Tradução-Exu: um trecho

Finalizando os trabalhos da série Tradução-Exu na coluna Interpretações do Brasil e poéticas, publicamos hoje um trecho de Tradução-Exu: ensaio de tempestades a caminho (2022), de Guilherme Gontijo Flores & André Capilé. Depois de termos lido e conversado ao logo da semana sobre diferentes dimensões dessa proposição tradutória, vemos aqui elementos da elaboração do seu núcleo teórico, ao mesmo tempo em que se traça o contraponto em relação a outras posturas do repertório especializado diante do problema da tradução.

A série Tradução-Exu foi uma parceria da coluna, curada por Lucas van Hombeeck, com a pesquisadora Alice Faria (UFRJ). Para ler seus outros textos, Uma A Outra Fúria e Papo sobre Uma A Outra Tempestade + Tradução-Exu, clique nos links acima.

p. 13-17

Enugbarijó

Kiuá Nganga Pambu Njila — Mojubá Legbá — Laroiê Exu.

Há poucos anos atrás, eu e Rodrigo Gonçalves traduzimos “The Raven” de Edgar Allan Poe como “O Urubu” e intitulamos o projeto de “tradução-exu” (Flores & Gonçalves. Algo infiel. Florianópolis; São Paulo: Cultura e Barbárie, 2017), um termo que brevemente tentava compreender o processo de metamorfose crítica que queríamos ali realizar na transformação de um raven-corvo num urubu brasileiríssimo, que ainda por cima recusava a metafísica transcendental do pós-morte anunciado no never more com uma resposta mais dolorosa, igualmente rimada e de sons sombrios: “no teu cu” é o que responde o urubu, que assim pode ser lido também como resposta da cultura dos escravizados aos dilemas espirituais e uma casta de senhores. A associação do urubu com Exu aparece numa das Cantigas de umbanda e candomblé, com ponto de Exu Mulambo, na umbanda:

Exu Mulambo é maroto,

Só olha pra moça bela.

Com uma garrafa de oti

Fica chamando da janela.

Ele é Seu Mulambo, é um exu,

Seu fetiche leva pena de urubu. (bis)

(SÀLÁMÌ & RIBEIRO. Exu e a ordem do universo. 2.ed. São Paulo: Oduduwa, 2011, p. 310)

Mas não é na mera presença do urubu que se firma a tradução-exu ali proposta. O dilema maior parece ser ainda o de reconhecer na tradução um germe de metamorfose inacabada que precisa se desdobrar no campo da diferença como experimento. Isto é, a tradução não pode se conter num modelo pré-estabelecido do que é aceitável ou não sob seu rótulo; pelo contrário, é o limite da experiência que determina, em cada caso, até onde vai a tradução. Exu, nesse sentido, talvez seja mesmo uma metáfora funcional: orixá das mediações (ele próprio comparável, a imensa distância, ao Hermes-Mercúrio greco-romano) e também do logro, desviador de sentidos, contorcionista que só assim permite mediações; é o tradutor-intérprete por excelência. Sua própria definição é instável e demanda a mediação de corpos num rito. A tradução não pode se pensar fora de um corpo, nem pode se restringir à metáfora da condução, de um caminhão de mudanças. O que ela leva é a mutação.

Isso me faz voltar ao conceito que cunhei há mais de década, quando escrevia meu trabalho de mestrado sobre as Elegias de Sexto Propércio (Flores. Belo Horizonte: Autêntica, 2014): à época, sugeri que toda tradução poética (e por poética entendo toda tradução que se recusa à pura semântica) teria de ser uma diversão tradutória. Diversão, aqui, em seu equívoco etimológico, derivada do verbo diuertere em latim: por um lado, a produção de um prazer (nossa acepção moderna de “divertimento”), que precisa encontrar um corpo baixo no tradutor e no público, força da estese; por outro, um procedimento de afastamento, de divergência em relação tanto ao original quanto às outras traduções. Uma instância não pode se dar sem a outra. Em algum nível, podemos falar da tradução como uma transfusão, tal como pensa Tiganá Santana Neves dos Santos:

Se tradução (nsekola) é transfusão (nsekola), que líquido (nkukula) passa de um recipiente a outro? Zamenga B. lembra-nos dos líquidos enquanto símbolos e forças vitais para os bakongo. Entre os líquidos sagrados, poderíamos, simbolicamente, pensar na saliva (mete), representação kongo de ‘reconciliação’. Traduzimos para nos re-conciliar — pois é inevitável e incessante o encontro com as alteridades que nos iludem e desiludem na nossa experiência com o real (tudo o que temos). A saliva é, também, muco, humor que materializa a fala, a língua falada, a linguagem narrada. Transfundimos narrativas (com as suas pausas-morte), e, no ato presente e posterior à transfusão, narramos nós mesmos. São narrativas a partir narrativas. Pontos de partida engrenados por outros pontos de partida. Assim, o que é (e permanece), necessariamente, distinto se funde. (SANTOS, Tiganá Santana Neves. A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil. (Doutorado em Estudos da Tradução) Departamento de Estudos da Tradução do Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 2019, p. 184)

Ou seja, é por um encontro sempre divergente e corporal que essa transfusão se dá sem necessariamente ser um esgotamento do que se traduz. Logo na sequência, Santana conclui: “Evidentemente, a transfusão não esvazia as obras originais dos seus líquidos. Desdobra-os, fertiliza-os, renova-os e faz com que circulem, de outro modo, por outras veias, artérias e bocas.” Nesse sentido o toque de corpos que se desdobram em novas narrativas pode re-conciliar, mas não só numa ideia de harmonia estática, e sim por um processo complexo de fertilização. Tal como um Exu brincante que ao mesmo tempo media e distorce, assume e confunde seu cavalo, a diversão tradutória recusa qualquer melancolia das perdas e aposta suas fichas na diferença como produção de estese. Ela é assim deriva crítica, e não pode ser parada em suas metamorfoses até que o campo seja experimentado num corpo. Exu, não à toa, é chamado muitas vezes de Enugbarijó, a boca coletiva que tudo fala, anunciando a tábua divinatória de opon-ifá e seus vínculos com o saber oracular.

p.25-29

Exu

(…)

Se finalmente chegamos a uma proposição tradutória, fica claro que não está sendo tratada a tradução-exu por uma tradução negra, vide o pertinentíssimo conceito de Tiganá Santana Neves para sua tradução das sentenças proverbiais quicongo (SANTOS, Tiganá Santana Neves. A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil. (Doutorado em Estudos da Tradução) Departamento de Estudos da Tradução do Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 2019, p. 117-119). Do mesmo modo, a tradução-exu não pode ser um projeto de transcriação haroldiana no modelo do anjo parricida e luciferino; ela não é o projeto da transluciferação que, por um instante que seja, quer ocupar o lugar do original e fazer com que este seja sua tradução, operando uma rasura da origem (Campos. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 209). Exu é uma força dinâmica que encarna em si os cruzamentos alógicos e mostra como os pontos de vista são relacionais e interligados para além da aparência. Nesse sentido, a tradução-exu também não pode ser uma operação de crítica textual tradicional, que aponta indicialmente os aspectos mais importantes de uma obra.

Neste momento é interessante observar Edimilson de Almeida Pereira, para pensar dois conceitos derivados de Exu que ele mobiliza para pesar a poesia brasileira contemporânea. Para Pereira, existem dois eixos interrelacionados, porém dialeticamente diversos: de um lado haveria o modo Orfe(x)u, misturando as categorias de Orfeu e Exu, com um predomínio dos atributos de Exu dentro do espaço literário; do outro estaria Exunouveau, operando um deslocamento linguístico e temporal de Exu com Art nouveau, marcado pela ação crítica e criativa sobre os mesmos atributos (Pereira. Entre Orfe(x)u e Exunouveau. Rio de Janeiro: Azougue, 2018, p. 59). Assim ele se expressa:

No modo Orfe(x)u o poeta reforça o discurso da tradição iorubá; essa tradição, fundamentada na experiência do sagrado, resolve-se numa equação em que um novo discurso, sem autonomizar-se, reconfigura para afirmar as bases do discurso gerado no âmbito das práticas rituais. Pode-se considerar, ainda, que o modo Orfe(x)u não promove uma ruptura entre a tradição e as possibilidades da experimentação poética e que, em função disso, não expõe a imprevisibilidade da poética de Exu aos riscos inerentes à renovação literária. Nesse modus operandi, reside a garantia de se escrever um belo poema e de se enunciar uma bela metáfora – ambos alimentados pela fonte do oriki sagrado. Por outro lado, no modo Exunouveau, como veremos, subsiste a possibilidade de se escrever um poema não necessariamente belo ou de fácil empatia. Isto porque o poeta sabe que se aventura na obscura floresta de signos que é Exu. Antes de tecer o poema, o poeta precisará sobreviver à travessia dessa floresta; somente depois disso se sentirá habilitado a ressuscitar, à luz da linguagem poética, aquilo que sempre inesperadamente iluminou o fundo escuro da floresta de signos. (ibid.: 98)

Assim, no modelo Orfe(x)u os poetas alargariam as trocas entre literatura e antropologia, porém mantendo uma representação ainda bastante tradicional de Exu nos poemas que vão sendo produzidos (ibid.: 115); ao passo que no modelo Exunouveau a apresentação tradicional é deixada de lado, numa aparição metamórfica através de coisas que, no poema, podem indicar uma presença de Exu que convida o leitor a identificá-lo ali, se aceitar o desafio. “Por ser maleável, polivalente e mediador, dentre outros atributos, Exu não se permite ser controlado” (ibid.: 123).

Em algum momento, espera-se tensionar que uma tradução-exu não se apresenta como Orfe(x)u, porque não precisa apresentar os atributos tradicionais do pensamento e da poesia de origem africana em seu procedimento. Nem mesmo quando esse é o modo de produção, como no caso da tradução, a ser apresentada, para o poema de Sebastian Brant, porque o que está em jogo na tradução-exu, muito mais afim a um paradigma de Exunouveau, é a mobilização crítica de um fazer poético e crítico afeito a Exu.

Em linhas gerais, o modo Exunouveau nos reenvia à questão do reencantamento do mundo que Exu devora e recria. Essa questão é relevante para o sujeito do fazer poético, sobretudo aquele que, como o “senhor dos caminhos”, fertiliza o solo da linguagem com suas metáforas e jogos de palavras, embora saiba que esses e outros instrumentos da comunicação sejam precários. (ibid.: 123)

É, ao fim das contas, um desdobramento tradutório de uma poética instituinte, que toma partido, mesmo que esse partido seja o do equívoco e da contradição, como é o da contínua anunciação da morte da poesia, essa morta-viva:

A poesia instituinte devora sua morte e com ela geramos metáforas imponderáveis, expomos as fraturas dos enunciados, redimimos a linguagem que ruboriza diante daquilo que não pode ser dito. Essa também é a poesia, ou melhor, uma certa experiência da poesia, que não ergue a cabeça acima de seus pares, porque, sem que estes percebam, ela é a flor-motor de todos os corpos e ambientes. (2018: 124)

Como produzir essa flor-motor em tradução é o que nos move agora, porque a tradução leva a discussão para fora da afrodiáspora tratada por Pereira e convoca a relação com o passado da voz alheia. Propõe-se, brevemente, a tradução-exu como aquela que pode operar sua crítica-criativa da poesia num movimento de contradições que enxerta na obra original movimentos absolutamente inaceitáveis do ponto de vista da semântica ou da hermenêutica tradicionais (“Boten/ojixé”, “raven/urubu”, Lenore/Lulu”, “Nevermore/No teu cu”; Sennacherib/Seilaoquê “Angel/ET”, “O no! it is an ever-fixed mark/Aí deu ruim! que amor é ponta firme”), ou mesmo o deslocamento crítico da metafísica celeste-lutuosa operada com Poe, ou no paradigma do olhar masculino em corpo feminino que aparece em Dante, por exemplo, em outra tradução também mais a frente.

A tradução-exu é um parricídio muito peculiar, não considera o sentido absolutamente inessencial, porque deseja num só gesto bater cabeça ao texto original e jogá-lo por terra, como Exu que a um só tempo venera, serve e engana Orunmilá. Nesse sentido, a tradução-exu precisa também vir antes de seu original para desmontá-lo enquanto lhe dá o procedimento crítico pela contradição, e não pelo apontamento; tudo isso sem qualquer pretensão de Aufhebung que nos leve ao um novo estágio. Deslocamento de corpos em movimento e choque, transfusão da saliva da fala, a tradução- exu será um caso específico de risco e amor, desastre do desejo ainda cego e já no fio da faca, como Exu, que lança a verdade contando mentiras ou mente a bem do oráculo, sem estancar o sentido da verdade, mas apostando no paradoxo como a força das relações.

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