
O Blog da BVPS publica hoje texto sobre o IV Seminário Nacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), de 1991, com o tema Mulher e Literatura. Trata-se de um seminário pioneiro na abordagem de problemas e discussões que ainda hoje pautam a crítica e a pesquisa especializadas.
A colaboração é de Eurídice Figueiredo, professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da UFF e autora de Por uma crítica feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. No texto, ela mostra como se forjaram os estudos sobre as relações do feminino e do feminismo com a literatura no Brasil, destacando especialmente algumas contribuições presentes nos Anais do IV Seminário Nacional Mulher e Literatura.
Boa leitura!
Mulher e literatura: construindo a História
Por Eurídice Figueiredo (UFF)*
Com o fim da ditadura em 1985 e a eleição, ainda que por via indireta, de Tancredo Neves e José Sarney, iniciou-se um período de governo civil e democrático que significou uma mudança de ares na cultura brasileira. Apesar dos problemas econômicos que provocaram vários planos fracassados de estabilização da inflação, no meio acadêmico houve grandes mudanças no âmbito da pós-graduação na área de Letras, com a criação de duas associações: a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) e a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL).
O nascedouro da ABRALIC de deu durante o Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC), em Paris, em 1985, quando professores brasileiros ali reunidos decidiram criar uma associação análoga no Brasil. A ABRALIC se tornaria, nos anos subsequentes, a principal associação da área de Literatura. Em 1986 ocorreu o I Seminário Latino-americano de Literatura Comparada, na UFRGS, e em 1988 o I Congresso Internacional da ABRALIC, na mesma universidade, sob a presidência de Tânia Carvalhal. Já em 1990 tivemos o II Congresso, sob a direção de Eneida Maria de Souza, na UFMG, e, em 1992, o III Congresso, na UFF, tendo à frente Silviano Santiago. Essas primeiras diretorias foram lideradas pelos idealizadores da associação.
Como a pós-graduação ainda era incipiente até o fim da década de 1970, os professores muitas vezes obtinham o título equivalente ao de doutor por notório saber ou prestavam concurso de livre-docente. Os mais jovens procuravam fazer o doutorado no exterior, o que os levou a começar sua inserção internacional. A própria dinâmica da ABRALIC estimulou o crescimento da pós-graduação, que passou por uma guinada substancial na década de 1990, pela diversificação de temáticas, de metodologias e de interações com outras áreas das Ciências Humanas. Destacam-se, em particular, a introdução das literaturas africanas de língua portuguesa, da qual Laura Cavalcante Padilha (UFF) foi pioneira; as literaturas francófonas do Caribe e do Quebec, sob a liderança de Lilian Pestre de Almeida (UFF); e os estudos de gênero, que incluem tanto as mulheres quanto a população LGBT.
A criação do GT Mulher e Literatura, sugerida por Susana Funck (UFSC) no momento da fundação da ANPOLL, forneceu uma estrutura para o incremento das pesquisas sobre a produção literária de autoria feminina, bem como a introdução das teorias feministas. Ela e Zahidé Muzart (UFSC), fundadoras da editora Mulheres, foram figuras de proa na política de resgate de escritoras esquecidas. A editora publicou mais de cem livros, incluindo Escritoras brasileiras do século XIX, em 3 volumes. Os estudos sobre a questão do homoerotismo começaram a ser introduzidos por Mário Lugarinho (então na UFF) e José Carlos Barcellos (UFF). Esse alargamento de horizontes se associou à expansão dos programas de pós-graduação nas universidades de menor porte.
Fui testemunha desse processo porque estava me credenciando na pós-graduação quando Silviano Santiago e Laura Padilha assumiram a coordenação do então mestrado em Letras da UFF, em 1989. O curso estava desatualizado, com grade curricular e linhas de pesquisa obsoletas. A contribuição de Silviano, que vinha de uma experiência exitosa na PUC-RJ, foi fundamental para a reformulação do programa. A interação com Laura e os demais professores do programa foi decisiva na mudança de mentalidade. Assim, importantes ações foram tomadas para implementar a reformulação desejada: em 1994 foi criado o doutorado em Literatura Comparada e o mestrado ganhou novas subáreas e novas linhas de pesquisa. A avaliação da CAPES foi melhorando e hoje o Programa em Estudos de Literatura, já separado do de Linguagem desde 2010, tem nota 7. Os ensinamentos de Silviano e Laura inspiraram os professores que os sucederam, que organizaram eventos, convênios, criaram a revista Gragoatá e a coleção Ensaios em parceria com a EdUFF.
Durante a gestão de Silviano e Laura na coordenação da pós-graduação em Letras, que coincidiu com a direção da ABRALIC, foram realizados no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) dois seminários muito significativos nessa transformação das linhas de pesquisa que se operava: o IV Seminário Nacional Mulher e Literatura e o I Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, que contou com a presença de escritores africanos e de professores brasileiros e estrangeiros. No ano seguinte, a ABRALIC celebrou seu III Congresso Internacional. A conjunção desses três grandes eventos amplificou a presença do programa no Brasil e começou a sua inserção numa rede internacional. O que dizer hoje, mais de 30 anos depois, quando se realizará o XVIII Congresso da ABRALIC em Salvador, sob a presidência de Rachel Lima?
Os estudos relacionados aos problemas de gênero e ao feminismo estavam/estão hospedados, em grande parte, no Grupo de Trabalho Mulher e Literatura, ligado à ANPOLL. Os três primeiros seminários aconteceram, respectivamente, em 1987 na UFPB, em 1988 na UFRGS e em 1989 na UFSC. O IV Seminário Nacional Mulher e Literatura, sob a direção de Laura Padilha e Lúcia Helena Vianna, foi realizado na UFF. Lúcia Helena Vianna organizaria em seguida os anais, bem como o VII Seminário na UFF em 1997. Se compararmos os anais de um e outro Seminário, percebemos o quanto a área se expandiu no Brasil já na década de 1990. Mas, diferente de outros países, como os Estados Unidos e o Canadá, aqui no Brasil não foram criados departamentos de Gender Studies. Entre nós, esses estudos estão alojados nas disciplinas de literaturas nacionais ou literatura comparada. Parece-me que a explicação para isso reside no engessamento da grade curricular dos cursos de Letras.
Relendo os anais deste IV Seminário Nacional Mulher e Literatura, que têm uma bela capa a partir de desenhos de Lena Bergstein, percebo a relevância dos 26 artigos publicados, ainda que sejam de extensão e qualidade irregulares. Há uma presença maior de professores das universidades do Rio de Janeiro; o que é normal, tendo em vista que o seminário foi aqui realizado. Além delas, tem destaque a UFMG, com quatro participantes, enquanto outras universidades contaram com um(a) participante. Quase todas são mulheres brasileiras que escreveram em português. Mas também há um artigo em inglês, um em francês e um em espanhol. Os palestrantes estrangeiros são do México, da Argentina, do Quebec e dos Estados Unidos.
Há bons artigos sobre escritoras brasileiras canônicas, como Clarice Lispector, Hilda Hilst, Lúcia Miguel Pereira e Nísia Floresta. Constitui uma novidade na crítica brasileira da época o texto sobre a poesia erótica através do tempo, de Narcisa Amália às contemporâneas, passando por Gilka Machado. Um dos textos trata da autobiografia de uma tecelã, Cícera Fernandes de Oliveira, escrita em parceria com uma intelectual, Danda Prado, seguindo o modelo do testimonio hispano-americano. Alguns artigos abordam escritoras estrangeiras do século XX, de Portugal, da França, da Argélia e do Canadá (francês). Um deles diz respeito a Sóror Juana de La Cruz e outras freiras do século XVII. Alguns textos se debruçam sobre as figurações das mulheres em obras do passado – no romance, na pintura, na poesia e nos contos de fadas -, destacando as diferenças entre as visões de autores e autoras.
Algumas questões mais teóricas estão presentes em artigos escritos pelo viés da psicanálise, retomando Freud e Lacan, dois autores que foram relidos e, muitas vezes, contestados por psicanalistas feministas como Luce Irigaray. O artigo sobre Elizabeth Wright e Toril Moi explora o enlace da crítica literária com as premissas da psicanálise, estabelecendo uma relação entre crítica feminista e os problemas de gênero, e mostrando que o gênero é um conceito simbólico enquanto o sexo é um conceito biológico. Judith Butler criticaria essa distinção no livro Problemas de gênero, publicado pela primeira vez em inglês em 1990, apontando que tanto o gênero quanto o sexo são conceitos construídos socialmente.
Outros tópicos analisados, como a invisibilidade da produção feminina no cânone e a chamada “escrita feminina”, parecem-me relevantes ainda hoje, pois são indagações que precisam ser enfrentadas. Como equacionar o cânone, incluindo mais mulheres, sem excluir os autores que lá estão? Ou devemos questionar, quiçá eliminar, a noção de cânone, tendo em vista que ele sempre representará o status quo? Em relação à escrita feminina, a crítica feminista atual tende a rejeitar essa categoria, que sofre de um essencialismo já ultrapassado pela desconstrução derridiana. No Brasil, hoje se utiliza o termo “literatura de autoria feminina” levando em conta tão somente o fato de que quem escreveu tal livro é uma mulher.
O que falta nesses anais de 1991? Eles não contêm textos sobre autoras negras brasileiras, tampouco estrangeiras. Além disso, as autorias dos artigos eram brancas em sua maioria. A universidade só se tornaria mais plural nos anos 2000 com a lei das cotas, que levou mais alunos negros para os bancos escolares. Portanto, isso não chega a chocar, já que a presença negra na universidade à época era rarefeita. A produção de autoras negras no Brasil floresceu a partir de então: Conceição Evaristo e Miriam Alves, que começaram a publicar poesia nos anos 1980 nos Cadernos Negros, só escreveram romances e contos e adquiriram visibilidade mais tarde; Maria Firmina dos Reis e Ruth Guimarães estavam esquecidas; Ana Maria Gonçalves e Eliana Alves Cruz só começaram a publicar nos anos 2000. No caso das autoras estrangeiras, muitas só foram traduzidas recentemente por novas editoras que respondem ao impacto dos movimentos negros e da produção de escritoras negras brasileiras. Tony Morrison, por exemplo, foi coroada com o Prêmio Nobel em 1993, o que a projetou no mundo. As pesquisas sobre escritoras negras começaram timidamente no Brasil e só explodiram nos últimos anos, com destaque para o grande volume de traduções de escritoras negras de todos os quadrantes. No caso da presença indígena, ela ainda é muito recente e pequena no mundo da literatura.
Outras questões que não aparecem nos registros, por não serem realmente objeto de estudos até então, são sobre lesbianidade, heteronormatividade compulsória, a categoria trans e a cisnormatividade. Conceitos como pós-colonial, decolonial, pós-moderno, estudos culturais, identidades transnacionais e diáspora também estão ausentes, pois nos anos 1980 não estavam no circuito no Brasil. Talvez o principal interesse em reler esses anais seja justamente o de tomar o pulso da evolução dos estudos feministas no Brasil, constatando como eram acanhados e como se tornaram abrangentes e promissores. Atualmente, os Seminários Mulher e Literatura atraem centenas de participantes, as publicações proliferam e as equipes em cada universidade reúnem muitos professores (sobretudo professoras) e estudantes.
O último deles, o XVIII Seminário Internacional, intitulado “Escritas de resistência: intersecções feministas da literatura”, foi realizado na UFS em agosto de 2019, sob a direção de Carlos Magno Gomes. Ele foi composto de três tipos de sessão: mesas plenárias, mesas temáticas e sessões de comunicações. O Seminário contou com cerca de 235 palestrantes e 450 participantes, de institutos federais, CEFET, grande parte das universidades públicas do país e alguns estrangeiros (de Portugal, Itália e França). Os anais, em dois volumes, foram publicados em e-book com pouco mais de 50 textos (clique aqui e aqui para conferir). Além deles, foi organizado um número da revista Interdisciplinar (vol. 32, jul/dez 2019) com 20 textos. Nesses 70 textos, a presença de estudos de escritoras negras de vários países é muito forte. Aliás, Conceição Evaristo foi uma das escritoras convidadas. Também figuram abordagens de lesbianidade e heteronormatividade, erotismo e violência contra a mulher, além de questões mais teóricas ligadas ao feminismo.
Vimos, nesse rápido percurso, o contexto brasileiro em que se construíram os estudos sobre as relações do feminino e do feminismo com a literatura, desde 1985 até os dias atuais.
Folha de rosto e sumário dos Anais do IV Seminário Nacional Mulher e Literatura
Nota
* Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Publicou A nebulosa do (auto)biográfico: vidas vividas, vidas escritas (Zouk, 2022), Janelas para o mundo; literatura comparada ou autores estrangeiros que você precisa conhecer (com Anna Faedrich, EdUFF, 2022), Por uma crítica feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras (Zouk, 2020), A literatura como arquivo da ditadura brasileira (7letras, 2017), Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção e autoficção (EdUERJ, 2013), Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura e cultura (7Letras, 2010), Construção de identidades pós- coloniais na literatura antilhana (EdUFF, 1998), além de artigos em obras coletivas erevistas nacionais e internacionais. Organizou vários livros e números de revistas. É pesquisadora 1B do CNPq.
A capa dos Anais, que abre o post, é da artista plástica Lena Bergstein