Laura Padilha e as literaturas africanas: novos e velhos pactos, por Rita Chaves

O Blog da BVPS publica hoje texto sobre a professora Laura Padilha, da UFF, e o I Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, de 1991, com o tema Repensando a Africanidade. Trata-se de uma precursora nos estudos da área, com papel preponderante na realização e difusão desse evento pioneiro na abordagem de problemas e discussões que ainda hoje pautam a crítica e a pesquisa especializadas.

A colaboração é de Rita Chaves, professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da USP e autora de Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. No texto, ela apresenta breve panorama intelectual de Laura Padilha na consolidação da área de Literaturas Africanas no Brasil, tendo o encontro realizado na UFF como um de seus principais marcos.

A Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), uma das co-responsáveis por aquele Encontro, prestará homenagem a Laura Padilha na edição deste ano, em sessão plenária, no dia 12 de julho, com a participação de Rita Chaves e de Silvio Renato Jorge, da UFF.

Boa leitura!


Laura Padilha e as literaturas africanas: novos e velhos pactos

Por Rita Chaves (USP)*

Novos pactos, outras ficções é o título do terceiro livro de Laura Padilha, uma coletânea de artigos que têm integrado a bibliografia de muitos trabalhos na área das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no Brasil e não só. A repercussão desse trabalho, cuja primeira edição é de 2002, apenas confirma o que sabemos, isto é, a relevância de Laura no campo acadêmico, em áreas que ultrapassam os limites desse terreno que ela também palmilhou e que aproximou muitos itinerários. 

Comecei pela referência a esse livro porque vejo no título uma chave para compreender a trajetória dessa professora e pesquisadora que soube imprimir uma marca muito pessoal a todos os espaços por onde transitou. Ao lado de tantas qualidades que logo assomam quando tentamos recortar o seu perfil, não me parece demais afirmar que a capacidade de se distinguir está especialmente ligada ao empenho que investiu nos pactos que buscou firmar e defender. Singular em seu modo de abrir e ocupar espaços, Laura, por onde circula, estabelece laços e procura preencher lacunas, como se divisasse estratégias muito particulares em cada proposta de parceria. E sabe olhar para o outro, sempre desejosa de alimentar a interlocução que vislumbra.

No terreno da pesquisa acadêmica, a energia da expansão pode igualmente ser notada. Seu mestrado foi sobre Eça de Queirós, desdobramento de um longo contato com a Literatura Portuguesa, disciplina que lecionou por muito tempo. A essa paixão, nunca abandonada, pelos autores portugueses, tendo Eça como amor maior, ela iria associar os escritores africanos, descoberta de meados dos anos de 1980 que arrebatou um infindável interesse. Podemos dizer que esse “espaço do desejo”, expressão que integra o título de sua dissertação de mestrado – O espaço do desejo: uma leitura de A ilustre casa de Ramires de Eça de Queirós – foi fecundado pela incorporação de outros territórios literários. Como se ela se tivesse deixado contagiar pelo sentido de deslocamento que motivou Gonçalo, o protagonista do romance estudado, Laura decide agregar o continente africano ao seu mapa. Não como um agente do colonialismo que lança mão de seu privilégio, mas como uma viajante interessada em conhecer outras terras em seus diferentes modos de fazer literatura. O ponto de partida, ela contou muitas vezes, teriam sido os muitos livros que eu lhe teria oferecido quando ela convalescia de uma intervenção cirúrgica. A associação entre a literatura africana e a recuperação da saúde tem sua graça e diz muito do seu gosto por tornar a vida mais sedutora que os seus colegas e amigos conhecem. Sempre vi a dose de ficção abraçando a história tão reiterada como uma enfática forma de me agradecer o que ela considerava um presente decisivo. Na realidade, em 1982, eu estava no meio do mestrado na UFF, escrevendo a dissertação sobre Pepetela e Luandino Vieira, e, querendo muito um diálogo à volta das minhas paixões, ofereci à Laura um livro, aquele que inicialmente tinha me motivado para esse mundo que eu já queria partilhar com ela: Nós matamos o cão-tinhoso, de Luís Bernardo Honwana. Ela também se encantou. Os belíssimos contos talvez lhe tenham recordado o deslocamento de Gonçalo Ramires, que, pelas razões que sabemos, emigrou temporariamente para Moçambique, na costa índica da África, no século XIX. Ela, todavia, começa pela costa ocidental, desembarcando em Angola para as primeiras incursões, e esse seria mais um ponto de convergência entre nós. E seriam mesmo somente as primeiras incursões pela África. 

O doutorado, iniciado em 1984, na UFRJ, traria os bons resultados da travessia. Sob a orientação de Cleonice Berardinelli, outra cultora de partilhas, a pesquisa tem a literatura de Angola como objeto, delineado pelas regiões da Lunda e de Luanda, área em que concentrou sua atenção para explorar os complexos elos entre as matrizes da tradição e os caminhos da modernidade, operação que realizou após a visita ao terreno, atitude rara na época em que a África nos parecia tão distante. Ao descer no Aeroporto 4 de Fevereiro, quando Angola vivia ainda dias e noites de guerra, Laura tinha como alvo o século XX, período de consolidação da escrita na então colônia. Nessa viagem, ampliou-se o campo das relações e ela sintetiza a experiência em um dos agradecimentos no trabalho final: “Aos amigos angolanos e portugueses que fizeram da minha viagem de estudos uma aventura de para sempre lembrar, desde as noites de estrela da rua de Santo Amaro, ao azul multiplicado da baía de Luanda”. 

Defendida em 1988, a tese chamou-se Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Também do título nos chegam pistas que nos levam ao universo de Laura. A ancestralidade, que ela reconhece como um conceito a ser explorado na lida com os textos literários, foi também declarada como um valor referencial no domínio privado. Mas não é essa a única pista a nos levar de novo ao terreno dos pactos. A duplicidade composta por voz e letra indica, na dialética de sua composição, o jogo dilemático que a leitura dos escritores africanos atualiza. Tendo compreendido a força dos impasses que a criação estética sabe traduzir, a pesquisadora convida-nos, em suas análises, para acompanhar o poderoso roteiro produzido pelos autores que escolheu, um itinerário que procurou sempre agregar à escrita e à vida. Observando a conexão entre a escrita dos africanos e a sua práxis no tempo que lhes coube viver, ela procurou um modo de tecer no seu mundo fios de ligação com a sua história. Como se o contato muito vivo com os textos lhe pudesse devolver elos subtraídos ao longo dos anos. O que há de ficção nesses processos, nós podemos intuir ou negar, mas a busca pode ter muitos sentidos.

Na condução da vida profissional, apostou constantemente na sua capacidade de juntar esforços e multiplicar as conquistas. Em 1990, já professora da UFF desde 1979, percebeu a importância de investir na consolidação da nova área de estudos que sentia como sua. Era também um tempo de expansão para o Programa de Pós-Graduação, coordenado por Silviano Santiago, com a Laura na vice-coordenação, uma parceria muito valorizada por ela como um encontro de enorme aprendizagem. Eram tempos muito anteriores à promulgação da lei 10.639 e à necessária disseminação de pesquisas voltadas para a África, isto é, a incipiência dos estudos africanos no Brasil era um dado real, exprimindo nesse atraso o agravamento das dificuldades comuns à implantação de qualquer nova área de conhecimento. O peso do preconceito instituía-se aqui como um fator de complicação. Fora e dentro da academia, eram imensas as barreiras que se abriam à África e a tudo o que com ela se identificava. Entretanto, a partir de um lugar, no qual ela sentia poder comungar com alguns colegas certas convicções, nasceu o projeto do I Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa – Repensando a africanidade, que inauguraria um ciclo frutuoso para esse campo de saber. 

Com base em uma organização multifacetada, montou-se um grupo de trabalho com a presença de professores e pesquisadores de várias instituições interessadas na realização do projeto. Nos anais, publicados em 1995, nas várias comissões, estão registrados nomes e universidades que integraram esse trabalho coletivo. Além da UFF, sede do encontro, do Rio de Janeiro ali estavam a UFRJ, a UERJ e a PUC; de São Paulo, a distância física foi vencida pela UNESP e pela USP, que participaram da Comissão Organizadora e da Comissão Executiva. Na coordenação, Laura soube conquistar a adesão de muitos colegas e as reuniões, realizadas em sua sala na UFF ou no escritório da ANGOP, cedido pelo escritor João Melo, o representante da União dos Escritores Angolanos na Comissão Executiva, abriam a oportunidade para as muitas trocas que incidiram no desenho do evento. Estávamos bem distantes do tempo das redes institucionais, mas os contatos se multiplicavam e se desdobravam no diálogo necessário.

No caso particular dessa iniciativa, o pacto, que mobilizou o imaginário e as ações de Laura, se desdobrou para envolver mais do que as universidades referidas. Beneficiando-se do apoio na direção da UFF, que tinha a sorte de ter como reitor oprof. dr. Raimundo José Romeu, um defensor do cosmopolitismo, a organização integrou entidades que foram fundamentais para que o evento se concretizasse. A Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), dirigida pela mesma dupla de professores que coordenava a Pós-Graduação em Letras da UFF, foi co-responsável pelo Encontro, compondo uma parceria que juntava ainda a União dos Escritores Angolanos e o Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos da UFRJ. No espírito dessa pluralidade, superando entraves no plano do concreto e do simbólico, indo contra os ventos do preconceito de tantas ordens, em outubro de 1991, o Campus do Gragoatá acolheu o I Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no Brasil, resultado de uma grande aliança entre a Pós-Graduação, a ABRALIC, a USP, a UNESP e a União dos Escritores Angolanos, além da PUC-Rio, a UFRJ e a UERJ. 

É importante notar que a pluralidade de apoios não se circunscreveu à obtenção de recursos para amparar o evento, propiciando uma visibilidade para a pesquisa e o ensino dessas literaturas. A diversidade incidiu também no modo de conceber e abordar o repertório eleito como base. A participação de colegas de Literatura Brasileira possibilitou um confronto produtivo com as pesquisas que se iniciavam no terreno da Literatura Afro-Brasileira. A questão do negro na literatura, como personagem e como autor, começava a ganhar a centralidade que precisa assumir. Assim, Lima Barreto e Maria Firmina dos Reis dividiram o palco com Amílcar Cabral, Uanhenga Xitu e Ruy Duarte de Carvalho, num movimento de aproximação e distinção das margens. A reunião contou com a presença de gente que tinha inaugurado caminhos. Ali estavam Maria Aparecida Santilli, Vilma Arêas, Fernando Mourão, Benjamin Abdala Júnior e Jorge Fernandes da Silveira, que, de lugares distintos, colocaram as literaturas africanas no mapa dos nossos horizontes literários. Estavam também alguns ícones dos nossos vínculos com o continente como Carlos Serrano, da USP, José Maria Nunes Pereira, da Universidade Cândido Mendes, e Salim Miguel, da UFSC, que tinha protagonizado um diálogo importantíssimo com a publicação de tantos autores na Revista Sul, por ele editada – resultado da subterrânea e corajosa cooperação entre intelectuais das duas margens do Atlântico. Os trêss atuaram na “raiz das coisas”, para citar José Luandino Vieira, um dos grandes escritores angolanos que, infelizmente, não pôde vir. Sentida a sua ausência, parte do vazio foi preenchida por escritores e pesquisadores angolanos que trouxeram a possibilidade de uma interlocução direta, uma conversa viva, apta a desfazer os estereótipos que a nossa complicada relação com a África mobiliza. Costa Andrade, Jofre Rocha, João Melo, Luís Kandjimbo, Manuel Rui e Ruy Duarte de Carvalho trouxeram-nos a percepção direta da vivência angolana e a sua projeção no projeto literário. Da França veio o prof. Michel Laban, um profundo conhecedor das Literaturas Africanas. Apostando na superação das fronteiras da academia, Nei Lopes, compositor e pesquisador notável no campo afro-brasileiro, veio partilhar seu conhecimento. A diversidade foi uma chave para alargar o alcance dos problemas que a vida literária africana envolve.

No caso concreto da ABRALIC, a dimensão do envolvimento significava também trazer para o universo de uma prestigiada entidade um conjunto de reflexões acerca de uma produção literária pouco conhecida, ou seja, todo um repertório que partilhava a sua condição periférica. Ao incorporar as literaturas africanas como um campo de discussão, a Associação buscava também consolidar seu compromisso com a batalha contra o colonialismo epistemológico, que é ainda hoje um fantasma entre nós. Não se tratava apenas de ampliar o corpus, mas de trazer para os debates as indagações que a escrita literária no continente africano coloca ao universo teórico dos estudos literários, tendo o comparativismo como método fundamental. Nas palavras de Laura, na publicação de 1995, “além de se querer espaço de trocas de experiências e entre estudiosos brasileiros, para se proceder a um mapeamento da situação dessas Literaturas nos currículos e programas desenvolvidos pelas instituições de ensino e pesquisa do país, o I Encontro tinha como um de seus fins a criação de mecanismos pelos quais se pudesse reverter a postura neo-colonizante de tais currículos e programas.”

Na referência à postura neo-colonizante, estava marcada uma posição que não era apenas sua. Era a posição de um grupo que via nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa mais do que um conjunto de textos para abordagens calcadas em um instrumental teórico que, forjado noutros contextos, muitas vezes parecia pouco afinado com a natureza e a definição que a prática literária assumia no panorama africano. Se a inadequação de certos postulados da Teoria Literária e da Literatura Comparada já vinham sendo questionados para a crítica das Literaturas latino-americanas, como podemos observar no trabalho de Ana Pizarro, Angel Rama, Antonio Candido, Silviano Santiago, consideradas as diferenças que os distinguem, nós acreditávamos que o debate poderia ser verticalizado com a inclusão das “Africanas”, como se tornou comum referir. O interesse manifesto pela ABRALIC em participar do Encontro, em certa medida, confirmava a legitimidade de nossa convicção. 

Desse primeiro encontro participaram cerca de 120 pessoas, do segundo, realizado anos depois na USP, o número de inscrições superou a marca das 700, um sinal positivo do nosso crescimento. A assinatura da lei 10.639, que tornou obrigatória a inclusão de conteúdos de história e cultura africanas e afro-brasileiras, em resposta a firmes demandas de movimentos sociais, foi mais um passo na direção sonhada. O impacto dos movimentos contra o racismo e de políticas de inclusão vêm produzindo resultados contra o colonialismo do saber. Desse encontro já foi possível contar com um apoio direto do poder público e fortalecer os laços com a rede pública de ensino. Como estava entre os objetivos do I Encontro, ganhamos visibilidade.

Hoje, mais de trinta anos depois, o cenário é outro. Com idas e vindas, avanços e recuos, as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa ocupam um lugar e, mais, também a produção afro-brasileira tem ampliado o seu espaço nas várias instâncias. Nomes como o de Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Edimilson de Almeida Pereira, Eliana Alves Cruz e Itamar Vieira Júnior, entre muitos outros, saíram do gueto e vão garantindo a uma imensa parcela da nossa população o direito à representatividade. A África que está do outro lado do mar, para usar a bela expressão de Débora Dornelas, e as Áfricas que vivem aqui, nesse país ainda tão segmentado, já não nos parecem tão longe. Iniciada Fernando Mourão e Maria Aparecida Santilli, lá nos duros anos de 1970, a corrente foi adensada por Benjamin Abdala Júnior, Jorge Fernandes da Silveira, Simone Caputo Gomes, Vilma Arêas e Tania Macêdo. Na sequência, na década de 1990, o grupo ganharia reforço com outros nomes, como os de Maria Nazareth Fonseca e Carmen Tindó Secco. Essa viragem contou com a mão de Laura, que participou científica e institucionalmente de todo esse processo. Com esses colegas já atuando na área, firmou-se o necessário pacto para, a partir de um foro alargado e consistente, “reverter a questão do neo-colonialismo curricular sempre empenhado em manter o eurocentrismo e em rasurar a diferença”, como está ressaltado por ela também na apresentação dos Anais. Com esse pacto, foi possível acenar para outras ficções e revalidar o sentido do belo título do livro de 2002.

Capa, folha de rosto, ficha catalográfica e sumário dos Anais do I Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.

Nota

* Professora Associada de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP. Possui graduação em Letras pela Universidade Federal Fluminense (1978), mestrado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (1984) e doutorado em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (1993), com dois estágios de Pós-doutorado na Universidade Eduardo Mondlane e um na Universidade Politécnica, ambas de Moçambique. Foi professora visitante na Yale University entre 1996 e 1997. Trabalha principalmente nos seguintes temas: Literatura Angolana, Literatura Moçambicana, África, Angola, Literatura e Antropologia.

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