Hospedagem Vale Quanto Pesa | A cor da pele, textos de Iuri Dantas e Matheus José

O Blog da BVPS publica hoje dois textos que se hospedam no ensaio “A cor da pele”, de Silviano Santiago. O primeiro, “Compartimentos e contágios: como revigorar a crítica”, é de autoria de Iuri Dantas (PUC-Rio), e o segundo, “Ensaiando esticar a pele até a voz menos adocicada”, é assinado por Matheus José (UFMG).

O post dá continuidade à Hospedagem Vale quanto pesa, um experimento intelectual e estético inspirado na categoria de “hospedagem” de Silviano Santiago, voltado para as comemorações do seu segundo livro de ensaios, Vale quanto pesa, de 1982. Propomos um exercício de comentário, repetição, suplementação, hospedagem dos 18 textos nele reunidos. Autores e autoras de 40 anos ou menos comentam Vale quanto pesa em seus 40 anos ou mais.

É uma alegria proporcionar esse encontro, ainda mais porque, como espaço de formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes, o Blog da BVPS aposta sempre na conversa entre diferentes gerações.

Acompanhe as postagens da Hospedagem, sempre às segundas e quartas-feiras. Para saber mais sobre a iniciativa, clique aqui.

Boa leitura!


Compartimentos e contágios: como revigorar a crítica

Por Iuri Dantas (PUC-Rio)

Em qualquer lado onde apareça, o Negro liberta dinâmicas passionais e provoca uma exuberância irracional que tem abalado o próprio sistema racional. Achille Mbembe

As novas tentativas de costura entre textos literários e a experiência real dos corpos ocupam boa parte da crítica contemporânea. Essas investidas se caracterizam por habitar espaços de ruptura e reconstrução particularmente interessantes para pensar a abordagem de Silviano Santiago (1982) sobre a manifestação da poesia de Adão Ventura. Digo manifestação, mas poderia tratar, de outro modo, como uma erupção ou a explosão de uma supernova no cenário até então fortemente marcado, delimitado e conformado ao movimento modernista brasileiro, realizado seis décadas antes.

Ainda sob as lentes de seu conceito sobre um entre-lugar do discurso latino-americano (2000), que marcaria também a produção artística brasileira, Santiago procura singularizar os versos de Adão Ventura. Segundo o crítico, em A cor da pele, o poeta mineiro seguiria uma abordagem diferente da retórica e do universo simbólico centrados em referências místico-religiosas e numa oralidade externa ao padrão culto da língua, vigentes no modernismo brasileiro:

O elemento negro, na poesia de Cruz e Souza e nestes curtos poemas de Adão, advém do drama negro que é refletido pela poesia e que o poema (sem cor vocabular) carrega de alta tensão emocional. O elemento negro no poema, íntimo ou histórico, social ou racial, é antes sujeito ou objeto de reflexão do que arabesco de decoração. Enquanto reflexão, apela para a consciência crítica do leitor e para a revolta contra o estado passado e presente (Santiago, 1982).

Santiago denuncia uma ruptura de padrões, em um enfoque centrado nos versos do poeta, deixando em segundo plano a necessária e ausente desintegração da própria crítica. Se os poemas de Adão Ventura encarnam um novo passo, sua análise deveria exigir uma nova velocidade.

A leitura de Adão Ventura por Santiago se ampara em alguns pressupostos cuja tensão atinge o paroxismo atualmente. Refiro-me, especificamente, mas não apenas, à ideia de uma certa tradição da crítica literária nacional, que ignorava a participação de autoras como Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e mesmo a cor da pele do patrono da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis. Uma “tradição” que agrupava alguns autores em detrimento de tantos outros e que lega à produção literária de pessoas negras uma tensão em relação às demais obras.

Uma escola crítica especializada em lançar mão de referências euro-atlânticas como sendo as únicas presentes na produção nacional. Uma postura que delimita fronteiras fugidias entre a poesia escrita por pessoas negras e por pessoas brancas de terra brasilis. Algo que, de modo provocativo, poderia se chamar de uma avaliação que abraça um conceito excludente de país: apenas um determinado grupo de pessoas – identificadas pela cor da pele – seria capaz de alcançar uma suposta qualidade, alcance e recepção dignas de se considerar parte da verdadeira literatura nacional.

Santiago aproxima-se de uma constatação trazida pela virada epistemológica anos mais tarde, ao identificar a experiência de pessoas de pele escura na sociedade brasileira como um elemento vital da poesia de Adão Ventura.

A cor da pele é marca indelével que não se apaga com os bons sentimentos humanitários ou patrióticos, nem com a política paternalista dos governantes ou populista de oposição. Por isso é que o elemento negro não é relíquia ou simples vocábulo para Adão. É algo de presente e premente. O negro é confluência de corpo e pele; o negro é lugar e tempo de ação (Santiago, 1982).

Ainda assim, o crítico permanece distante – por condições históricas e opções políticas específicas – de outra constatação necessária para fechar o círculo: a poesia – seja escrita ou ágrafa como o hip hop, o slam e tantas outras manifestações – e os textos produzidos por pessoas negras brasileiras obrigam a crítica a reformular seus conceitos e referências sobre o que seria essa tal de literatura brasileira.

Dito de outro modo, o texto de Santiago indica a necessidade de se refundar a tradição crítica, levando em conta não apenas a produção negra, mas a própria crítica. Uma substituição necessária das lentes que admita, para além das especificidades deste conjunto de manifestações culturais afro-brasileiras, o diálogo, as interseções e linhas de força de interação com a literatura produzida por outros grupos sociais no país – aqueles que representam a maior parte da população.

Não basta o mero registro da diferença, da singularização da potência de vidas e de subjetividades silenciadas ao longo da história. É preciso pensar como o edifício da crítica nacional, após tantas décadas obstruindo a entrada e participação de negras e negros no salão dourado da literatura brasileira, ainda resiste ao contágio onipresente da produção afro-brasileira.

Como sugere o professor, poeta, crítico e romancista Edimilson de Almeida Pereira (2016), espera-se que a literatura brasileira seja dialética o suficiente para admitir a contribuição da produção negra ou afro-brasileira “quanto (à)s possibilidades de ampliação do conceito de literatura brasileira”. Em suas palavras, 

Uma análise das contradições que permeiam a sociedade brasileira contemporânea indica o lugar relevante a ser ocupado por autores e autoras que – inseridos no conjunto da literatura negra e/ou afro-brasileira – se rebelam contra uma literatura atrelada ao mercado editorial e aos antigos modelos literários e se limitam a situar em posições subalternas as temáticas da diáspora africana no Brasil (Pereira, 2016).

Trata-se, portanto, de ler Adão Ventura e outros tantos escritores utilizando-se de novas bases teóricas e epistemológicas. Uma revisão da postura da crítica, que incorpore não só o que ali vai escrito-falado-cantado como algo exótico e estranho a um corpus literário forjado em bases excludentes, mas que, ao mesmo tempo, potencialize a contaminação da produção literária nacional. Uma postura que promova uma revisão das perspectivas, subjugando a compartimentalização da produção literária afro-brasileira e instaurando/admitindo novas conversas.

Afinal, Adão Ventura fala sobre sua experiência como homem negro no mesmo espaço cultural e temporal onde a poesia marginal ganha ruas e praças. A publicação de seu livro ocorre na mesma década em que Carlos Drummond de Andrade lança seu Claro enigma (1975), em que Ferreira Gullar escreve Metade da vida (1978), Eucanaã Ferraz publica Sentimental (1978) e Hilda Hilst apresenta suas Transposições (1979), apenas para citar alguns dos abalos e alargamentos no panorama da poesia brasileira vivenciados naquele momento. Concretamente, sugere-se aqui a propositura de novas perguntas, que abram espaço para contaminações e conclusões outras.

Por que A cor da pele dialogaria exclusivamente com a exclusão e o preconceito vividos por pessoas pretas? Quais as condições de possibilidade apresentadas por Adão Ventura sobre a poesia nacional, quando ele estampa as rachaduras de um espelho, que se supunha universal, sobre a produção literária brasileira? O que a poesia afro-brasileira daquele momento histórico e social nos diz sobre os esgarçamentos de um tecido devidamente surrado por Drummond, Hilst, Gullar, Ferraz e tantos marginais e vice-versa? Como o livro de Adão Ventura reposiciona os demais poetas e sua produção no mesmo período? Quais as relações possíveis entre Adão Ventura e o minimalismo naturalístico de Manoel de Barros, e seu Caderno para algures (1979), ou com a transgressão de Paulo Leminski e seu Palavra, Memória (1980)?

Antes mesmo de se especular respostas, trata-se de refletir os motivos pelos quais tais questionamentos escapam à crítica – tanto a produzida à época quanto a de hoje em dia. Até mesmo para rascunhar uma pergunta bastante mais simples: por que analisar isoladamente a experiência do corpo negro, se nela está marcada de modo inalienável a relação com os corpos brancos?

Refiro-me à Relação como procedimento de construção da identidade, nas linhas do que é proposto por Édouard Glissant (2021) – conceito tão em voga nos debates acadêmicos hoje. Uma relação que também é marcada pela necropolítica formulada por Achille Mbembe, também em evidência nos debates e seminários, nas dissertações e teses de pós-graduação. Mas que já ali, em fins da década de 1970, ocupava o pensamento do francês Michel Foucault, em sua aula sobre biopolítica (1978-79), levando-nos a pensar que a seletividade da crítica era de mão dupla.

Por um lado, selecionava grupos sociais específicos como representantes do cânone e da própria composição da literatura brasileira. Por outro, ignorava não só o pensamento africano, como também os apontamentos europeus que diagnosticavam a cor da pele como elemento preponderante de hierarquização política, social, ética e cultural.

Nesse sentido, a visão de Edimilson de Almeida Pereira, em seu prefácio sobre a Poética da relação (Glissant, 2021), descortina linhas de ação possíveis para a análise de obras afro-brasileiras pela crítica literária:

Atravessamos, no convite à Relação, o desafio de compor com o nosso próprio desafino. Compor com o amargo, o rascante, com o que corta, rasga ou arde não é tarefa fácil, mas crucial. Composição esta que chama por diferentes processos alquímicos e pela rasura dos longos desenhos dos imaginários instituintes da própria linguagem-vida que vêm norteando a nossa imaginação de um Brasil alegre, capaz de tudo digerir. Compor com o amargo exigirá também rever as epistemes da melancolia, do azedume, da bílis negra, tais como pensados pela cultura hegemônica ocidental. Outras trilhas culturais que refaçam as nossas linguagens-vida urgem, seja para a reconstrução de outros modos de habitação do planeta, seja para continuarmos imaginando nele a criação da vida (Pereira apud Glissant, 2021: 21, grifos meus).

O passo que se propõe aqui em relação à crítica de Silviano Santiago sugere que a poesia de Adão Ventura – como a de Edimilson de Almeida Pereira e tantos outros – englobam, também, repensar a presença negra como parte de uma diáspora africana, cuja influência resulta do contato-confronto com a cultura europeia que desembarcava por aqui ao mesmo tempo.

Uma abordagem diaspórica conforme a proposta de Paul Gilroy em O Atlântico Negro (2019), na qual o trabalho da memória visa à constituição de uma identidade “levada à contingência, à indeterminação e ao conflito” (Gilroy, 2019: 19) pela desterritorialização e desenraizamento.

(O) conceito de diáspora pode oferecer alternativas reais para a inflexível disciplina do parentesco primordial e a fraternidade pré-política e automática. A popular imagem de nações, raças ou grupos étnicos naturais, espontaneamente dotados de coleções intercambiáveis de corpos ordenados que expressam e reproduzem culturas absolutamente distintas é firmemente rejeitado (Gilroy, 2019: 18).

O dinâmico trabalho de memória que é estabelecido e moralizado na edificação da intercultura da diáspora construiu a coletividade e legou tanto uma política como uma hermenêutica aos seus membros contemporâneos (Gilroy, 2019). Algo que inscreve em corpos negros uma experiência, uma memória e uma identidade distintas daquelas que baseiam o entre-lugar formulado por Silviano Santiago – e diferentes modos de relação com a produção estrangeira, seja ela europeia, africana ou americana.

A revisão da crítica, de que falamos aqui, envolve, também, reinterpretar, sob novas bases, o período histórico em que a escravização era regulada por lei, afastando a leitura de cordialidade e convivência pacífica que marcou a interpretação do legado desse período histórico. Manter o pressuposto da cordialidade deixa de lado aspectos vitais para a compreensão das experiências de pessoas negras no contemporâneo.

A poesia negra ou afro-brasileira lança mão de outras ferramentas para trabalhar a linguagem, a voz, o corpo, a memória e a identidade. Por isso, uma crítica que promova a interação única e exclusivamente com outras produções negras surge como naturalmente limitadora e limitante – cria-se um universo estanque, um compartimento sem aderência ao real. Mais: admitir que a experiência de pessoas negras e, consequentemente, sua produção artística vêm marcadas pelo silenciamento ao longo da história impõe uma revisão de outros pressupostos – entre eles, o do modernismo tupiniquim, vivenciado de modo bem heterogêneo por diferentes grupos sociais.

Será necessário, também, rasurar a visão colonial sobre o impacto/legado do tráfico de pessoas escravizadas na contemporaneidade. Dessa base colonial, surgem conclusões manietadas por estereótipos e generalizações, resultando em uma crítica que, no afã de jogar luzes sobre a poesia negra, termina por isolá-la em categorias responsáveis pela manutenção do status quo.

A nova crítica que proponho não deve simplesmente condenar Silviano Santiago e tantos outros que se propuseram a pensar e escrever sobre a produção literária afro-brasileira a partir da experiência do racismo e da violência cotidianos. Esses textos contribuem para uma reflexão mais fidedigna do lugar que a crítica abraça como seu para pensar a literatura brasileira. As fissuras que eles representam ajudam a pensar os alicerces da nova crítica que se propõe aqui.

Pensando com Silviano Santiago, se a grande contribuição do Brasil e da América Latina para o pensamento mundial foi o fim de um conceito de pureza, é preciso, então, que a crítica se permita contaminar.

Referências

FOUCAULT, Michel. (2008). Nascimento da biopolítica. Curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes.

GILROY, Paul. (2012). O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreia. São Paulo: Editora 34. Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos.

GLISSANT, Édouard. (2021). Poética da Relação. Rio de Janeiro: Bazar do tempo.

MBEMBE, Achille. (2018). Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 edições.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. (2016). O Brasil-Decifrado e o Brasil-Enigma. Musa Rara: literatura e adjacências. Post em 24/05/2016. Disponível em: https://musarara.com.br/o-brasil-decifrado-e-o-brasil-enigma.

SANTIAGO, Silviano. (1982). A Cor da Pele. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, pp. 121-126.

SANTIAGO, Silviano. (2000). Uma literatura nos trópicos. Ensaios sobre dependência cultural. Rocco: Rio de Janeiro.


Ensaiando esticar a pele até a voz menos adocicada

Por Matheus José (UFMG)

É de se destacar o propósito do professor Silviano Santiago de ler, ou melhor, de analisar/pesquisar teoricamente a poética potente de Adão Ventura e de incluir, cirurgicamente, a crítica sobre o livro A cor da pele (1980) no volume de ensaios político-culturais Vale quanto pesa (1982). Deste modo, no mesmo momento em que compõe o arcabouço teórico de hipóteses urgentes e necessárias apresentado durante seu percurso ensaístico, o crítico literário também reforça o conjunto de análises atenciosas condizentes com esta complexa obra de Adão Ventura, também urgente e necessária.

Neste pouco pacífico entre-lugar em que se encontra, Silviano Santiago faz do ensaio um abutre, no modo Adão Ventura, ou seja, com o estômago que encara os subprodutos da barbárie e metaboliza aquilo que a sociedade brasileira e a cultura brasileira ignoram e rejeitam.

Diante dos 25 poemas que integram o livro A cor da pele, publicado em 1980, organizado em 4 seções, “Das biografias”, “Da servidão e chumbo”, “Raízes” e “Livro último”, Silviano Santiago tateia os materiais consistentes e compatíveis com a sua reflexão teórica, que atrela, desde Glossário Derrida (1976) e Uma literatura nos trópicos (1978), os discursos literários aos impasses político-sociais, culturais e econômicos da sociedade brasileira, manejando, sempre, sua atenção com a alteridade, o desvio e a diferença.

No início do livro Vale quanto pesa (1982), em “Apesar de dependente, universal”, Silviano Santiago já reforça sua preocupação com o debate disponibilizando algumas angulações atentas na medida em que o problema do negro, no Brasil, antes de ser a questão do silêncio é a da hierarquização de valores.

Posto isto, o que a análise do crítico Silviano Santiago sobre o livro A cor da pele sugere enquanto discussão é a interrogação que motiva este presente ensaio, que também culmina por provocar atos de leitura mais cuidadosos sobre a poética de Adão Ventura.

Os poemas desta obra apresentam o contradiscurso insólito e desassossegado paras as preocupações literárias e culturais de Silviano Santiago, que, por sua vez, não perde de vista as complicações sócio-históricas e econômicas oriundas da experiência de dominação colonizadora com suas violências de exploração, de redução, de subalternização e de tensas ocupações do corpo, da terra, da linguagem, da subjetividade e da identidade alheia.

Ao apontar, no início do ensaio, a poesia do Adão Ventura como sendo negra, porém, de uma outra categoria, o crítico literário sugere observar que os poemas de A cor da pele representam o texto-da-diferença que acaba por operar um descentramento dos padrões hegemônicos do pensamento cultural, racial, político, literário e erudito impostos no país.

Propõe-se, portanto, a abordagem do texto-poético-diferente, escrito e oralizado por sujeitos diferentes e que instauram experiências leitoras outras, na medida em que perturbam os discursos e os valores dominantes, cordiais e excludentes. Diante disto, Silviano é enfático quando salienta a poesia do Adão enquanto reflexão que “apela para a consciência crítica do leitor e para a revolta contra o estado passado e presente” (Santiago, 1982: 121).

Conceber o livro A cor da pele enquanto lugar mesmo onde acontecem essas mobilizações do texto da diferença e do descentramento é poder discutir a situação em que se tem um discurso artístico, crítico, poeticamente registrado e compartilhado por um cidadão negro no Brasil de 1980, década que marcou o questionável centenário da Abolição da Escravatura. Isto, em primeira instância, já revela algo bastante potente e complicado, considerando um país que conserva em suas estruturas o cancro do etnocentrismo e da estupidez, e que não suporta aquilo que se difere e sequer aceita o que possa descentralizar seus valores, seus domínios e seus padrões.

Silviano Santiago, no referido ensaio, cita diretamente 7 poemas da obra do Adão Ventura, a saber: “Um”, “Negro Forro”, “Negro Escravo – versão para o século XX”, “Faça sol ou faça tempestade”, “Preto de alma branca: ligeiras conceituações”, “Algumas instruções de como levar um negro ao tronco” e “Para um negro”. Esta seleção parece coerente na medida em que reforça a perspectiva da diferença e do descentramento na poesia do Adão. Sobretudo porque nestes poemas elencados as questões sócio-históricas, literárias e culturais no país estão, nesta ocasião, sendo observadas a partir da perspectiva, da inquietação e do ponto de vista crítico de um sujeito negro e poeta. Para alguns isto é bastante perturbador.

Ao depreender a poética de Adão Ventura como sendo legítima poesia e excelente poesia negra, mas de outra estirpe, que se difere também por “não encontramos referências concretas e precisas a elementos de cultos africanos ou afro-brasileiros” e “transcrições fonéticas um pouco ridículas do que seria o falar estropiado do negro, Silviano Santiago (1982: 121) sacode a discussão acerca da manutenção do negro-tema (Ramos, 1995), conservado, segundo o crítico, entre os estudiosos brancos, os poetas brancos, os folcloristas, os antropólogos, os modernistas, os românticos e que, sistematicamente, “visam a preservar, através de um discurso condescendente e piedoso, científico e reparador, os crimes e injustiças cometidos pelos próprios brancos contra os negros” (Santiago, 1982: 122). Silviano Santiago, enquanto intelectual branco diante do texto negro, foi honesto e sincero ao expor esse empreendimento ignorante de redução espalhado também na teoria, na crítica e na história da literatura brasileira.

Essa discussão do negro-tema se desdobra enquanto cultura estabelecida em diversas camadas da sociedade brasileira, evidenciando a recorrência de vestígios próprios do etnocentrismo em impor estilos, em reduzir a humanidade do outro, em estabelecer influências, fontes e em determinar estereótipos vocabulares e modelos equivocados de representação de caracteres sociais.

Sem descolar do poema, percebemos, ainda, que o ensaio do Silviano Santiago insinua a mobilização do topos do negro-ação/do negro-vida. Recorrendo ao comentário enfático de Jussara Santos (2010: 125), temos “de um lado a literatura sobre o negro de outro a literatura do negro”. Suscita-se, então, o negro-linguagem, o negro-sujeito-consciente, o negro-sujeito-falante, o negro “confluência de corpo e pele” (Santiago, 1982: 123); o negro lugar e tempo de ação. Ação dificílima e arriscada, não somente pela questão que Silviano Santiago colocou e que se refere à perda do horizonte histórico, mas porque ser resiliente e resistente demanda do negro e da negra outras forças que somente a experiência cotidiana e brasileira da raça sabe elencar. Contudo, enfatiza-se, através da postura lírica de Adão Ventura, uma poesia de enunciação crua, com versos concisos e curtos que abarcam desenvoltura semântica, sintática e rítmica junto a imagens potentíssimas que comungam da negritude/da negrícia enquanto tomada de consciência em que “o elemento negro não é relíquia ou simples vocábulo” (Santiago, 1982: 123).

No Brasil assolado pelo mito da democracia racial, pelas peias da ideologia da cordialidade, pelas políticas paternais e pelos sentimentos humanitários enquanto modo de representação que encobre a trágica realidade social, econômica, cultural, educacional, literária, linguística, psicológica e corporal vivida pelo negro no Brasil (Gonzalez, 2020), a poesia escrita por um sujeito brasileiro e negro, como uma intrusão, um atrevimento, registra poeticamente e partilha de modo editorial independente um discurso outro, divergente, acre, consciente, que se difere e que polemiza/descentraliza o discurso da barbárie que o determina “para não-ser” (Santiago, 1982: 124).

São os tensionamentos, as inconsistências, a dobradiça descentrada e descentralizadora, as desestabilizações dos moldes da literatura, da identidade, da política e da cidadania que interessam para as reflexões ensaísticas e poéticas dos autores Silviano Santiago e Adão Ventura, cada um com seu projeto, seu estilo e sua potência própria.

Ao comentar que, na poesia negra e de outra estirpe de Adão Ventura, o elemento negro é antes sujeito ou objeto de reflexão, Silviano Santiago motiva abordagens sobre essa energia do sujeito negro que fala, enuncia, argumenta, indaga, reflete, publica, significa, interpreta. Notabiliza-se a alta performance do poeta, sobretudo no que os versos de A cor da pele demonstram de poeticidade ciente que exerce arte verbal e crítica. Ciente, também, de que se arrisca ao se inserir no grupo daqueles que aplicam releituras de tópicos sensíveis e polêmicos, fazendo do verso o lugar mesmo de encarar a problemática.

Nesta obra de Adão Ventura o negro não é mais reduzido ao tema, mas, também, indica a negritude que recusa o simples ato de assunção. Isso porque a busca não é apenas questionar o racismo, o objetivo é destruí-lo. Segundo Silviano, o poeta vibra para que “o preto assuma a sua alma negra e vire o que é na pele, um negro, buscando assim uma identidade que escapa às pressões da sociedade cordial” (Santiago, 1982: 124). A propósito, reitero que estas ações e estas buscas são dificílimas.

O pesquisador Édimo de Almeida Pereira (2009), ao analisar os discursos hegemônicos de exclusão do negro no Brasil, observando as estratégias escravagistas e pós-abolicionistas de segregação, de apagamento e de desconstrução da identidade do sujeito negro, acaba por referenciar a poesia do Adão Ventura como exemplo de resistência e de descentralização diante destes discursos que conservam em seu núcleo os estereótipos da redução, da dominação e da animalização do diferente. Essa movimentação reitera a análise de Silviano Santiago (1982: 121) quando partilha que “a originalidade da poesia de Adão advém do sentimento da cor da pele”, pois sugere focalizar a fala e a poética do sujeito-subúrbio, do negro linguagem e ação, do negro leitor, do negro autor, descendente da margem, que age/que enuncia mesmo consciente da situação de dominado, em apuros, caracterizado para não falar, não refletir, não sentir.

Outro movimento da poesia de Adão, atrevido, corajoso e que chacoalha discussões, e que Silviano Santiago soube detectar em seu ensaio, refere-se à postura de encarar o aviltamento, ou seja, de enfrentar/de compreender o cenário arruinado e os corpos negros devastados com o dormir passivo, a pele chicoteada, seu cagar na saída, a pele cuspida, a alma branca, os culhões arrebentados, os dentes cariados, a voz falida, as mãos calejadas e os pés no chão (Ventura, 1987). Adão expõe poeticamente, para leitores brancos e negros, o cru das condições e das situações do projeto de barbárie. No poema “Algumas instruções de como levar um negro ao tronco” a experiência ética e estética de recepção literária, em si, evoca uma experiência outra, mordaz e desestabilizante, que expõe e, ao mesmo tempo, enfrenta a humilhação histórica e social.

Outra sugestão interessantíssima para discussão pode ser observada na atenção de Silviano Santiago sobre os versos embravecidos do poema “Preto de alma branca: ligeiras conceituações”.

Nesse poema, extraordinário e terrível, como no poema “Meu sonho”, Adão Ventura aponta as ameaças do projeto dominante ao tratar daqueles que não veem outro rumo além de aderir e assujeitar-se ao programa de embranquecimento. Explana, assim, o negro que “teve de incorporar os valores brancos, dados como positivos” (Santiago, 1982: 124). Silviano conecta, novamente, os poemas de Adão às suas interpretações sociais, culturais e políticas que questionam o plano organizado e violento de compelir e alienar o corpo, a linguagem, a memória e a subjetividade do “outro”, desse “diferente”, desse “negro”, descaracterizando-o e incinerando sua história.

[…] as referências culturais são vagas e apagadas para o negro no Brasil, ao contrário do que acreditam os nossos cientistas sociais, imbuídos da teoria do mulato tropical […] Tão vagas e apagadas são, que elas apenas servem para constituir o preto de alma branca.” (Santiago, 1982: 124).

Discutimos, então, ainda que brevemente, alguns apontamentos apresentados na análise pertinente de Silviano Santiago sobre a poesia de Adão Ventura, trazendo a novidade de pensá-la em sua originalidade e em seu procedimento. Poesia que se mantém crítica, de alta performance, de alta voltagem conotativa e denotativa, e esticando a pele ao máximo até à poética e ao debate. Aspectos estes que, aliás, acompanham o poeta desde os experimentos de envergadura vanguardistas marcados em 1969, com Abrir-se um Abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul e, em 1975, com As musculaturas do arco do triunfo.

Cabe, ainda, citar a colocação sobre o poeta partilhada por Eduardo de Assis Duarte, no volume 2 de Literatura e afrodescendência no Brasil: “a poesia de Adão Ventura traz o impacto de um soco” (Duarte, 2014: 196) e que não utiliza o discurso condescendente ou a “ideologia de cordialidade com que muitos autores tratam o problema do negro” (Duarte, 2014: 96).

A pele expandida na poesia do Adão ao esticar-se semanticamente até a negrícia, alberga, sobretudo, que “algo de mais profundo ainda permanece na cor da pele” (Santiago, 1982: 122), além da genética, do fenótipo e da melanina.

Os poemas do livro A cor da pele são inquietações de uma derme expandida, submetida à pressão, pele esticada até a voz, o curral, a corrente, o chicote, o porão, o muro, a senzala, e, também, até a pele-rebelião das mãos do pai no poema “MEU PAI (I)”, que, mesmo velhas e cansadas, “ainda não estão/ tão trêmulas, / ao ponto de errar o corpo/ de um Mr. Vorster”[1] (Ventura, 1987).

Atualmente o arquivo do poeta Adão Ventura se encontra salvaguardado no Acervo dos Escritores Mineiros da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e tanto sua biografia quanto sua bibliografia implicam análises teóricas atentas, como, por exemplo, as apresentadas em Vale quanto pesa (1982) e nas demais referências críticas citadas aqui.

 A cor negra da pele é “uma sombra/ muitas vezes mais forte/ que um soco” (Ventura, 1987), por isso, a voz é crua e acre, reforçando ainda mais a convicção de que essa poesia é um artefato imprescindível.


Nota

[1] Político sul-africano, premiê e presidente do país entre 1966 e 1978. Representante da minoria branca de descendência holandesa e partidário da política do apartheid.

Referências

CUNHA, Eneida Leal (Org.). (2008). Leituras críticas sobre Silviano Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Fundação Perseu Abrama.

DUARTE, Eduardo de Assis. (2014). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG.

GONZALEZ, Lélia. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Editora Zahar.

PEREIRA, Édimo de Almeida. (2009). O discurso de exclusão do negro brasileiro. Scripta, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, pp. 33-49.

RAMOS, Alberto Guerreiro. (1995) A redução sociológica. Rio de Janeiro, Editora UFRJ.

SANTIAGO, Silviano. (1988). Crescendo durante uma guerra numa província ultramarina. Rio de Janeiro: Francisco Alves.

SANTIAGO, Silviano. (1982). Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

SANTOS, Jussara. (2009). A não cor do poema ou uma escrita acima de qualquer suspeita. Scripta, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, pp. 33-49.

VENTURA, Adão. (1970). Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul. Belo Horizonte: Edições Oficina.

VENTURA, Adão. (1975). As musculaturas do arco do triunfo. Belo Horizonte: Editora Comunicação.

VENTURA, Adão. (1987). A cor da pele. Belo Horizonte: Edição do autor.

A imagem que abre o post é de autoria de Lena Bergstein, Série Galáxias, 2018. Fotografia e superposições

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