assim como a ciência e a política) só será livre quando puder estar fora de si – e só poderá ficar fora de si se cultivar-se a si mesma com pesquisa e espírito infantil (isso vale para a ciência e a política). Temos falado muito que o Brasil acabou. Penso que esses eventos nos colocam diante de outra proposição: o Brasil ainda não veio nem virá. Recolocar os problemas estéticos e políticos em função desse reconhecimento pode se mostrar extremamente producente. Ao recuar o status da construção do país para o princípio, podemos fazer algo melhor. Isso demandará uma forma: a política precisará tomar algo de empréstimo da estética. Demandará também uma reforma das relações de poder. Desse ponto de vista, também a arte não pode se dar ao luxo de não sofrer as suas próprias reformas no seu modo de produção – não poderá apenas alimentar com imagens a política, mas deverá ela mesma sofrer transformações nas suas relações de produção.
Raul Antelo: Da moderna tradição brasileira se poderia dizer aquilo com que Jean-Luc Nancy caracteriza a democracia: forçado a representar o todo da política virtuosa e a única maneira de garantir o bem comum, o conceito acabou por absorver e por dissolver todo caráter problemático e toda possibilidade de questionamento. Reino do consumidor abrutalhado, segundo Rancière, a democracia busca, em suma, tudo dizer – política, ética, direito, civilização – e, portanto, não quer dizer absolutamente mais nada. Porém, longe de desprezá-la, essa insignificância deve ser retomada, problematizada e reinventada. É esse o programa de 1922 que ainda não cessou de não se escrever. Assim, em “hino nacional do pati do alferes”, esse poema “rachado e sentimental” do Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade:
Ó Brasil
Meu coração feito de pedaços
Se unifica
E proclama
A independência das lágrimas
Fico eleitor
Cidadão vacinado
Solto foguetes
Faço dobrados.
Ruben Oliven: Para realmente ser independente e moderno, o Brasil precisa enfrentar o presente, e construir uma sociedade mais equitativa, reduzindo as desigualdades socioeconômicas, regionais, raciais e de gênero, permitindo que seus cidadãos possam efetivamente participar da riqueza da qual o país dispõe. Precisamos também cuidar de nosso meio ambiente e assegurar aos povos indígenas e quilombolas as terras que a Constituição lhes assegura.